Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoparentalidade

Amor em dose dupla 2005

Maria Berenice Dias[1]

 

Pronunciamento na audiência pública na Câmara dos Deputados sobre a Lei Nacional da Adoção, no dia 13 de setembro de 2005, em Brasília-DF

 

 

Uma nova lei está para nascer.

Trata-se do Projeto de Lei nº 1.756/2003, que regula a adoção, emprestando celeridade e segurança ao prevalente interesse do Estado de cumprir com sua obrigação de garantir, com absoluta prioridade, a crianças e adolescentes, o direito a um LAR: Lugar de Afeto e Respeito.

No entanto, o Projeto está assumindo uma postura conservadora, ao tentar impedir a adoção homoparental. Admite a adoção por qualquer pessoa maior de 18 anos, independente do sexo ou estado civil (art. 3º), mas, para a adoção em conjunto, diz ser indispensável que os adotantes sejam casados ou mantenham união estável (art. 3º § 1º). Ainda que venham a doutrina e a jurisprudência de vanguarda reconhecendo a união homoafetiva como união estável, é nítida a tentativa de impedir que um casal de pessoas do mesmo sexo constitua uma família com prole.

O Projeto revela clara postura preconceituosa e discriminatória. Ademais, comete duas ordens de inconstitucionalidades: cerceia aos parceiros homossexuais o direito constitucional à paternidade e à maternidade, direito garantido a todos pela Constituição, ao deferir especial proteção à família, a reconhecendo como base da sociedade (art. 226). Também deixa de cumprir o dever, imposto ao Estado, de garantir a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar (art. 227).

Pelo jeito pretende o legislador impedir que significativa parcela da população, por manter vínculos afetivos estéreis, realize o sonho da filiação. Tal revela atitude punitiva, quase vingativa, como se gays e lésbicas não tivessem condições de cumprir os deveres inerentes ao poder familiar. Também acaba sendo negado, a milhões de crianças, o direito de abandonar as ruas, de sair dos abrigos, onde estão depositadas, sonegando-lhes o direito a um lar, roubando-lhes o direito de chamar alguém de pai ou de mãe.

Reproduzir as restrições que se encontram no Estatuto da Criança e do Adolescente vai levar os casais homoafetivos a continuar usando os modernos métodos de reprodução assistida, ao invés de tirarem da marginalidade crianças que o descaso, a violência, o abuso dos pais biológicos heterossexuais deixaram abandonados.

Mas talvez a pior seqüela dessa vã proibição é chancelar o engodo, é incentivar a burla à lei, a afronta à legislação, como já vem ocorrendo. As manobras que são arquitetadas para escapar do controle estatal acabam desprotegendo a quem a lei protege. Apenas um do par busca a adoção. O estudo social acaba sendo incompleto, pois não é feita entrevista com o parceiro. Nem sequer é visitada a casa onde a criança irá residir. Essas deficiências só podem vir em prejuízo da criança que vai viver com ambos, vinculando-se afetivamente com os dois.

A convivência, certamente, fará surgir a filiação socioafetiva que decorre do reconhecimento do estado de filho afetivo. Mas a ausência de vínculo jurídico gera a irresponsabilidade de quem exerce de fato funções parentais, o que vem em prejuízo da criança. Não terá ela qualquer direito com relação ao parceiro do adotante, a quem considera também pai ou mãe. Quer em caso de separação, quer em caso de morte, não fará jus nem a alimentos, nem a direitos sucessórios.

Isso afronta o princípio da proteção integral. Aliás, em nome desse princípio é que se tenta encontrar justificativas para negar o direito à adoção: que a criança não terá referenciais de ambos os sexos para seu saudável desenvolvimento; que será alvo da discriminação na escola; que poderá ter problemas de identidade sexual. Mas essa linha de argumentação não é jurídica. E as ciências comportamentais afirmam que o crescimento sadio de alguém não é comprometido pelo fato de ter pais do mesmo sexo.

Não se pode ir contra a marcha da história como está percebendo a Justiça. Ainda que de forma algo tímida, o Judiciário vem enlaçando pela juridicidade famílias que já se encontram enlaçadas pela afetividade.

O Projeto parece olvidar o que diz a Constituição: é dever da família e da sociedade, mas também do Estado proteger com absoluta prioridade o cidadão de amanhã.

E negar um lar não é proteger.

Também não é proteger realizar estudo social somente com quem se candidata à adoção e não revela sua orientação sexual.

Não se pode esquecer que a criança que espera a adoção foi abandonada pelos pais, ou foram eles destituídos do poder familiar. Normalmente já passou ela por dolorosas experiências de vida e anseia por alguém que a queira e a ame de verdade.

A função do Estado é proteger essas crianças, não podendo se deixar levar pelo preconceito e impedir a adoção homoparental.

A lei deve é delegar à Justiça a responsabilidade de avaliar a quem cabe conceder a chance para que uma criança chame de pai ou de mãe.

Se forem dois pais ou duas mães, tanto melhor, mais amor irá receber!

 

 

 

Publicado em 20/09/2005.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

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