Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoafetividade

Um novo direito: Direito Homoafetivo

Maria Berenice Dias[1]

 

Sumário: 1. Mirada histórica; 2. A sexualidade como direito; 3. Princípios constitucionalizados; 4. Uniões homoafetivas frente a omissão legal; 5. Caminhos a percorrer; 6. Referências bibliográficas.

 

  1. Mirada história

Cada época da história consagra determinados  valores culturais e tudo o que foge do modelo do “igual” acaba por ser rotulado de “anormal”, gerando um sistema de exclusões estigmatizantes. Essa visão engessadora não mais pode ser aceita nos dias de hoje, em que se vive em uma sociedade plural.

A homossexualidade sempre existiu.  O vocábulo homossexual tem origem etimológica grega, significando “homo” ou “homoe”, que exprime a idéia de semelhança, igual, análogo, ou seja, homólogo ou semelhante ao sexo que a pessoa almeja ter.

Na Grécia antiga, fazia parte das obrigações do preceptado “servir de mulher” ao seu preceptor, e isso sob a justificativa de treiná-lo para as guerras, em que inexistia a presença de mulheres.[2] Os atletas competiam nus, exibindo sua beleza física, nas Olimpíadas gregas, onde era vedada a presença de mulheres na arena, pois não tinham capacidade para apreciar o belo. Também nas manifestações teatrais os papéis femininos eram desempenhados por homens travestidos ou com o uso de máscaras – manifestações evidentemente homossexuais.[3]

A prática homossexual acompanha a história da humanidade e sempre foi aceita, havendo somente restrições à sua externalidade.[4] Só passou a ser repudiada pela sociedade por influências de ordem religiosa.  O maior preconceito contra a homossexualidade provém das religiões. A ideia sacralizada de família com fins exclusivamente procriativos levou à rejeição dos vínculos afetivos centrados muito mais do envolvimento mútuo. Toda relação sexual deveria tender à procriação. Daí a condenação da homossexualidade masculina por haver perda de sêmen, enquanto a homossexualidade feminina era considerada mera lascívia. A Igreja Católica, ao pregar que sexo se destina fundamentalmente à procriação, considera a relação homossexual uma aberração da natureza, uma transgressão à ordem natural, verdadeira perversão, baseada na filosofia natural de São Tomás de Aquino.

 

  1. A sexualidade como direito

A sexualidade é um direito fundamental que acompanha o homem desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria condição humana. Como direito do indivíduo, é um direito natural, inalienável e imprescritível. Ninguém pode realizar-se como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende a liberdade sexual, albergando a liberdade da livre orientação sexual. A sexualidade é um elemento integrante da própria natureza e abrange a dignidade humana. Todos têm o direito de exigir respeito ao livre exercício da sua sexualidade. Sem liberdade sexual, o indivíduo não se realiza, tal como ocorre quando lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais. O direito de tratamento igualitário independente da tendência sexual.

As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à inclinação sexual. A discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual.[5]

A orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições, o que configura afronta a liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano. Como todos os segmentos alvo do preconceito e discriminação social, as uniões homoafetivas se sujeitam à deficiência de normação jurídica, sendo deixados à margem da sociedade e à míngua do Direito.

 

  1. Princípios constitucionalizados

A regra maior da Constituição Federal é o respeito à dignidade humana, servindo de norte ao sistema jurídico nacional. A dignidade humana é a versão axiológica da natureza humana.[6] Tal valor implica dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas. Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei. Como bem explicita Konrad Hesse: o fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do estado de direito.[7]

O Estado Democrático de Direito tem por pressuposto o respeito à dignidade da pessoa humana, conforme expressamente proclama o art. 1º, III, da Magna Carta. O compromisso do Estado é calcado nos princípios da igualdade e da liberdade, consagrados no preâmbulo da norma maior do ordenamento jurídico, ao conceder proteção a todos, vedar discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade, assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…).

O artigo 5º da Constituição, ao elencar os direitos e garantias fundamentais proclama: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante o mesmo dispositivo, modo expresso, o direito à liberdade e à igualdade.

Rejeitar a existência de uniões homoafetivas é afastar o princípio esculpido no inc. IV do art. 3º da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado promover o bem de todos, vedada qualquer discriminação, não importa de que ordem ou de tipo. Conforme José Carlos Teixeira Giorgis:

A relação entre a proteção da dignidade da pessoa humana e a orientação homossexual é direta, pois o respeito aos traços constitutivos de cada um, sem depender da orientação sexual, é previsto no artigo 1º, inciso 3º, da Constituição, e o Estado Democrático de Direito promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades.[8]

Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.

 

  1. Uniões homoafetivas frente a omissão legal

Ainda que se conceitue família como uma relação interpessoal entre um homem e uma mulher, tendo por base o afeto, necessário reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são cunhados também por um elo de afetividade. Os relacionamentos afetivos, independentemente da identificação do sexo do par – se formados por homens e mulheres, ou só por mulheres, ou só por homens – são alvos de proteção, em razão da imposição constitucional do respeito à dignidade humana.

As uniões entre pessoas do mesmo sexo, mesmo que não previstas de modo expresso na Constituição e na legislação infraconstitucional, existem e fazem jus à tutela jurídica. A ausência de regulamentação impõe que as uniões homoafetivas sejam identificadas como entidades familiares no âmbito do Direito das Famílias. A natureza afetiva do vínculo em nada o diferencia das uniões heterossexuais, merecendo ser identificado como uma entidade familiar, pois tem como fundamento de constituição o mesmo alicerce presente nas demais: o afeto.

A ausência de leis, o conservadorismo do Judiciário e preconceitos de ordem moral, não podem levar à omissão do Estado nem servir de justificativa para negar direitos aos relacionamentos afetivos que não têm a diferença de sexo como pressuposto. É absolutamente discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento das uniões homossexuais. São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo, geram o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar inserção no âmbito jurídico. Para sua configuração, devem ser observados os mesmos requisitos legais que constituem a união estável (CC, art. 1.723). Porém, em razão da especificidade dessas relações, descabe exigir a mesma publicidade da convivência dos casais heterossexuais. Por serem alvo constante de preconceito, os homossexuais acabam buscando maior privacidade na hora de externarem o seu afeto, a fim de evitarem prejuízos, inclusive de ordem profissional. Assim, a convivência pública não cabe ser considerada como requisito para a configuração da união homoafetiva, mas meio de prova para o seu reconhecimento.

Classificar como juridicamente impossíveis as ações que tenham por fundamento uniões homossexuais é relegar situações existentes à invisibilidade, é ensejar a consagração de injustiças e autorizar enriquecimento sem causa. Nada justifica, por exemplo, deferir a herança a parentes distantes em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida ao outro, participando na formação do acervo patrimonial. Descabe ao juiz julgar as opções de vida das partes, pois deve cingir-se a apreciar as questões que lhe são postas, centrando-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo.

A distinção de sexos não pode ser invocada como pressuposto para a identificação da união estável. Dita diferença, arbitrária e aleatória, é exigência nitidamente discriminatória. O próprio legislador constituinte reconheceu a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes também como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado. Diante dessa abertura conceitual, nem o matrimônio nem a diferenciação dos sexos ou a capacidade procriativa servem de elemento caracterizador da família. Por consequência, não há como se ver uma entidade familiar somente na união estável ou no casamento entre pessoas de sexos opostos.

O casamento não mais serve para diferenciar a família. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois a falta não enseja sua desconstituição. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, não mais cabe excluir do conceito de família as relações homoafetivas. Excepcionar onde a lei não distingue é a forma mais perversa  de excluir direitos.

Conforme Paulo Lôbo, na Constituição atual, não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorria com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento”,[9] sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. E conclui de modo enfático: A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. A referência constitucional é norma de inclusão, que não permite deixar ao desabrigo do conceito de família – que dispõe de um conceito plural – a entidade familiar homoafetiva. [10]

Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter relação duradoura, pública e contínua, como se casadas fossem, formam um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem. Cabível identificá-la também com a união estável, geradora de efeitos jurídicos. Em face do silêncio do constituinte e da omissão do legislador, deve o juiz cumprir com sua função de dizer o Direito, atendendo à determinação constante do art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil e do art. 126 do Código de Processo Civil. Na lacuna da lei, ou seja, na falta de normatização, precisa valer-se da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito. Nada diferencia tais uniões de modo a impedir que sejam definidas como família. Enquanto não existir regramento legal específico, mister se faz a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam as relações que têm o afeto por causa: o casamento e a união estável. Abstraindo-se o sexo dos conviventes, nenhuma diferença há entre as relações homo e heterossexuais, porquanto existe uma semelhança no essencial, na identidade de motivos entre ambas. O óbice constitucional estabelecendo a distinção de sexos ao definir a união estável não impede o acréscimo dessa forma integrativa de um fato existente e não-regulamentado no sistema jurídico. O mesmo se dá em relação ao casamento. Todos são vínculos que têm igual propósito, qual seja, a concretização do direito fundamental à felicidade por meio do afeto. Assim, a identidade sexual não serve de justificativa para que se busque qualquer outro ramo do Direito que não o Direito das Famílias. Nos ensinamentos de Roger Raupp Rios:

A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo destinado originariamente a situação diversa, ou seja, comunidade formada por um homem e uma mulher. A semelhança aqui presente, autorizadora da analogia, seria a ausência de vínculos formais e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre entre os sexos opostos.[11]

Para colmatar as lacunas da lei há também a determinação de se fazer uso dos princípios gerais de direito. Devem ser invocados os princípios norteadores introduzidos pela Constituição, que impõem o respeito à dignidade e asseguram o direito à liberdade e à igualdade. O ordenamento jurídico estrutura-se em torno de certos valores, muitos dos quais estão postos em sede de princípios constitucionais, que devem informar a interpretação da legislação específica numa leitura incorporada pelos reclamos da atualidade histórica.

Quando inexistir lei, igualmente há a determinação de se atentar também aos costumes. Mas imperioso é que se invoquem os costumes atuais, que cada vez mais vêm respeitando e emprestando visibilidade aos relacionamentos das pessoas do mesmo sexo. As relações sociais são dinâmicas. Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado, encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário é pensar com conceitos jurídicos atuais, que estejam à altura dos tempos de hoje.

Também o art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil indica um caminho para o juiz: ele deve atender aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem comum. A interpretação, portanto, deve ser axiológica, progressista, na busca daqueles valores, para que a prestação jurisdicional seja democrática e justa, adaptando-se às contingências e mutações sociais.

A aversão da doutrina dominante e da jurisprudência majoritária a se socorrerem das regras legais que regem a união estável ou o casamento leva singelamente ao reconhecimento de uma sociedade de fato. Sob o fundamento de se evitar enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das Obrigações, o que acaba subtraindo a possibilidade da concessão de um leque de direitos que só existem na esfera do Direito das Famílias. Presentes os requisitos legais – vida em comum, coabitação, laços afetivos –, não se pode deixar de conceder às uniões homoafetivas os mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características. Como adverte João Baptista Villela: Sexo é sexo, patrimônio é patrimônio. Se, em geral, já é um princípio de sabedoria e prudência não misturá-los, aqui é definitivamente certo que um nada tem a ver com o outro.[12]

Tratar de modo diferenciado situações análogas acaba por gerar profundas injustiças. Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, em nome de uma moral sexual dita civilizatória, muita injustiça tem sido cometida. O Direito, como instrumento ideológico e de poder, em nome da moral e dos bons costumes, já excluiu muitos do laço social.[13]

Ignorar a realidade, deixando as uniões homoafetivas à margem da sociedade e fora do Direito não irá fazer a homossexualidade desaparecer. Impositivo o reconhecimento da entidade familiar constituída entre pessoas do mesmo sexo. Como diz José Carlos Teixeira Giorgis:

De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal, em que aquela se inclui.[14]

Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Bem questiona Paulo Luiz Lôbo: Afinal, que “sociedade de fato” mercantil ou civil é essa que se constitui e se mantém por razões de afetividade, sem interesse de lucro?[15]

 

  1. Caminhos a percorrer

As questões que dizem com a sexualidade sempre foram – e ainda são – cercadas de mitos e tabus. Os chamados “desvios sexuais”, tidos como afronta à moral e aos bons costumes, permanecem alvo da mais profunda rejeição. Ainda que a sociedade não aceite as uniões homoafetivas sem conflitos e persistam objeções morais, admoestações religiosas e posturas discriminatórias, fechar os olhos não faz desaparecer a realidade.[16] Esse conservadorismo preconceituoso acaba por inibir o legislador que se nega a aprovar leis sobre temas que fogem dos padrões sexistas dominantes, o que fomenta a discriminação e dá ensejo a enormes injustiças. Mesmo não sendo do agrado de muitos, os juízes não podem mais cerrar os olhos e simplesmente ignorar a existência das uniões homoafetivas.

Apesar da omissão legislativa, os homossexuais cada vez mais buscam espaço e respeito na incessante busca da felicidade. Começaram a se afirmar enquanto sujeitos, rechaçando os modelos divinos ou de protótipos pré-fabricados pela sociedade – aos quais nunca se encaixaram.[17] A sorte é que a jurisprudência vem avançando em vários aspectos e decisões corajosas cumprem a função renovadora do Poder Judiciário. Com o avanço da visibilidade dos homossexuais, já foi deferida inclusive indenização por danos morais e materiais a vítima do preconceito. [18]

A Constituição Federal – chamada Constituição Cidadã –, proclama a existência de um Estado Democrático de Direito. O núcleo do atual sistema jurídico é o respeito à dignidade humana, atentando aos princípios da liberdade e da igualdade. A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois diz com a conduta afetiva da pessoa e o direito de opção sexual.

Além dos argumentos de ordem constitucional, não se pode olvidar que o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assegura: todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, proibindo discriminação de qualquer espécie. A vedação à discriminação em razão de orientação sexual impede que o preconceito e a intolerância prevaleçam sobre o direito fundamental à igualdade substancial, que serve de âncora para um convívio social democrático, respeitada a dignidade de cada homem.[19]

É chegada a hora de modificar valores, abrir espaço para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos. A tônica do mundo de hoje é o respeito aos direitos humanos e a laicização da sociedade não mais permite que se negue a existência de um fato que está a merecer a tutela jurídica. O argumento do “pecado” é francamente incompatível com os princípios de liberdade religiosa e da laicidade do Estado (CF, art. 5º, VI[20] e art. 19, I[21]). O Estado laico não pode basear seus atos em concepções morais e religiosas, ainda que cultivadas pela religião majoritária, sob pena de desrespeitar todos aqueles que não a professam. Assim, as religiões que se opõem à legalização da união entre pessoas do mesmo sexo têm todo o direito de não abençoarem tais laços afetivos. Porém, o Estado não pode basear o exercício do seu poder temporal no discurso religioso, a fim de evitar grave afronta à Constituição e aos direitos fundamentais.[22]

O estigma do preconceito não pode ensejar que um fato social não se sujeite a efeitos jurídicos. Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável, caracterizado pelo amor e respeito recíprocos, com o objetivo de construir um lar, indubitável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei. Uma sociedade que se quer aberta, justa, livre, pluralista, solidária, fraterna e democrática, não pode conviver com tão cruel discriminação, quando a palavra de ordem é a cidadania.[23]

Não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém tem o direito de fechar os olhos, assumindo postura preconceituosa ou discriminatória para não enxergar essa nova realidade. Os aplicadores do Direito não podem ser fonte de grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões morais e religiosas. É necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos. Para isso, nada melhor que a qualificação de advogados e operadores do direito para trabalharem com este novo ramo do direito: o Direito Homoafetivo.

 

  1. Referências bibliográficas

BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

COSTA, Igor Sporch da. Igualdade na diferença e tolerância. Viçosa: UFV, 2007.

CZAJKOWSKI, Rainer. União livre: à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Paraná: Juruá, 1997.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

______. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Os alimentos nas uniões homoafetivas: uma questão de respeito à Constituição. IBDFAM. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=99>. Acesso em: 6 maio. 2009.

GIORGIS, José Carlos Teixeira. A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica. Porto Alegre, Revista da AJURIS, nº 88, t. 1, dez. 2002.

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.

LÔBO, Paulo. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania. O novo CCB e a Vacatio Legis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 89-107.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A Sexualidade Vista pelos Tribunais. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

RIOS, Roger Raupp. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual: o Direito Brasileiro e a Homossexualidade. Brasília, Revista CEJ do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.  nº 6, dez. 1998, p. 27-56.

SARMENTO, Daniel. Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo: perspectivas constitucionais. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: RTDC, n. 8, v. 32, out./nov. 2007, p. 29-72.

VANRELL, Jorge Paulete. Sexologia Forense. 2. ed. Leme: JH Mizuno, 2008.

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. São Paulo: Método, 2008.

VILLELA, João Baptista. Sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo? Belo Horizonte, Revista Jurídica Del Rey, n. 2, abr. 1998, p. 11-12.

 

Publicado em 20/10/2009.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Pós-graduada e mestra em Direito Processual Civil pela PUC-RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

 

[2] Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Manual da Homoafetividade, 44.

[3] Maria Berenice Dias, União homoafetiva: o preconceito & a justiça, 35.  É o jeito correto de escrever o nome do livro?

[4] Jorge Paulete Vanrell, Sexologia Forense, 172.

[5] Roger Raupp Rios, Direitos Fundamentais e Orientação Sexual, 29.

[6] Sérgio Resende de Barros, Direitos Humanos, 418.

[7] Konrad Hesse, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, 330.

[8] José Carlos Teixeira Giorgis, A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica, 244.

[9] Constituição Federal de 1967-69, art. 175.

[10] Paulo Lôbo, Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus, 95.

[11] Roger Raupp Rios, Direitos Fundamentais e Orientação Sexual, 30.

[12] João Baptista Villela, Sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo?, 12.

[13] Rodrigo da Cunha Pereira, A Sexualidade Vista pelos Tribunais, 24.

[14] José Carlos Teixeira Giorgis, A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica, 247.

[15] Paulo Lôbo, Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus, 95.

[16] Rainer Czajkowski, União livre: à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96, 170.

[17] Igor Sporch da Costa, Igualdade na diferença e tolerância, 56.

[18] Responsabilidade civil. Danos morais e materiais. Discriminação homossexual. Indenização. Presente o dever do requerido em indenizar os autores, vítimas de preconceito e ofensas verbais entre vizinhos, tendo por escopo a opção sexual dos ofendidos. Danos materiais e morais comprovados. Quantum indenizatório minorado, em atenção às peculiaridades do caso e aos parâmetros praticados pelo Colegiado. Ônus sucumbenciais redistribuídos. Apelações parcialmente providas. (TJRS, 5.ª C.Cív., AC 70014074132, Rel. Des.ª Ana Maria Nedel Scalzilli, j. 25.05.2007).

 

[19] Cristiano Chaves de Farias, Os alimentos nas uniões homoafetivas…

[20] CF, art. 5º, VI: É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

[21] CF, art. 19: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

[22] Daniel Sarmento, Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo…, 51.

[23] Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, 188.

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