Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Transexualidade

Transexualidade e sua descriminalização

Maria Berenice Dias[1]

 

É muito mais fácil considerar o outro como um doente do que reconhecer como um igual, com trajetória diferente. Sobretudo é difícil aceitar que tenha os mesmos direitos e deveres.

Esta é a postura de quem vê o transexual como uma pessoa que nasceu em um corpo errado, que tem uma anomalia que necessita ser corrigida.

Os primeiros relatos de cirurgia de mudança de sexo são da primeira metade do século passado. Era associada a casos de hermafroditismo, em que a genitália era adequada para o “sexo verdadeiro”.

O IV Congresso Brasileiro de Medicina Legal, realizado em 1974, classificou de mutilante – e não corretiva – a cirurgia de troca de sexo, a considerando uma afronta ao Código de Ética Médica.

No ano de 1975, o cirurgião plástico Roberto Farina, em um congresso de urologia, exibiu o vídeo de uma cirurgia de transgenitalização, afirmando que já tinha feito nove outras intervenções. Acabou condenado pelo delito de lesão corporal, até que, em 1979, foi absolvido pelo Tribunal de Alçada de São Paulo.

A transexualidade ainda é tida como doença. Em 1980, denominada como “transexualismo”, entrou no catálogo de doenças do DSM III e, em 1992, no CID-10 (F64.0).  Com a atualização do DSM V é chamada de Disforia de Gênero: sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa.

Ou seja, a transexualidade saiu do campo moral. Foi excluída do conceito de perversão para ser reconhecida como doença. O transexual deixou de ser um devasso, um pervertido, para ser um “doente”, que depende de um longo período acompanhamento para a equipe médica diagnosticar a doença e aceitar fazer a cirurgia.

Da culpa, passou-se ao sofrimento.

O Conselho Federal de Medicina já emitiu três resoluções.[2] A atual, que data do ano de 2010, ainda fala em “transexualismo” e autoriza a cirurgia de redesignação do masculino para o feminino. A cirurgia do feminino para o masculino, somente pode ser realizada em caráter experimental. Ainda assim, só pode ocorrer após dois anos, no mínimo, de avaliação e acompanhamento conjunto de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social. E, apesar de a transexualidade se apresentar, muitas vezes, desde a infância, a cirurgia só pode ser realizada quando o paciente tiver 21 anos, sem atentar que a maioridade é atingida aos 18 anos.

A relação médico-paciente já nasce enviesada. Quando alguém vai ao médico, fala de seus sintomas e cabe ao médico fazer o diagnóstico e indicar o tratamento. No caso da transexualidade, a situação se inverte: o paciente não busca um diagnóstico desconhecido. Ele não vai ao médico para saber o que tem, mas para fazer que o médico acredite no que ele tem e, a partir disso, permita sua cirurgia. Quem já se sente transexual – muitas vezes, desde muito jovem – é que tem de, a qualquer custo, convencer a equipe médica do diagnóstico.

Forma-se um verdadeiro círculo vicioso. O cidadão conta ao médico o que ele acha que o médico precisa ouvir.  Nítido o “discurso do sofrimento”. É o sofrer que assegura direitos e não o direito fundamental à cidadania, à autonomia da vontade, ao livre-desenvolvimento da personalidade. O cidadão transexual tem de demonstrar descontentamento com o seu corpo e alegar que isso lhe causa sofrimento para ser considerado um transexual, seja isso verdade ou não. A verdade, no entanto, ele já traz consigo desde que se descobriu transexual. Porém, para ter acesso às intervenções cirúrgicas precisa mostrar que esta é a única forma de cessar seu sofrimento, seja ele real, inventado ou exagerado.

Mas não é o fato de querer muito fazer a cirurgia que implica no sofrimento. O sofrimento que se espera que o transexual emita para que receba o diagnóstico de “transexualismo” pode, muito bem, ser causado pelo próprio diagnóstico dentro de seus moldes atuais: a obrigação de dois anos de tratamento; a subordinação da própria identidade subjetiva a uma autoridade médica; a dificuldade de reconhecimento legal de sua identidade; as estratégias disseminadas de narrativas em detrimento de uma honestidade que poderia levar, ao final, ao não recebimento do diagnóstico esperado, entre outros.

Não basta a mera vontade de retirar os genitais: essa vontade deve se consubstanciar em um desconforto recorrente. Ou seja, em qualquer outra doença, o sofrimento pessoal não é elemento essencial, condição de para sua caracterização e posterior acesso ao tratamento. Já, para os transexuais, o sofrimento, expresso pelo desconforto e vontade de aniquilar os genitais, faz parte do diagnóstico.

No entanto, a experiência transexual não pode ser reduzida a um constante sofrimento. Ao contrário de todos os outros transtornos, poder-se-ia dizer que a transexualidade é uma doença auto-identificada, com tratamento auto-prescrito e de cura auto-avaliada.

É indispensável que se altere o diagnóstico e seus critérios. Em vez de reduzir a experiência a um “corpo desajustado” os transexuais pleiteiam ser considerados simplesmente como mais um ajuste possível das relações dinâmicas entre sexo e gênero, adicionando-se mais uma categoria à típica divisão binária entre homem e mulher.

Muitos transexuais declaram que não querem eliminar o trans, essa travessia identitária, esse conjunto ambivalente entre o masculino e o feminino de sua identidade. Ao contrário de outros trans, não se veem como homens ou mulheres, mas como transexuais per se. Esses cidadãos demandam que se deixe de considerar a transexualidade como doença, e se passe a vê-la como uma identidade de gênero que requer um tratamento médico especial para sua expressão plena.

Despatologizar a transexualidade não cria um problema de fundamentação teórica para a realização da cirurgia. Nem todos que recorrem à saúde pública ou privada são doentes. Cabe lembrar a gravidez. Não é uma doença, mas requer tratamento especial a pessoa potencialmente saudável. Do mesmo modo as campanhas de vacinação, em que pessoas que não são doentes recorrem à saúde pública.  Assim, o atendimento médico de alguém não requer a existência prévia de uma enfermidade.  Justifica-se no entendimento de saúde como profilaxia e também como bem-estar integral, mais que simplesmente como a ausência de doenças.

Tratar a transexualidade como doença, e não como identidade de gênero, acaba por patologizar a diversidade e prejudica o florescimento de uma sociedade democrática, que reafirma seu comprometimento com a igualdade jurídica por meio do respeito à diferença social.

A despatologização reafirma a igualdade entre todos, respeita a autonomia e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Afinal, se a distinção entre homem e mulher não consegue dar conta de todas as categorias e sobrevive à custa da marginalização e do não reconhecimento identitário de uma parcela da população, não é essa população que está doente, é a sociedade que é uma farsa.

 

Publicado em 22/09/2015.

[1] Advogada

Presidenta da Comissão Nacional da Diversidade Sexual da OAB

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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www.direitohomoafetivo.com.br

www.estatutodiversidadesexual.com.br

 

[2] Resoluções CFM 1.482/1997, 1.652/2002 e 1.955/2010.

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