Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoafetividade

A realidade dos direitos da população LGBTI no Brasil

Maria Berenice Dias[1]

 

 

No Brasil, a população LGBTI – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, são vítimas tanto do repúdio social como do preconceito no âmbito familiar. Nunca mereceram a atenção do legislador, sendo condenados a mais perversa invisibilidade.

Data do ano de 1995,[2] o primeiro projeto de lei que buscou o reconhecimento da parceria civil. Nem ele, e nenhum outro, sequer chegaram a ser submetidos à votação.

Todas as tentativas de garantir aos transgêneros o direito ao uso do nome social e o direito de alterar o nome e a identidade de gênero, também foram infrutíferas.

Inclusive o Projeto que buscava criminalizar a homofobia,[3] foi recentemente arquivado, sem atentar que, a cada 26 horas alguém é morto no país por sua orientação sexual ou identidade de gênero.[4]

A omissão do legislador, além de descuido, revela a intenção de que nenhum direito fosse assegurado a quem se afasta do modelo convencional de família.

Diante do silêncio da lei a tendência era reconhecer a inexistência de direitos através do Poder Judiciário. Tanto que, em um primeiro momento, ações envolvendo relacionamentos homossexuais tramitavam nas varas cíveis e os parceiros eram considerados meros sócios. Data de 1998 a primeira decisão do Superior Tribunal de Justiça[5] reconhecendo a união homossexual como mera sociedade de fato.

Como houve o alargamento constitucional do conceito de família,[6] começou um movimento para a inserção das uniões homossexuais no âmbito do Direito das Famílias. Na tentativa de retirar o estigma de que são vítimas os relacionamentos de gays e lésbicas, popularizou-se a expressão “homoafetividade”,[7] para evidenciar que o vínculo entre pessoas do mesmo sexo é da ordem da afetividade e não da sexualidade.

A partir do ano de 2000,[8] a justiça começou a reconhecer as uniões homoafetivas como união estável: convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas com a finalidade de constituir família.

As decisões proliferaram,[9] até que, em 2011, o Supremo Tribunal Federal,[10] em um histórico julgamento, à unanimidade, afirmou que a norma constitucional, ao fazer referência à união estável entre um homem e uma mulher, não exclui as uniões homoafetivas. Com isso foram assegurados aos parceiros do mesmo sexo todos os direitos e impostos os mesmos deveres conferidos os pares heteroafetivos.

Como a Constituição Federal determina que seja facilitada a conversão da união estável em casamento,[11] imediatamente foi admitido o casamento, pelo Superior Tribunal de Justiça.[12]

Em 2013 o Conselho Nacional da Justiça[13] expediu resolução impedindo que fosse negado acesso ao casamento, ao reconhecimento da união estável, bem como de sua conversão em casamento.

Ou seja, no Brasil, por força de decisões judicias, e não em razão de uma lei, os homossexuais casam, tem direito a adotar filhos, podem fazer uso das técnicas de reprodução assistida e têm reconhecidos direitos previdenciários e sucessórios.

No entanto, as igrejas fundamentalistas, que estão se multiplicando e não medem esforços para impor suas crenças, como se o país não fosse laico.[14] O conservadorismo religioso vem tomando conta do Congresso Nacional.

Na tentativa de blindar os avanços judiciais, foi apresentado o projeto de lei, intitulado de Estatuto da Família,[15] que define família como a entidade formada por um homem e uma mulher e, somente a ela, assegura um punhado de direitos. Prova deste conservadorismo é este projeto de lei de forma oportunista, tenta confundir para embaraçar a tramitação do Projeto do Estatuto das Famílias[16], que busca o reconhecimento do conceito plural de família, acolhido pela Constituição Federal e definido pela Lei Maria da Penha[17] como uma relação íntima de afeto.

Diante deste quadro a Ordem dos Advogados do Brasil criou Comissões da Diversidade Sexual em todas as Seccionais e em inúmeras Subseções, bem como uma Comissão no âmbito do Conselho Federal. Um grupo de juristas elaborou o Estatuto da Diversidade Sexual e propostas de emenda constitucionais. O projeto também contou com a colaboração dos movimentos sociais.

O Estatuto tem a estrutura de um microssistema, como deve ser a legislação voltada a segmentos sociais vulneráveis. Estabelece princípios, garante direitos, criminaliza atos discriminatórios, impõe a adoção de políticas públicas e propõe a alteração de toda a legislação infracosntitucional.

Em face da enorme dificuldade de conseguir aprovar qualquer tentativa legiferante, está em andamento uma campanha para angariar adesões e apresentar o Estatuto por iniciativa popular. Para isso é necessária a assinatura de cerca de um milhão e meio de pessoas, um número quase inatingível.

Não há outra forma de a sociedade reivindicar tratamento igualitário a todos, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Mas certamente este é o único jeito de driblar a postura dos legisladores que não poderão alegar que a iniciativa desatende ao desejo do povo.

Esta é a primeira vez que ocorre uma movimentação social pela aprovação de uma lei que assegure direitos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais.

Não é uma proposta que deve contar com a participação somente dos homossexuais. É um projeto de cidadania para garantir direitos humanos a todos os cidadãos.

Afinal, de nada adianta não ver, não reconhecer, tentar punir e até matar quem só quer ter o direito de ser feliz, seja com quem for, do jeito que quiser.

Publicado em 08/10/2015.

 

 

 

 

[1] Advogada

Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

[2] Projeto de Lei nº 1.151 de 1995 (de autoria da Deputada Federal Marta Suplicy).

[3] Projeto de Lei nº 122 de 2006 (de autoria da Deputada Iara Bernardi).

[4]Dados fornecidos pelo GGB – Grupo Gay da Bahia. Disponível em http://www.ggb.org.br/luiz%20mott%20entrevista%20passageiro%20do%20mundo%202013.html. Acesso em 08/10/2015.

[5] Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 148897-MG, 4ª Turma, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 10/02/1998.

[6] Constituição Federal de 1988: Artigo 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

  • 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. (…)
  • 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.  (…)

[7] Neologismo cunhado pela autora, quando da edição da primeira obra brasileira buscando o reconhecimento dos direitos dos homossexuais no âmbito do Direito das Famílias. Atualmente, o termo já está traduzido no dicionário brasileiro e é reconhecido internacionalmente.

[8] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação cível 598362655, 8ª Câmara Cível, Relator Desembargador José S. Trindade, julgado em 01/03/2000.

[9] Decisões disponíveis no site www.direitohomoafetivo.com.br

[10] Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, Relator Ministro Ayres Britto, julgado em 05/05/2011.

[11] Constituição Federal de 1988: Artigo 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

  • 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.  (…)

[12] Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 1.183.378 – RS, 4ª Turma, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 25/10/2011.

[13] Conselho Nacional de Justiça – Resolução 175, de 14/05/2013.

[14] Constituição Federal de 1988: Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (…)

[15] Projeto de Lei nº 6.583 de 2013 (de autoria do Deputado Federal Anderson Ferreira).

[16] Projeto de Lei nº 470 de 2013, elaborado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.

[17] Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006.

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