Maria Berenice Dias[1]
Quem pariu que embale! Este é um antigo ditado que busca destacar, com cores ainda mais fortes, a exclusiva responsabilidade da mãe com relação à sua prole.
Claro que, em uma sociedade marcadamente patriarcal, as funções de maternagem só podiam mesmo ser exercidas pela mulher. Afinal, lhe fizeram acreditar que casar e ter filhos era o único caminho para ser feliz para sempre! Basta lembrar os brinquedos femininos: bonecas e panelinhas. Nada mais do que adestramento para ser a rainha do lar.
Com todos os avanços tanto no campo social como ante a fantástica revolução da medicina genética, muitas verdades ruíram e com elas algumas ditos. Não mais se pode dizer que a maternidade é sempre certa. Nem em presunção de paternidade se pode falar.
Desde o desenvolvimento e popularização dos modernos métodos de reprodução assistida, ninguém precisa casar para ter filhos. Sequer é necessário manter uma relação sexual. Agora qualquer pessoa pode realizar o sonho de ser pai ou de ser mãe, mesmo sem contribuir com material genético ou participar do processo reprodutivo. Foi de tal ordem a evolução que a identificação dos vínculos parentais não mais se pode buscar na verdade biológica. Pai não é mais o marido da mãe, como presume a lei. Nem ao menos é necessário que tenha “feito amor” com ela. Não é preciso qualquer contribuição sua para ser pai. Basta desejar ter um filho. Ele será seu.
Do mesmo modo, mãe não mais é aquela que carrega no ventre o filho fruto de uma relação sexual. Mesmo que não seja seu o óvulo, mesmo que não o tenha gestado, ainda assim pode concretizar o sonho de ser mãe.
As expressões, filho de proveta, barriga de aluguel, concepção medicamente assistida, gravidez por substituição, fertilização homóloga e heteróloga já se vulgarizaram e a palavra infertilidade já pode ser retirada dos dicionários. Como há a possibilidade de muitas pessoas se envolverem no processo reprodutivo, alguém pode ter vários pais e mais de uma mãe. Serve de norte para a identificação do vínculo parental a socioafetividade, que não mais pode se restringir a uma pessoa do sexo masculino e uma do sexo feminino no exercício da atividade paterna e materna.
Como a ciência anda sempre à frente da lei, o legislador não consegue acompanhar esses avanços. Invocando a bioética, categorias profissionais se precipitaram na regulamentação dos avanços por meio de normas de natureza disciplinar. A única norma que existe sobre a reprodução humana assistida não tem força de lei. Trata-se da Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina que, buscando harmonizar o uso das técnicas procriativas com os princípios da ética médica, regulamenta os procedimentos a serem observados pelas clínicas e médicos que se dedicam ao processo procriativos.
A Lei 11.105/05, a chamada Lei de Biossegurança, estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética. Fora tal, o Conselho Nacional de Saúde editou a Resolução 196/96 que dispõe sobre as pesquisas envolvendo seres humanos e a Resolução 303/00, para incluir o tema especial da reprodução humana. Nada mais existe.
O certo é que, desde o momento em que surgiu a possibilidade de retirar óvulos de uma mulher, fertilizá-los em laboratório e implantá-los no útero de outra, está assegurado a todos o direito de serem pais ou mães.
No entanto, de forma para lá de desarrazoada a Resolução do CFM limita a gestação de substituição aos parentes de até o segundo grau, bem como veda a contratação da gravidez mediante pagamento. Aliás, como forma de encobrir o próprio preconceito, os laboratórios invocam esta regra para negar a doação genética entre lésbicas, deixando de atentar que se trata de uma concepção homóloga.
A indigitada regra, editada em nome da ética, além de injustificada é para lá de inconstitucional. Ora, quem não tem mãe, sogra, irmã ou cunhada dispostas a ceder o útero, simplesmente não pode ter filhos. Descabido limitar a gestação por substituição ao âmbito da solidariedade familiar. E, se este é o critério, cabe atentar que o conceito de parentesco estende-se até o quarto grau. Assim, também são parentes tias e primas, nada justificando que não lhes seja permitido gerar os filhos de quem tem laços familiares. A afronta aos princípios da igualdade e de respeito à dignidade humana é flagrante. Como a família merece a especial proteção do estado, descabida a limitação imposta para que alguém constitua uma entidade familiar com filhos.
O ranço decorrente de origem judaico-cristã de sociedade torna reprovável e faz adquirir caráter repulsivo tudo o que envolve valor econômico. Porém, não há justificativa moral, ética ou religiosa que impeça alguém de ceder o próprio corpo para que outrem consiga realizar o sonho da maternidade.
De um modo geral, todo e qualquer serviço prestado por alguém tem valor econômico e merece ser devidamente remunerado. E, quase todo o emprego, ofício ou profissão envolve o uso do corpo, da inteligência ou do próprio talento. É o caso de contratar um médico para realizar uma cirurgia plástica ou um arquiteto para a reforma de sua casa. Em ambos as hipóteses a busca é de que alguém faça algo que realize o seu desejo de melhorar a imagem própria ou o aspecto de seu lar. Há a contratação de um profissional para realizar o sonho de ser mais. Estas tarefas há que serem remuneradas, pois houve a contratação do tempo e da habilidade de uma pessoa. Ora, tanto o médico quanto o arquiteto despendem energia e têm desgaste intelectual e físico para cumprir o contratado. Tais exemplos em nada se diferenciam de uma gravidez, que, inclusive, tem sequelas bem mais significativas. Estende-se pelo prazo de longos 9 meses, acarreta a deformação do corpo, incômodos de toda a ordem, além de submeter a gestante a um procedimento certamente doloroso: o parto, que a coloca em risco de vida. A gestante se sujeita a todos os desconfortos de uma gravidez para realizar o sonho de felicidade de outrem. Assim nada, absolutamente nada justifica a restrição a que este processo não possa ser alvo de remuneração. O impedimento a que tal serviço tenha caráter lucrativo ou comercial está ligado somente à desmesurada sacralização da ideia da maternidade. Equiparada a uma missão quase divina por assegurar a perpetuação da espécie e a mantença da vida, até parece que seria maculada por questões de ordem financeira.
No entanto, a possibilidade de alguém desempenhar a tarefa de gestar para outrem mediante o aluguel do próprio corpo não afronta qualquer princípio ético e nem subtrai da mãe a sublime tarefa de desdobrar fibra por fibra o coração e padecer no paraíso.
Publicado em 07/11/2009.
[1] Ex-desembargadora do TJRS
Advogada