Maria Berenice Dias[1]
A sexualidade sempre esteve envolta em mitos e tabus, buscando a sociedade confiná-la na conjugalidade, único espaço em que era admitido seu exercício e, assim mesmo, para fins procriativos. No modelo tradicional, família era a união de um homem e uma mulher pelos sagrados laços do matrimônio e com o fim precípuo de perpetuar a espécie. Nesse universo, todos dispõem de um nome que identifica o lugar de cada um na constelação familiar. O casamento constitui a família formada pelo marido e pela mulher, que geram filhos. Também integram o conceito e a nomenclatura da família as relações de parentesco natural, constituídas por avós, irmãos, tios, sobrinhos, primos, netos, etc. De outro lado, o casamento inova relações de parentesco, havendo até uma terminologia própria para identificar o parentesco civil, universo que compreende sogros, genros, noras, cunhados, etc.
No contexto de um mundo globalizado, com a emancipação feminina, a evolução dos costumes e os avanços da engenharia genética, foram rompidos os paradigmas a que estava condicionada a família: casamento, sexo e reprodução. O casamento não mais serve para o reconhecimento da entidade familiar, o sexo deixou de ter lugar exclusivamente no matrimônio, e o contato sexual se tornou dispensável para a procriação. Conforme Roussel, não se pode mais pensar a família no singular,[2] e imperiosa é a busca de novos referenciais para inserir no âmbito do Direito os mais diversos relacionamentos interpessoais.
Para delinear o pluralismo de formas que a família assumiu na realidade do mundo atual, emprestou-se juridicidade ao vínculo afetivo que enlaça as pessoas. Esse é o único elo capaz de gerar conseqüências de ordem pessoal e patrimonial, pois, como alerta João Baptista Villela,[3] a teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência em dar e receber amor. Assumindo as pessoas cada vez mais os seus desejos, o conceito de família foi reinventado, passando a dispor de um perfil multifacetário. Como as relações familiares são funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe,[4] fez-se necessário identificar como família também as relações que se constituem sem o selo do casamento.
A própria Constituição Federal reconheceu como entidade familiar e assegurou proteção à união estável e à comunidade dos pais com seus descendentes. Mas não só nesse limitado universo se flagra a presença de uma família. Não se pode deixar de ver como família a universalidade dos filhos que não contam com a presença dos pais. Dentro desse espectro mais amplo, descabe excluir os relacionamentos de pessoas do mesmo sexo, que mantêm entre si uma relação pontificada pelo afeto, a ponto de merecerem a denominação de uniões homoafetivas.
A flexibilização decorrente da contemporaneidade vem permitindo que os relacionamentos antes clandestinos e marginalizados adquiram visibilidade, o que acabará conduzindo a sociedade à aceitação de todas as formas que as pessoas encontram para viver. Basta lembrar que nem mais o convívio sob o mesmo teto é indispensável para o reconhecimento de uma entidade familiar, bastando para sua configuração a mantença de uma vida em comum. Estão acabando os casamentos de fachada, não se justificando relacionamentos paralelos e furtivos, nascidos do medo da rejeição social.
As pessoas passaram a viver em uma sociedade mais tolerante e, com mais liberdade, buscam realizar o sonho de ser feliz sem se sentir premidas a ficar dentro de estruturas preestabelecidas e engessadoras. Está ocorrendo uma verdadeira democratização dos sentimentos, na qual o respeito mútuo e a liberdade individual vêm sendo preservados. Como bem refere Rosana Fachin, a nova família busca construir uma história em comum, não mais a união formal, o que existe é uma comunhão afetiva, cuja ausência implica a falência do projeto de vida.[5] Nessa nova ótica, a traição e a infidelidade estão perdendo espaço. Cada vez mais as pessoas têm o direito de escolha e podem transitar de uma comunidade de vida para outra que lhe pareça mais atrativa e gratificante.
É por esse prisma que hoje se deve ver a família e buscar não só um novo conceito para defini-la, mas uma nomenclatura que identifique os integrantes dos atuais vínculos familiares. Não bastam os vocábulos disponíveis para diferenciar o par formado por quem é egresso de relacionamentos anteriores. Não dispõe a Língua Portuguesa de uma palavra que permita ao filho identificar quem seja, por exemplo, o companheiro da mãe. Como chamar o filho da mulher do pai? Ainda, que nome tem o novo filho dessa relação frente aos filhos de cada um dos pais, frutos de relacionamentos pretéritos? Claro que os termos madrasta, padrasto, enteado, assim como as expressões filho da companheira do pai ou filha do convivente da mãe, meio-irmão não servem, pois trazem uma forte carga de negatividade, resquício da intolerância social.
É chegada a hora de se encontrar uma terminologia para as novas famílias. Soa como um desafio encontrar nomes que identifiquem as relações em que a diferença de sexos não é elemento essencial, e o vínculo biológico não serve como fator exclusivo para a determinação da filiação.
Os relacionamentos que florescem exclusivamente na trilha do companheirismo e do comprometimento mútuo merecem um nome que retrate o vínculo de afeto que os enlaça. Como o termo casamento é reservado a quem contraiu justas núpcias, para usar a expressão de Clovis Bevilaqua[6], outro nome necessita ser cunhado para identificar as famílias não constituídas pelos sagrados laços do matrimônio. As palavras amigado, amasiado ou concubino referiam-se a relações espúrias ou pecaminosas. A lei e a própria Justiça encarregavam-se de alijar os vínculos extramatrimoniais do Direito de Família, dispondo de alguma visibilidade somente no âmbito obrigacional. Tais relacionamentos eram tratados como fictícias sociedades de fato se durante o período de convívio havia acréscimo patrimonial. Exclusivamente para evitar o enriquecimento injustificado de um dos sócios em detrimento do outro, era determinada a partição dos bens amealhados durante a vida em comum. Mas, como se está diante de sociedades de afeto, não dá para chamá-las de sociedades de fato.
A Constituição Federal acabou se curvando à realidade e enlaçou o afeto no âmbito da proteção do Estado. Para afastar o estigma do termo concubinato, o constituinte chamou de união estável a relação não-matrimonializada entre um homem e uma mulher. Só que dita locução não serve para a identificação dos partícipes dessa nova entidade familiar. Os vocábulos companheiro e convivente foram os utilizados pelas leis que regulamentaram a união estável. O novo Código Civil aleatoriamente fala em companheiro e convivente, fazendo uso também da expressão concubino. Mas nenhuma dessas denominações mereceu a aceitação social, e, conforme bem lembra Rodrigo da Cunha Pereira, a determinação e a nomeação dos sujeitos de uma relação concubinária serão aquelas que o costume consagrar.[7]
Além de dificuldades sociais, problemas de outra ordem surgem em decorrência da falta de uma terminologia adequada para as novas estruturas de convívio elencadas em sede constitucional como entidades familiares. A partir do momento em que um relacionamento passa a gerar seqüelas patrimoniais, com reflexos sobre terceiros, imperiosa sua perfeita identificação, até para emprestar segurança às relações jurídicas.
A união estável nasce do simples fato da convivência, simples fato jurídico que evolui para a constituição de ato jurídico, em face dos direitos que brotam dessa relação, como sinala Euclides de Oliveira.[8] No entanto, gera um quase casamento na identificação de seus efeitos.[9] Quem vive em união estável e adquire algum bem, ainda que em nome próprio, não é o seu titular exclusivo. O fato de o bem figurar como de propriedade de um não afasta a co-titularidade do outro. O estado condominial que se estabelece ex vi legis não permite que o comprador aliene o bem comum sem a vênia do convivente. A constituição da união estável leva à perda da disponibilidade dos bens adquiridos. O direito de propriedade resta fracionado em decorrência do condomínio que exsurge por força de lei. Portanto, para o aperfeiçoamento de todo e qualquer ato de disposição do patrimônio comum, é indispensável a expressa manifestação de ambos os proprietários.
Por conseqüência, é imperioso reconhecer que, a partir do momento em que uma estrutura familiar passa a gerar conseqüências jurídicas, se está diante de um novo estado civil. Não é mais somente o casamento que impõe alterações de ordem patrimonial. Também a união estável, ao modificar a titularidade dos bens adquiridos em sua constância, altera o estado civil dos… como se diriam: concubinos, companheiros, conviventes, parceiros?… enfim, do par. Assim, quem mantém união estável não pode dizer que é solteiro ou viúvo, nem tampouco que é casado. Igualmente não cabe se qualificar como separado ou divorciado, pois não mais é essa sua condição de vida. Os solteiros, separados, divorciados ou viúvos são pessoas que vivem sós, são donas exclusivas do seu patrimônio e dele podem dispor livremente. Quem mantém uma convivência duradoura, pública e contínua com outrem, constitui uma família e precisa se identificar e ser identificado como integrante de uma nova verdade social e jurídica.
Imprescindível, portanto, encontrar um nome para esse novo status, que não nasce, como o casamento, de um ato que o formaliza. É um relacionamento que surge do afeto, impondo que se procure, para a sua identificação, uma palavra que assinale sua origem e natureza. Na busca de um vocábulo que nomine esse vínculo carente de denominação, há que atentar num fato: apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas essas entidades familiares.[10]
Por mais que se tente, não há expressão mais adequada para definir quem ama e quem é amado do que a palavra amante. No latim, amante, particípio presente do verbo amar, significa aquele que ama. Se duas pessoas estão juntas exclusivamente em razão do amor que as une, aquela que ama é amante, como também é amante quem é amado. O fato de os amores, outrora estigmatizados pela clandestinidade, haverem se apropriado desse termo não pode implicar que esse belo vocábulo fique relegado para sempre ou condenado ao esquecimento. Ao contrário, seu real sentido deve ser o bastante para revivificá-lo em uma nova dimensão, que não é outra senão a sua acepção nativa: amantes são aqueles se amam.
Amante serve, pois, tanto para denominar os partícipes de uma união estável, como para a identificação da nova entidade familiar. Ao constituírem essa espécie de família, passam ambos a se chamar amantes, assim sendo denominado seu estado civil. Desse modo, identificam-se com facilidade os que vivem em união estável. Não são casados nem solteiros, separados, divorciados ou viúvos. São amantes porque se amam e, com seu amor, formam uma união de afeto. O amor é o elemento constitutivo da união estável e deve servir para identificá-la.
A partir da assunção de uma terminologia adequada, cessam inseguranças e incertezas. Com facilidade se podem nominar os demais integrantes da nova constelação familiar: os filhos de cada um serão apresentados como os filhos do meu amante, assim como os irmãos, os pais e os demais parentes.
Ainda que nomes não tenham efeito mágico, quem sabe a partir do momento em que se realce a natureza afetiva do vínculo, as pessoas se amem mais e vivam suas relações com a cumplicidade, o companheirismo e o carinho que somente aqueles que amam – ou seja, os amantes – sabem viver.
Publicado em 20/04/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
www.mariaberenice.com.br
[2] In PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. Belo Horizonte: Del Rey, 6ª ed., 2001, p. 42.
[3] VILLELA, João Baptista. As novas relações de família. Anais da XV Conferência Nacional da OAB. Foz do Iguaçu, set. 1994, p. 645.
[4] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito de Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª ed., 2001, p. 93.
[5] FACHIN, Rosana. Em busca da família do novo milênio. Uma reflexão crítica sobre as origens históricas e as perspectivas do Direito de Família contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 7.
[6] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1917, p. 327.
[7] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. Belo Horizonte: Del Rey, 6ª ed., 2001, p. 69.
[8] OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Impedimentos matrimoniais na união estável. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte, 2002, p. 175.
[9] CAHALI, Francisco José. Contrato de Convivência na União Estável. São Paulo: Saraiva, 2002, p. VII.
[10] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Identidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte, 2002, p. 97.