Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoafetividade

E a Justiça viu o afeto…

Maria Berenice Dias[1]

 

Difícil para quem é excluído e discriminado – pelo só fato de ser diferente – constatar que o preconceito leva à exclusão, não só familiar, social ou legal, mas à pior de todas as discriminações: à exclusão perpetrada pela Justiça.

Nos julgamentos que envolviam relações de pessoas do mesmo sexo, no dilema entre praticar uma injustiça e afrontar tabus e preconceitos, de forma tímida, era, no máximo, reconhecido o direito à divisão proporcional do patrimônio, mediante a prova da efetiva participação de cada um dos parceiros na sua formação.

Assim, vinha o Judiciário, de forma cômoda, buscando subterfúgios no campo do Direito das Obrigações, identificando como uma sociedade de fato o que nada mais é do que uma sociedade de afeto. A inserção de tais relacionamentos na órbita do Direito Obrigacional acabava impedindo a concessão de todo e qualquer direito outro que deflui das relações familiares, tais como direito à meação, à herança, ao usufruto, à habitação, a alimentos, a benefícios previdenciários.

Agora a Justiça do Rio Grande do Sul, ao assegurar o direito do parceiro à meação, retirou a venda dos olhos e viu as relações homossexuais como vínculos afetivos a serem inseridos no âmbito do Direito de Família. Buscando subsídios na legislação que rege a união estável, a Sétima Câmara Cível determinou a divisão igualitária do acervo patrimonial amealhado durante o período de convivência. A presunção de mútua colaboração levou ao reconhecimento do estado condominial.

A pioneira decisão,[2] sem hipocrisia, visualizou uma verdadeira entidade familiar. Em face da omissão legal, por analogia, foi aplicada a legislação do Direito de Família. A ausência de normatização flagrada no julgamento evidencia o descaso do Estado em regulamentar as uniões de pessoas do mesmo sexo, que merecem ter no Brasil, como na maioria dos países do mundo, uma regulamentação própria.

Aliás, não poderia deixar de ser da Justiça gaúcha mais este passo, pois foi daqui a primeira decisão que, de forma inédita, definiu a competência das varas de família para o julgamento das ações envolvendo relações homossexuais.[3] Também é do nosso Estado, na órbita da Justiça Federal, a concessão de benefícios previdenciários aos parceiros do mesmo sexo, decisão de abrangência geral, que veio beneficiar todos em âmbito nacional.[4]

Certamente era chegada a hora de abandonar o medo de ver a realidade. A inédita decisão resgata o conceito de que a Justiça tem a consciência de sua missão de garantir o respeito à liberdade e à igualdade, princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, em que todos merecem viver, inclusive os que mantêm relações nominadas de homossexuais, mas que, ao certo, merecem ser chamadas de uniões homoafetivas.

 

 

Publicado em 05/08/2004.

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam

www.mariaberenice.com.br

 

[2] A referência é à Apelação Cível nº 70001388982, julgada pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator o Desembargador José Carlos Teixeira Georgis, em 14/3/2001, cuja íntegra está publicada em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”. Editora Livraria do Advogado, 2003.

[3] Trata-se do Agravo de Instrumento nº 599075496, julgado pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator o Desembargador Ruy Portanova, em 17/6/1999, também publicado na íntegra em minha obra “Homoafetividade, o que diz a Justiça!”, Editora Livraria do Advogado, 2003.

[4] Trata-se da sentença proferida pelo Juiz Federal Roger Raupp Rios, nos processos nºs 96.0002030-2 e 96.0002364-6, da 10ª Vara da Justiça Federal, em 09/7/1996, cuja íntegra está publicada em minha obra “União Homossexual: o preconceito e a Justiça”, Editora Livraria do Advogado, 2003.

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