Maria Berenice Dias[1]
Pouco tempo atrás, era quase paradoxal conjugar duas expressões que até pareciam contraditórias: direitos humanos e AIDS. Enquanto os direitos humanos decantam as garantias fundamentais, o resgate da cidadania e o respeito à dignidade da pessoa, a AIDS, quando do surgimento da doença, foi saudada como sendo “enfim, a punição divina contra a sodomia”. É que, em um primeiro momento, foram identificados como população de risco os homossexuais, os usuários de drogas injetáveis e quem tinha vida sexual promíscua.
Passados vinte anos, a epidemia se alastrou de forma assustadora e, segundo a OMS, atinge hoje 42 milhões de pessoas no mundo. Desse número, 30 milhões encontram-se no continente africano e a metade dos infectados são mulheres. De tais dados se pode concluir que o vírus atinge, em sua maioria, negros, mulheres e homossexuais, segmentos sociais histórica e culturalmente discriminados, parcelas da população alvo da exclusão social.
A invisibilidade a que sempre foram submetidos todos os que refogem ao modelo masculino, branco e heterossexual permite reconhecer que não vivemos uma democracia. Mais da metade da população, pelo simples fato de pertencer ao sexo feminino, está praticamente alijada do poder, seu trabalho tem menos valor e sequer sua inviolabilidade corporal é respeitada. Outra parcela, que também supera a metade da população brasileira, é a de “não-brancos”, que são nominados das mais diversas formas, mas estão fora das universidades e em sua maioria vivem abaixo da linha da miséria. Igualmente não se pode ver uma democracia onde não há sequer o respeito à diversidade de inclinação sexual, pois quem não corresponde ao modelo da heterossexualidade não tem o direito a uma vida afetiva merecedora de proteção legal.
Descabe permitir o surgimento de mais um gueto de excluídos, constituído pelos portadores de HIV, integrado na sua maioria por marginalizados sociais. Ainda que os investimentos neste ano, em escala mundial, tenham alcançado a cifra de US$ 3 bilhões, seriam necessários, no mínimo, US$ 10 bilhões para prevenção e tratamento suficientes para reverter esse perfil sombrio.
A má vontade de alguns países em reconhecer a gravidade deste quadro e a resistência generalizada em adotar políticas públicas no combate a tão insidioso mal podem dar ensejo a uma interrogação cruel: será que se está deixando a AIDS realizar uma verdadeira faxina social?
Publicado em 02/12/2002.
[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões
Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
www.mariaberenice.com.br