Maria Berenice Dias[1]
Marianna Chaves[2]
Toda temática relativa à sexualidade parece ser revestida de uma certa “aura de silêncio”, provocando intensas inquietações e uma quase insaciável curiosidade. Acaba por existir a propensão de conduzir e de controlar o exercício da sexualidade, culminando com a tentação de a sociedade enxergar a moral puramente em termos de comportamento sexual. Note-se, porém, que a homossexualidade é atualmente, por muitos, vislumbrada como uma parte da personalidade de alguém, algo inerente à sua pessoa – como ter olhos verdes ou azuis, ser destro ou canhoto, etc. A identidade sexual deve ser vista como uma chave central para o livre desenvolvimento da personalidade humana e a orientação sexual não é um problema de escolha, opção, mas algo que está nas “profundas raízes da sexualidade humana”.
Fugindo-se dos dogmas enraizados na sociedade, se pode afirmar que o estágio atual da estrutura social traduz-se em uma modernidade líquida. Assim, diferentes maneiras mas de expressar e vivenciar o afeto, distintas formas de compartilhamento de vida emergem e demandam reconhecimento jurídico e da coletividade.
Assim, surge o questionamento: para que servem as leis? Indubitavelmente servem para reger a vida em sociedade. Isso é algo inquestionável. Mas, certamente, sua finalidade mais significativa é assegurar o tão propalado princípio da igualdade. Ou seja, a lei é indispensável para proteger os segmentos mais vulneráveis. Talvez seja este o seu escopo maior.
Todavia, não atentam os legisladores para esta responsabilidade manifesta, ao se omitirem de criar regras que, se destinem a inserir no âmbito da tutela jurídica quem é alvo da exclusão social.
Por um período incalculável, a homoafetividade foi estigmatizada, restando os homossexuais e os transexuais marginalizados, confinados num “universo paralelo”. Entretanto, nos últimos tempos a sociedade vem se mostrando um tanto mais tolerante e, paulatinamente, vem modificando a sua forma de encarar as relações entre iguais. Destarte, os homossexuais começaram a adquirir visibilidade no mundo hodierno e passaram a buscar justiça. Infelizmente, a postura omissiva de quem tem o dever de fazer leis é histórica. É suficiente relembrar o calvário sofrido para que o divórcio fosse inserido no sistema jurídico. Não obstante o reclamo social, passaram-se 27 anos para que o Congresso Nacional acabasse com a indissolubilidade do matrimônio. Tal fato também se deu com as uniões extramatrimoniais e a filiação catalogada de ilegítima. Falsos moralismos e preconceitos infundados impediam o seu reconhecimento.
Ainda bem que o silêncio do legislador não cala a Justiça. De há muito vêm os magistrados reconhecendo que a falta de leis não significa ausência de direitos, Assim acaba a jurisprudência tamponando as lacunas da lei e ditando pautas de conduta, que passam a guiar a vida em sociedade.
A atividade – legiferante – que deveria ser exercida pelo Legistativo, acaba sendo preenchida pela jurisprudência. Não poderia ser diferente! Como já dizia Norberto Bobbio, o sistema jurídico deve ser vislumbrado como “a visão da floresta, não da árvore isolada de seu contexto todo”. O jusfilófo italiano também já nos relembrava que é é lícito integrar uma “norma deficiente”, socorrendo-se do denominado “espírito do sistema, mesmo indo de encontro àquilo que resultaria de uma interpretação meramente literal”. Esse juízo nada mais é do que a aplicação dos ditames do art. 4º da nossa Lei de Introdução ao Código Civil. Assim, em face da enorme dificuldade de cometer injustiça, a justiça avança, construindo novos paradigmas. Mas a via judicial é demorada, quer porque a jurisprudência custa a se consolidar, quer porque as decisões, ainda que reiteradas, não têm efeito vinculante.
É imperioso dizer que os avanços, não suprem o direito à segurança jurídica que só a lei outorga, em especial no Brasil onde a norma escrita é incrivelmente prestigiada. Destarte, existe a factual e urgente necessidade de buscar a introdução da regulação das uniões entre pessoas do mesmo sexo – em todas as suas vertentes, com todos os seus direitos, deveres e consequências – no sistema jurídico brasileiro. O silêncio é a forma mais perversa de exclusão, pois impõe constrangedora invisibilidade que afronta alguns dos mais elementares direitos, como o direito à cidadania e à dignidade, base de qualquer Estado que se diga Democrático de Direito.
Para a cristalização dos vetores ditados pelo judiciário há ainda outra barreira que se mostra quase intransponível: a inacessibilidade dos julgamentos e a ausência de prestígio das decisões de primeiro grau. Apesar de todo o avanço tecnológico existente na sociedade moderna, a busca pela jurisprudência é uma tarefa praticamente irrealizável Seja pela falta de um sistema de informação unificado, seja pela má qualidade dos servidores dos tribunais, as pesquisas são inviáveis e, no mais das vezes, mal sucedidas.
Por mais inacreditável que possa parecer não há como saber como julgam todos tribunais brasileiros. As tentativas são frustrantes e exasperantes, e os resultados, na maioria dos sites dos tribunais, são nulos.
No tocante às questões de direito das famílias, então, as dificuldades só se intensificam. Sob a equivocada, falaciosa e transponível alegação de que as demandas tramitam em segredo de justiça, as decisões simplesmente não são disponibilizadas. Um singelo ato, como a exclusão do nome das partes se faz suficiente para preservar eficazmente as identidades e privacidade das mesmas.
Todos estes percalços serviram de força motriz para a construção de uma ferramenta poderosa de busca e acesso a material relativo à homoafetividade e transexualidade: www.direitohomoafetivo.com.br. Indispensável saber tudo o que a justiça já assegurou a homossexuais e transexuais. Trata-se de um projeto arrojado, cujo trabalho foi árduo e contou com a colaboração entusiasmada de muita gente. Os resultados foram surpreendentes. Basta atentar que já no ano de 1980 foi deferida a troca de nome de transexuais e desde 1989 a justiça federal concede direito previdenciário a parceiros do mesmo sexo. Mas há mais, muito mais. Data do ano de 1998 a primeira sentença deferindo a adoção homoparental. O surpreendente é que há decisões de todos os Estados, já chegando a mil o número de sentenças e acórdãos no banco de dados
Não foram olvidados os projetos de leis em tramitação, as normatizações existentes, além de exaustivo levantamento bibliográfico tanto nacional como internacional.
A preocupação com a regulação das uniões homoafetivas integra a agenda do pensamento jurídico mundial. Hoje, muitos países do mundo deixaram “cair a venda” outrora existente para ignorar os vínculos homoafetivos, e devem nos servir de exemplo. Assim, igualmente estão disponíveis a legislação e a jurisprudência estrangeiras mais emblemáticas.
A razão de ser de todo este trabalho não é só capacitar os profissionais a trabalharem com este novo ramo do direito. É muito mais consolidar as conquistas e mostrar que o Judiciário não é cega e tem coragem de fazer justiça. E esse anseio de justiça se conecta com a busca da felicidade, interligada com o reconhecimento de direitos igualitários e da sua dignidade, sem distinções de qualquer natureza.
Publicado em 10.11.2009.
[1] Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do RS; Presidenta da Comissão Nacional da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil; Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias – IBDFAM; Mestre em Direito Processual Civil pela PUC – RS; Advogada especialista em Direito Homoafetivo, Direito das Famílias e das Sucessões; www.mariaberenice.com.br
[2] Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra; Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa
Diretora do Núcleo de Relações Internacionais do IBDFAM – PB; Vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo da OAB-PB; Pesquisadora Assistente do Instituto de Investigación Científica de la Universidad de Lima – Perú; Membro da International Society of Family Law, da American BAR Association e da International BAR Association; Advogada