Maria Berenice Dias[1]
A história da humanidade é escrita pelos detentores do poder. Mas são os excluídos, os marginalizados, os alijados de direitos que acabam ditando os rumos dos avanços sociais.
Neste universo invisível, não há quem sofra mais repúdio e seja alvo de maior discriminação do que a população LGBTI – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersex. Um punhado de pessoas cuja orientação sexual ou identidade de gênero refoge ao modo de viver da maioria. Nada mais do que isso. Além de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais é necessário enlaçar os intersexuais. Com certeza são os mais vulneráveis, pois não lhes é dado o direito de optar sobre a própria identidade sexual. São submetidos, desde muito cedo, a uma série de cirurgia, para atender ao propósito identificatório escolhido pelos pais e um cirurgião, os quais, de maneira quase aleatória, elegem um sexo, que nem sempre corresponde à própria realidade de quem nasceu masculino e feminino. Por isso, impõe que se passe a utilizar a sigla em LGBTI, como já vem ocorrendo em âmbito internacional, inclusive nas publicações oficiais da ONU.
Nada é mais fácil para afastar o que não é espelho, do que condenar à invisibilidade, empurrar para dentro de um armário, como se assim fosse desaparecer. Os juízes simplesmente diziam que as uniões homossexuais não existiam. Não era admitido sequer o ingresso de ações na justiça, que eram extintas por impossibilidade jurídica. Os parceiros, ainda que vivendo juntos por décadas, nunca tiveram qualquer direito. Quando um morria o outro era alijado da casa, do patrimônio, de qualquer direito. Tudo ficava com os parentes, ainda que distantes. Muitos eram expulsos do lar comum ao retornar do enterro do parceiro de uma vida inteira.
O fato é que o Estado não os quer ver. O legislativo se nega a inseri-los no âmbito da tutela jurídica. E pior, sem que se possa encontrar qualquer justificativa para o repúdio de que eles são alvo, a tendência da sociedade é assistir de forma indiferente e até aplaudir tais manifestações.
Mas cabe questionar. Porque muita gente se arvora o direito de ridicularizar, punir, matar alguém em face de sua orientação sexual ou identidade de gênero? Será que uniões entre pessoas do mesmo sexo são rejeitadas, são consideradas pecado, abominação ou aberração, por serem estéreis? Mas tal não mais é verdade após o surgimento das técnicas de reprodução assistidas.
Historicamente as uniões que passaram a ser chamadas de homoafetivas sempre foram condenadas à invisibilidade, alijadas da tutela jurídica. O termo gerou muita resistência, principalmente dos movimentos sociais, sob a justificativa de que seria uma expressão higienista, subtraindo o aspecto sexual das uniões. No entanto, a criação de tal expressão foi para evidenciar que as uniões de pessoas do mesmo sexo são, sim, uma entidade familiar.
Mudou o conceito de família, que de há muito se desatrelou do conceito de casamento. Agora família tem um conceito plural, englobando arranjos de convivência sem o selo do casamento e independente da diferença sexual de seus membros. Daí, Direito das Famílias, com a identificação do vínculo da afetividade como elemento essencial. E sempre que se fala em famílias é necessário render um tributo ao IBDFAM que operou esta verdadeira revolução, tendo inclusive elaborado o Estatuto das Famílias, em tramitação no Senado Federal.
E quando o legislador cruza os braços e deixa de cumprir com o seu papel de fazer leis para alcançar a igualdade de todos, ganha significado a atuação do Poder Judiciário, ao reconhecer que a falta de lei não significa ausência de direito.
Não há exemplo maior da sensibilidade judicial do que a concessão de direitos levada a efeito neste século. Esta verdadeira revolução começou no âmbito das justiças estaduais e foi chancelada pelas cortes supremas, a ponto de ser proibido negar reconhecimento à união homoafetiva e impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Foi no ano de 1989, que a justiça do Rio de Janeiro reconheceu pela primeira vez, a existência de uma sociedade de fato. A decisão foi confirmada pelo STJ em 1998.
Data do ano de 2000, a decisão da justiça gaúcha que admitiu a união entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar, atribuindo às varas de família competência para o julgamento das ações.
Em 2011 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união homoafetiva como união estável, com os mesmos direitos e obrigações de uma união heteroafetiva.
Em maio de 2013 o Conselho Nacional de Justiça impediu que se negasse aceso ao casamento, via deliberação administrativa que não tem efeito vinculante.
Agora 22 países admitem o casamento, todos por força de lei. Mas no Brasil, tal possibilidade decorre de decisão da justiça.
Os EEUU copiaram o Brasil, quando a Suprema Corte reconheceu a inconstitucionalidade da rejeição ao casamento gay. Mas há uma diferença, lá o sistema é da commun law, ou seja, as decisões judicias tem força de lei. Aqui não, é simplesmente um antecedente.
Daí a necessidade de se ter uma legislação, não só para conceder direitos, mas também para criminalizar a homofobia. Este foi o compromisso assumido pela OAB ao criar Comissões da Diversidade Sexual, nas esferas nacional, estadual e municipal. Afinal, é necessário capacitar os advogados para trabalharem com este novo ramo do direito.
Além de elaborar o projeto do Estatuto da Diversidade Sexual, a OAB coordena o movimento nacional de coleta de assinaturas para apresentá-lo por iniciativa popular. Só que para isso é necessário colher cerca de um e meio milhão de adesões.
O fato é que, se o século XX foi o século das mulheres, o século XXI verá a população LGBTI ter direitos garantidos.
Publicado em 21/09/2015.
[1] Advogada
Presidenta da Comissão Nacional da Diversidade Sexual da OAB
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
www.mbdias.com.br
www.estatutodiversidadesexual.com.br