Maria Berenice Dias
Advogada
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
Para dar efetividade aos direitos assegurados na lei civil, a lei processual identifica quem pode buscá-los em juízo, criando mecanismos procedimentais para garantir seu adimplemento.
Singelamente não é só isso, mas esta é a essência.
A legislação civil indica quem são os titulares e quem são os obrigados dos direitos, e as normas processuais lhes defere legitimidade para agir em juízo.
Existem possibilidades outras, como a previsão de algumas formas de intervenção de terceiros, de modo a permitir a inclusão ou a exclusão de terceiras pessoas no processo depois de judicializada a lide.
Entre outras figuras se encontram as seguintes modalidades:
– nomeação à autoria (CPC, art. 337, XI);
– assistência (CPC, arts. 119 a 124);
– denunciação da lide (CPC, arts. 125 a 129);
– chamamento ao processo (CPC, arts. 130 a 132);
– nomeação à autoria (CPC, art. 337, XI);
– oposição (CPC, arts. 682 a 686);
A participação de terceiros está atrelada ao objeto da demanda, que se calca em previsões do assim chamado direito material. Expressão simplista, mas que serve para o que se propõe, dentro do tema objeto desta reflexão.
O instituto dos alimentos é regulado no Código Civil (arts. 1.694 a 1.710). Entre os dispositivos que tratam de sua extensão, identificando quem tem ou não direito, encontra-se um artigo que parece criar uma nova modalidade de chamamento ao processo (CC, art. 1.698): Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.
Certamente este é um dos assuntos que ainda entretém a doutrina, o que faz surgir decisões judiciais para todos os gostos.
Para tentar sistematizar o que, efetivamente, o dispositivo diz – ou quis dizer –, cabe lembrar que é pacífico o entendimento de que, mesmo havendo uma pluralidade de obrigados para atender o encargo alimentar, inexiste solidariedade entre eles.
Nem o fato de o Estatuto da Pessoa Idosa afirmar que a obrigação alimentar é solidária, podendo a pessoa idosa optar entre os prestadores (art. 12), modificou o entendimento de que a exceção diz somente a quem tem necessidades a serem atendidas de forma urgente. Ao contrário do encargo decorrente do poder familiar, que se restringe a duas pessoas (ou mais, em caso de multiparentalidade), o dever de pagar alimentos a favor do idoso tem um espectro maior de obrigados: todos os seus descendentes.
Voltando ao tema dos alimentos entre cônjuges, companheiros e parentes (CC, art. 1.694), é unânime a assertiva de que, mesmo havendo vários obrigados, não há solidariedade entre eles. Apesar de estabelecida a reciprocidade obrigacional, existi uma ordem de preferencialidade (CC, art. 1.696): o encargo recai nos parentes mais próximos, uns na falta de outros. Ou seja, o dever dos parentes mais afastados dispõe de natureza subsidiária e complementar.
Via de consequência: não havendo solidariedade, não há como aquele que é acionado a prestar alimentos, chamar ao processo os demais coobrigados (CPC, 130, III): É admissível o chamamento ao processo aos demais devedores solidários, se for exigido de um ou alguns a dívida comum.
No entanto, diante da híbrida figura da lei civil, o parente que foi acionado em primeiro lugar, pode chamar a integrar a lide parentes de grau imediato (CC, art. 1.698).
Deste modo, ainda que a ação tenha sido dirigida contra parente de grau mais próximo, tem ele a faculdade de chamar a assumir o encargo, parentes mais distantes.
Este desencontro acaba por gerar resultado para lá de inusitado.
O parente que foi acionado não pode convocar os parentes do mesmo grau. Afinal, não existe solidariedade entre eles. E não há como se admitir o chamamento ao processo (CPC, art. 130, III). Porém – e surpreendentemente – o réu pode convocar parente de grau mais remoto, ainda que ele não seja o responsável primeiro pelo encargo alimentar (CC, art. 1.698).
É isso?
Claro que o intérprete não pode admitir que se chegue a tal incongruência. Indispensável encontrar uma forma de harmonizar esta equação, até porque, há desdobramentos outros.
Nitidamente o que pretendeu o Código Civil foi permitir o uso do mesmo processo para o credor de alimentos não amargar uma sentença de improcedência, por ter escolhido um parente sem condições de arcar com o encargo. E a única saída seria ingressar com nova demanda, mas, enquanto isso, permaneceria sem perceber alimentos. Resultado que pode, inclusive, comprometer sua própria subsistência. Afinal, durante quanto tempo tramitou a ação, até o réu comprovar a ausência de condições de arcar com o encargo? Tem mais. Os alimentos fixados na sentença retroagem à data da citação (LA, art. 13, § 2º). Portanto, se tiver que ingressar com nova ação, durante significativo lapso temporal, restaria em situação de vulnerabilidade alimentar.
Mas não é só. Caso o credor tivesse optado, desde o primeiro momento, por acionar o parente de grau mais remoto, se sujeitaria a ver o réu nomear à autoria algum parente de grau mais próximos (CPC, 337, IX). Mais um longo caminhar até aquele que foi nomeado assumir o polo passivo da ação, com a exclusão do réu originário.
Em face do alargamento dos legitimados levado a efeito pela lei civil, a única saída é admitir o chamamento ao processo dos parentes do mesmo grau, impondo o encargo alimentar a todos, de forma proporcional às respectivas possibilidades.
Ou é isso ou os demais parentes com igual obrigação, por pertencerem ao mesmo grau de parentesco, restarão excluídos de responsabilidade, e o encargo irá se transmitir aos parentes mais distantes.
Mais uma colocação.
Como o Estatuto da Pessoa Idosa, expressamente consagra a solidariedade alimentar de todos os parentes, o credor pode acionar qualquer deles (EI, art. 12). Nesta hipótese o réu pode chamar ao processo os demais coobrigados.
Caso seja acionado um parente de grau mais distante, este não poderá nomear à autoria quem tiver mais proximidade com o autor.
Este verdadeiro imbróglio decorre da enorme desatenção com que o tema é tratado. Quando há interesse de crianças ou adolescentes, o Código de Processo tenta ressuscitar a Lei de Alimentos – que é do ano de 1968 – (CPC, art. 694). Avocou a si somente a cobrança dos alimentos (CPC, arts. 528 a 533 e 911 a 913), sem prever um procedimento mais ágil a garantir a imediata imposição do encargo alimentar.
Estas e outras inconsistências só aumenta a responsabilidade de quem tem o encargo de buscar o resultado útil do processo. Afinal, este é o direito mais sagrado do ser humana: de viver com certa dignidade. Trata-se de um compromisso de todos que, um dia, assumiram o dever ético de que a justiça seja feita de forma ágil e efetiva.
Publicado em 23/08/2022.