Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: Adoção, ARTIGOS

Adoção e o direito à convivência familiar.

Maria Berenice Dias[1]

 

 

RESUMO: O Estatuto da Criança e do Adolescente prestigia excessivamente a filiação biológica, sem atentar ao atual conceito de parentalidade. Está mais do que consolidado o conceito de socioafetividade, que privilegia os vínculos de convivência sobre os elos consanguíneos, como elemento identificador da filiação. Na ânsia de manter os filhos junto aos pais ou aos parentes, relega a adoção como última e excepcional possibilidade.  As tentativas de reinserção na família natural ou de colocação na família extensa são tão demoradas que faz com que o encarceramento institucional perdure durante anos. Com isso milhares de crianças perdem a chance de serem adotados, o que desatende ao princípio constitucional que assegura, com prioridade absoluta, o direito à convivência familiar.

 

PALAVRAS CHAVES: Família. Socioafetividade. Adoção. Princípio do melhor interesse. Convivência familiar.

 

ABSTRACT: The Statute of Child and Adolescent overly prestiges the biological filiation, without considering the current concept of parenthood. It is more than consolidated the concept of socioaffectivity, wich privileges the bonds of coexistence over the consanguineous links, as an identifier element of the filiation. In the eagerness to keep the children with parents or relatives, it relegates adoption as the last and exceptional possibility. The attempts of reinsertion into the natural family, or placement in the extended family, are so time-consuming that the institutional incarceration endure for years. With this, thousands of children lose their chance of being adopted, which disregards the constitutional principle that ensures, with absolute priority, the right to a family living.

KEYWORDS: Family. Socioaffectivity. Adoption. Principle of the best interest. Family living.

 

SUMÁRIO: 1. Família: um conceito plural – 2. Os conceitos de família do ECA: 2.1 Família natural; 2.2 Família extensa ou ampliada; 2.3 Família guardiã; 2.4 Família substituta; 2.5 Família adotiva – 3. Adoção consensual? – E o direito à convivência familiar?

 

 

Entre o punhado de direitos e garantias assegurados, com prioridade absoluta, a crianças e adolescentes, encontra-se o direito à convivência familiar (CR, art. 227). A expressão dispensa conceituação: trata-se do direito de conviver no seio de uma família.

Por este motivo a Constituição reconhece a família como base da sociedade, concedendo-lhe especial proteção (CR, art. 226). A mesma proteção é assegurada às entidades familiares, reconhecidas como tal a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais com seus filhos, e que recebeu da doutrina o nome de família monoparental (CR, art. 226, §§ 3º e 4º).

O elenco não é taxativo, como afirmado reiteradamente pelos tribunais superiores, em decisões com eficácia erga omnes e efeito vinculante.

Diante deste leque de estruturas reconhecidas como família, cabe questionar a constitucionalidade de leis e de decisões judiciais que desatendem o direito à convivência familiar nas hipóteses em que os genitores não têm condições de exercer o poder familiar.

De todo descabido é deixá-los depositados em abrigos, durante anos, colocando toda sorte de empecilhos para que sejam adotados. Afinal, os filhos havidos por adoção dispõem de iguais direitos e qualificações, sendo proibida quaisquer designações discriminatórias (CF, art. 227, § 6º).

 

  1. Família: um conceito plural

Em face de forte influência religiosa, a família sempre teve um conceito sacralizado: a união indissolúvel de um homem e uma mulher ungidos, por intervenção divina, pelos laços do matrimônio. O exercício da sexualidade – chamado de débito conjugal – era pressuposto à validade do casamento, que tinha fim meramente procriativo.

O Estado acabou seguindo as mesmas regras ao regulamentar o casamento, única estrutura de convívio reconhecida como família.  Qualquer relacionamento não chancelado oficialmente era severamente punido. Sequer os filhos frutos dessas uniões podiam ser registrados.

Com o passar do tempo, muita coisa mudou, mas ainda sobram alguns resquícios obsoletos. A solenidade do casamento é envolta de exacerbado formalismo. As portas devem permanecer abertas. Há palavras sacramentais que precisam ser proferidas durante a celebração. Persiste a possibilidade de serem atribuídos efeitos civis ao casamento religioso. Também há a imposição legal de deveres conjugais, como o da fidelidade, absurda afronta à autonomia de vontade do casal.

Como o casamento é o contrato mais exaustivamente regulamentado por conta da enorme quantidade de normas cogentes sobre impedimentos, validade e eficácia, sua natureza jurídica sempre foi alvo de acirrados debates doutrinários. E ainda há quem o considere uma instituição.

Atentando às mudanças sociais e seguindo a trilha vincada pela Justiça, a Constituição da República esgarçou o conceito de família. Ao reconhecer também a união estável como entidade familiar, acabou com a hegemonia do casamento. A comunidade de um dos pais e os filhos retirou o exercício da sexualidade do conceito de família.

Diante da abertura constitucional o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)[2] promoveu a mais fantástica revolução no Direito de Família, que passou a ser chamado de “Direito das Famílias”. Ao sustentar que o elenco constitucional é meramente exemplificativo, desconstruiu o conceito da família centrado no casamento, na prática sexual e na procriação. Atribuído valor jurídico ao afeto, como princípio estruturante das relações familiares, os conceitos de conjugalidade e parentalidade foram redesignados.

A partir do momento em que a solidariedade, a responsabilidade recíproca e o princípio da afetividade ganharam relevo, novas estruturas de convívio passaram a ser reconhecidas como família. Afinal, atribuir obrigações e gerar direitos é a forma mais eficaz de impor comportamento ético a quem mantém um envolvimento afetivo.

Foi assim que, apesar da omissão do legislador, as uniões de pessoas do mesmo sexo foram inseridas no conceito de entidade familiar. Com o nome de famílias homoafetivas, a Justiça assegurou-lhes acesso ao casamento, à adoção e ao uso das técnicas de reprodução assistida. Enfim, o direito de constituírem uma família.

Já as uniões simultâneas e os relacionamentos múltiplos formando uma única estrutura familiar – com o nome de poliamor – ainda não são reconhecidos de forma pacífica pelos tribunais. Mas como estes vínculos existem, é uma questão de tempo inserir no laço jurídico quem elegeu um modo de amar que refoge ao modelo convencional.

Como a invisibilidade não gera obrigações, não reconhecer, não responsabilizar, deixar de atribuir efeitos jurídicos, acaba por incentivar tais práticas, e não coibi-las.

 

  1. Os conceitos de família do ECA

Para dar efetividade ao leque de garantias e direitos assegurados constitucionalmente a crianças e adolescentes, foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).[3] Uma lei que sequer guarda consonância com o conceito plural de família consagrado pela própria Constituição.

O ECA está em vigor há quase 30 anos e, apesar de reiteradamente submetido a reformas, continua privilegiando o vínculo genético para além do razoável.

 

2.1 Família natural

A Constituição assegura, com prioridade absoluta, o direito à convivência familiar (CR, art. 227). O ECA, no entanto, não só lê este dispositivo de forma engessada, como acaba por violar seu núcleo fundamental, o princípio do melhor interesse.

De fato, ao assegurar a crianças e adolescentes o direito de serem criados e educados no seio de sua família (ECA, art. 19), consagra a biologização do vínculo familiar, o qual chama de natural: comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes (ECA, art. 25).  Aliás, para a aplicação das medidas de proteção este é um dos princípios: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural  (ECA, art. 100, parágrafo único, X).

Seja qual foi o motivo que ensejou a intervenção estatal no âmbito familiar – maus-tratos, negligência ou abuso por parte dos pais –, é priorizada a manutenção dos filhos junto a eles. Ou seja, é mais prestigiado o direito dos pais e a manutenção da família natural, do que preservado o melhor interesse das vítimas dos próprios genitores.

Os filhos aguardam abrigados para que os pais tenham a chance de receberem a devida orientação por intermédio de equipe técnica interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar (ECA, art. 166, § 7º). Porém – desgraçadamente –, são mais do que precários os serviços e programas oficiais de proteção, apoio e promoção para que os filhos fiquem em suas famílias de origem. No entanto, têm se mostrado absolutamente infrutíferas as tentativas de ressocializar os pais, retirá-los da rua, afastá-los das drogas, os inserir no mercado de trabalho para que tenham condições de ficarem com os filhos.

Inclusive é atribuído ao Conselho Tutelar o dever de esgotar as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente junto à família natural, para só então representar ao Ministério Público para que promova a ação de perda ou suspensão do poder familiar (ECA, 136, XI). Ora, não há como delegar a conselheiros tutelares a tarefa de tentar manter os filhos, em situação de vulnerabilidade, junto à família. O encargo cabe ser assumido por equipes técnicas mediante a realização de estudos psicossociais, com a apresentação de laudos e relatório. E, sem estes subsídios, certamente o Ministério Público não terá como promover a ação de perda ou suspensão do poder familiar, pela só representação encaminhada pelo Conselho Tutelar.

 

2.2 Família extensa ou ampliada

Depois de muito insistir para que os genitores acolham os filhos de volta, parte-se na busca de algum parente. Esta simplista e irresponsável solução decorre da equivocada crença de que se devem manter os vínculos biológicos a qualquer custo.

Quando reconhecida a impossibilidade de permanência dos filhos junto aos pais, a lei determina que se saia à caça de algum membro da chamada família extensa ou ampliada: aquela que se estende para além da unidade de pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (ECA, art. 25, parágrafo único e art. 50, § 13, II).

Pela própria definição de família extensa, resta evidenciado que não existe correlação com os conceitos da lei civil. O parentesco se estabelece na relação de ascendentes e descendentes (CC, art. 1.591) e entre colaterais até o quarto grau (CC, art. 1.592). A expressão “ou outra origem” foi inserida na conceituação de parentesco (CC, art. 1.593), para alocar os vínculos de filiação socioafetiva, o que acabou ensejando o reconhecimento da multiparentalidade.

Para merecer o qualificativo de família extensa, é indispensável um elemento a mais: a convivência e a presença de um elo de afinidade e afetividade entre eles. Quando se trata de recém-nascido, é um  equívoco buscar alguém da família que o queira. Quem acabou de nascer não tem vínculo com ninguém, o que dispensa esta longa e ineficaz providência, que só aumenta o tempo em que o bebê ficará abrigado.

O encaminhamento de crianças e adolescentes à institucionalização é acompanhado por uma Guia de Acolhimento, na qual deve constar  os nomes de parentes ou de terceiros interessados em tê-los sob sua guarda (ECA, art. 101, § 3º, III). Assim, nada justifica que a busca da família extensa se estenda por seis meses (ECA, art. 19-A). Pela utilização do verbo no tempo futuro, trata-se de prazo peremptório. No entanto, o inadimplemento deste prazo – já por si excessivo – é cotidianamente ultrapassado, sem gerar qualquer consequência, o que faz com que ditas “diligências” se eternizem.

As dificuldades decorrem da falta de identificação de quem deve assumir este encargo investigativo. Às claras que não compete ao juiz, ao escrivão, aos oficiais de justiça, nem ao promotor ou às autoridades policiais, e muito menos aos defensores públicos ou aos advogados  saírem no encalço de um parente que deseje assumir a guarda dos filhos que foram alijados da convivência dos pais biológicos. Aliás, se alguém tivesse interesse em assumir esta responsabilidade, certamente não teria ocorrido a institucionalização.

Na busca da família extensa, os primeiros lembrados são sempre os avós. Estes, no entanto, não podem adotar os netos. Dito impedimento existe também com relação aos irmãos (ECA, art. 42, § 1º). A eles – e de modo geral aos demais parentes – é deferida apenas a guarda, o que gera uma condição jurídica das mais precárias. Quem está sob a guarda de outrem, dispõe apenas de direitos previdenciários (ECA, art. 33, § 3º). Nada mais. Caso o guardião venha a falecer não tem o “guardado” direito nem a alimentos e nem a direitos sucessórios.

No mais das vezes, os parentes – que sequer conheciam a criança ou o adolescente e nem sabiam do abrigamento –, por solidariedade ou piedade, acabam concordando em assumir a guarda. Ausente prévio vínculo de convivência e afetividade, e sem qualquer preparação ou acompanhamento, depois de um tempo, eles acabam desistindo. Daí as frequentes devoluções. Consabido que as consequências são para lá de nefastas para quem nutriu a esperança de ter uma família. Sentem-se novamente rejeitados.

De qualquer modo, continuar vivendo no mesmo ambiente familiar dos genitores, faz com que o passado esteja sempre presente. Não terá um lar, um pai, uma mãe; dois pais ou duas mães. Somente terá avós, tios ou o parente que o acolheu. Assim, sempre sofrerá o estigma de ser filho de quem não o quis. Não há dúvida que este será o sentimento quando encontrar a mãe nas reuniões de família, muitas vezes com outros filhos.

 

2.3 Família guardiã

Outra possibilidade de questionável segurança, poucas garantias e nenhum direito, é a colocação de crianças e adolescentes sob guarda,  Independe da situação jurídica (ECA, art. 28).

Por falta de definições precisas, há distinções difíceis de entender entre guarda de fato e guarda jurídica; guarda provisória e guarda definitiva.

O instituto destina-se a regularizar a “posse de fato” de crianças e adolescentes (ECA, art. 33, § 1º). Nos procedimentos de adoção é concedida a guarda provisória e quem estiver habilitado a adotar (ECA, art. 19-A, § 4º).

Também à família extensa é concedida a guarda. Esta precária situação pode se perpetuar, até porque ascendentes e irmãos constituem família extensa e não podem adotar. Quanto aos demais parentes, que concordam em tê-los sob sua guarda, não é possível obrigar a adotá-los. Dai o enorme número de devoluções pela chamada família extensa.

Deferida a guarda, é feita a entrega ao interessado, mediante termo de responsabilidade de bem e fielmente desempenhar o encargo (ECA, art. 32 e art. 167, parágrafo único).

Apesar de a guarda obrigar à prestação de assistência material, moral e educacional, frágil é o vínculo jurídico que se estabelece entre eles. A criança ou adolescente goza da condição de dependente, somente para fins previdenciários (ECA, art. 33, § 3º). A assertiva constante no dispositivo de que esta condição serve para todos os fins e efeitos de direito, é equivocada. Quem está sob guarda, não tem direito a alimentos ou à herança do guardião, no caso de seu falecimento. A única possibilidade é que ocorra o reconhecimento judicial de um vínculo de filiação socioafetiva. Mas tais direitos não decorrem da guarda, mas da consolidação da posse de estado de filho.

É de competência da Justiça da Infância e da Juventude apreciar os pedidos de guarda (ECA, art. 148, parágrafo único, a). Para a concessão da guarda provisória deve ser realizado estudo social ou, se possível, perícia por equipe interprofissional (ECA, art. 167).

Os participantes do programa de acolhimento familiar recebem a criança mediante guarda, podendo perceber subsídios e incentivos do poder público (ECA, art. 34 e art. 50, § 11).

A perda ou modificação da guarda depende de procedimento judicial (ECA, art. 101, § 9º e art. 148, parágrafo único, a). Neste caso é obrigatória, desde que possível e razoável, a oitiva da criança ou adolescente (ECA, art. 161, § 3º).

O descumprimento dos deveres decorrentes da guarda configura infração administrativa sujeita à multa (ECA, art. 249,).

Decretada a extinção do poder familiar, é determinada a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la (ECA, art. 19-A, § 4º). Deferida a guarda para fins de adoção, não mais cabe à família o exercício do direito de visitas (ECA, art. 33, § 4º).

O adotante que recebeu o adotado mediante guarda provisória deve promover a ação de adoção no prazo de 15 dias (ECA, art. 19-A, § 7º).

O estágio de convivência pode ser dispensado somente se o adotando já estiver sob ou guarda legal do adotante. Se a guarda for de fato, não (ECA, art. 46, §§ 1º e 2º).

A adoção pode ser concedida, sem atendimento à ordem preferencial do cadastro, a quem estiver cadastrado, já tendo recebido a guarda legal de criança maior de três anos de idade (ECA, art. 50, § 13, III).

A repulsa à adoção é de tal ordem que, havendo motivo grave, o juiz, ouvido o Ministério Público, pode decretar a suspensão do poder familiar, liminar ou incidentalmente, até o julgamento definitivo da causa. Nessa hipótese, porém, a criança ou o adolescente é confiado a “pessoa idônea”, mediante termo de responsabilidade (ECA, art. 157). Certamente melhor seria a concessão da guarda provisória, a quem esteja habilitado a adotá-las.

 

2.4 Família substituta

O ECA 25 vezes fala em família substituta e lhe dedica dois capítulos: “Da família substituta” (ECA, arts. 28 a 32) e “Da colocação em família substituta” (ECA, arts. 165 a 170). A expressão não pode ser mais imprópria. Além de não explicitado que família é esta, não tem definição e nem se consegue identificar a que estrutura se refere. Há somente uma restrição: quem não tem condições de oferecer ambiente familiar adequado, não pode ser admitido como família substituta (ECA, art. 29).

Pelo que está previsto na lei, a colocação em família substituta depende de pedido, mediante o atendimento a uma série de requisitos (ECA, art. 165). Pode ser feita por algum parente, devendo ser levado em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade (ECA, art. 28, § 3º). Caso os pais tenham aderido, por escrito, ao pedido de “colocação em família substituta”, o pedido pode ser feito diretamente em cartório, dispensada a presença de advogado (ECA, art. 166). Depois disso, os pais são submetidos a verdadeira lavagem cerebral (ECA, art. 166 e § 2º). Precisam ratificar o pedido em audiência (ECA, art. 166, § 1º, I), sendo garantido o direito de arrependimento, até 10 dias após a sentença que decreta a extinção do poder familiar (ECA, art. 166, § 5º).

Este esdrúxulo procedimento denominado de “pedido de colocação em família substituta” confunde adoção e guarda provisória (ECA, art. 166, § 1º, I e 167).  Portanto, cabem alguns questionamentos. Trata-se da hostilizada adoção direta? É uma forma de burlar os famigerados cadastros?  É possível cumular pedido de colocação com ação de adoção? Como o pedido é de colocação em família substituta, pode o juiz decretar a extinção do poder familiar? E quando o pedido é formulado por ascendente ou irmão – que não podem adotar –, a criança ficará sem o nome dos pais no registro de nascimento? Entre o pedido de colocação em família substituta e a concessão da guarda (ECA, art. 167, parágrafo único), onde a criança permanece?

Todo este imbróglio certamente decorre do fato de, na última reforma do ECA, ter sido admitida a entrega voluntária do filho à adoção (ECA, art. 19-A), na vã tentativa de impedir as chamadas adoções diretas.

Os conceitos de família natural, família extensa e família substituta são distintos. Apesar da falta de definições e maiores explicitações – fruto do emaranhado de remendos a que o ECA foi submetido – é possível fazer algumas assertivas.

A colocação em família substituta é medida excepcional (ECA, art. 19). Independe da situação jurídica da criança ou adolescente, inclusive para fins de adoção (ECA, art. 28). Sempre que evidenciada situação de vulnerabilidade, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis (ECA, art. 98, II), a colocação em família substituta pode ser aplicada como medida de proteção, mesmo antes da propositura da ação de destituição do poder familiar (ECA, art. 101, IX).

Estrangeiros somente podem ser admitidos como família substituta para fins de adoção (ECA, art. 31), hipótese em que é intitulada de “família adotiva” (ECA, art. 51, § 1º, I).

O acolhimento institucional e a colocação em família acolhedora também são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para a reintegração familiar. É necessária a colocação em família substituta para reduzir o período de institucionalização (ECA, art. 101, § 1º). Esgotados os recursos para a manutenção na família natural ou extensa, mostrando-se esta solução comprovadamente inviável, cabe a colocação em família substituta (ECA, art. 88, VI e art. 92, II).

Nas situações de abrigamento, a cada três meses, deve o juiz decidir pela reintegração familiar “ou” pela colocação em família substituta (ECA, art. 19, § 1º). Ainda assim, a permanência em situação de acolhimento pode se perpetuar. Apesar de ser estabelecido o prazo máximo de 18 meses, há uma ressalva: salvo a necessidade de atender ao seu melhor interesse (ECA, art. 19, § 2º).

Para ocorrer a colocação em família substituta, deve o juiz tomar por base relatório de equipe técnica que tenha concluído pela impossibilidade de reintegração familiar (ECA, art. 19, § 1º). Para tal deve haver gradativa preparação do adotando e posterior acompanhamento (ECA, art. 28, § 5º).

Este relatório é chamado de PIA – Plano Individual de Atendimento (ECA, art. 101, § 4º). Depois de exauridas as tentativas de reinserção na família natural ou extensa, o relatório, com descrição pormenorizada das providências tomadas, é enviado ao Ministério Público (ECA, art. 101, § 9º), para, no prazo de 15 dias, propor a ação de destituição do poder familiar.

Deste modo, quando da propositura da ação de destituição do poder familiar, necessário que o Ministério Público requeira, em sede de tutela de urgência de natureza antecipada, a concessão da guarda à família habilitada à adoção. Afinal, somente propõe a ação se estiver convicto da necessidade de desligamento dos pais da vida dos filhos.

Omisso o agente ministerial, a determinação de colocação em família adotiva deve ocorrer liminarmente, de ofício. Afinal, a qualquer tempo pode o juiz, em face do relatório da equipe interdisciplinar determinar a colocação em família substituta (ECA, art. 19, § 1º). Com mais razão esta medida cabe ser tomada quando esgotadas as providências para a recolocação na família natural.

Descabido que persista a odiosa prática de só conferir a guarda para fins de adoção após o trânsito em julgado da sentença de destituição do poder familiar. Cabe atentar que a apelação está sujeita à reconsideração do juiz (ECA, art. 198, VII) e não dispõe de efeito suspensivo (ECA, art. 199-B).

Instruído o processo com relatório subscrito pelos técnicos da entidade, afirmando a impossibilidade de reintegração da criança ou do adolescente à família de origem, de todo desnecessária a renovação, em juízo, de novos laudos ou perícias. Até porque, de modo geral, são realizados pelos mesmos profissionais.

A tramitação da ação se prolonga no tempo. Na maioria das vezes, com desarrazoado recurso da Defensoria Pública. Afinal, comprovado nos autos que os genitores não têm como desempenhar os deveres inerentes ao poder familiar, dificultar a destituição acaba impossibilitando que sejam adotados. Cresceram e se tornaram “inadotáveis”, expressão horrível para designar quem ninguém quer. Deste modo, faltaria ao recurso interesse recursal. Ainda que o juízo de admissibilidade esteja a cargo do relator (CPC, art. 1.010, § 3º), a apelação não dispõe de efeito suspensivo.

 

2.5 Família adotiva

Na última reforma a que foi submetido o ECA,[4] por cinco vezes, foi inserida a expressão “família adotiva”. Em dois dispositivos, simplesmente houve mera troca de palavras: de família substituta para família adotiva (ECA, art. 51, § 1º, I e art. 100, parágrafo único, X). As demais referências não define o que seja família adotiva (ECA, art. 19-B, § 4º; art. 51, § 1º, II e art. 197-C, § 3º). Certamente não se confunde com quem já se encontra cadastrado à adoção. Também não diz com a pessoa ou casal já reconhecido como apto a adotar determinada criança, quando superadas as fases de aproximação e depois de decorrido o estágio de convivência.

Basta atentar ao princípio que dá prevalência a medidas que mantenham ou reintegrem crianças e adolescentes na família natural ou extensa. E, somente quando tal não for possível, é que deve ser promovida a integração em família adotiva (ECA, art. 100, parágrafo único, X).

À mesma conclusão se chega na adoção internacional, que somente terá lugar quando esgotadas as possibilidades de colocação em família adotiva brasileira (ECA, art. 51, § 1º, II).

 

  1. Adoção consensual?

A grande novidade desta última reforma do ECA foi admitir a entrega voluntária do filho à adoção, na tentativa de impedir as chamadas adoções diretas.  A gestante ou a mãe, que manifeste interesse em entregar o filho à adoção, deve fazê-lo judicialmente (ECA, art. 19-A). É admitido o sigilo da entrega (ECA, art. 19-A, § 5º), possibilidade que se choca com o direito do adotado de conhecer sua origem biológica (ECA, art. 48).

Apesar da boa intenção, a novidade não surtiu o efeito esperado. O procedimento é praticamente inexequível.

Antes ou depois do nascimento do filho, a genitora é encaminhada ao Juizado da Infância e Juventude. Ela não precisa estar acompanhada de advogado, para se apresentar no balcão do fórum dizendo que deseja entregar o filho à adoção. Tomada a termo sua manifestação, é instaurado um procedimento.

O expediente deve ser encaminhado à equipe interprofissional, uma vez que a gestante ou a mãe deve recebe orientações e esclarecimentos sobre a irrevogabilidade da medida (ECA 166, § 2º), tendo direito à assistência psicológica no período pré e pós-natal (ECA 8.º § 5.º).

Recebida a avaliação, se não houver pedido de sigilo (ECA 19-A § 5º e 166 § 3º) pelo prazo de 90 dias, prorrogável por igual período, é feita a busca da família extensa (ECA 19-A § 3º).

Quando não houve indicação do genitor ou de alguém da família extensa para receber a guarda (ECA 19-A § 4º), depois do nascimento, o juiz deve designar audiência no prazo de 10 dias da data da entrega da criança (ECA 19-A § 5º e 166 § 1º I).

Na solenidade, na presença do Ministério Público, a mãe ou os pais, devidamente assistidos por advogado ou defensor, serão obrigatoriamente ouvidos (ECA 161 § 4º), garantida a livre manifestação de vontade (ECA 166 § 3º).  Caso for ratificada a concordância com a adoção, o juiz extingue o poder familiar (ECA 166 § 1º II).

Na hipótese de não comparecerem à audiência nem o genitor e nem representante da família extensa, para confirmar a intenção de assumir o poder familiar ou a guarda, o juiz suspende o poder familiar da mãe, e a criança será colocada sob a guarda provisória de quem esteja habilitado a adotá-la (ECA 19-A § 6º).

Ainda assim, em até 10 dias após a sentença, pode haver a desistência da adoção (ECA, art. 166, § 5º).

Este procedimento não deve demorar mais de 120 dias (ECA 163).

Existe também a possibilidade de colocação de criança em família substituta, inclusive para fins de adoção, quando alguém – que tenha ou não algum parentesco com a criança – requerer a medida (ECA 165 II) e os pais tiverem aderido expressamente ao pedido. O requerimento pode ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado (ECA 166).

Há mais uma hipótese em que pode haver a adoção, sem atendimento à ordem preferencial do cadastro. A quem detiver a guarda legal de adolescente ou de criança maior de três anos de idade, estando devidamente habilitado.  Basta comprovar a presença de laços de afinidade, afetividade e que e não seja constatada a ocorrência de má-fé  (ECA 50 § 13 III).

 

  1. E o direito à convivência familiar?

Olvidam-se todos que o mais importante para crianças e adolescentes é a constituição de um vínculo de filiação afetiva (ECA, art. 19; art. 31; art. 39, § 1º; art. 43 e art. 45).

No entanto, a adoção é estigmatizada de tal forma a ponto de ser considerada uma opção excepcional, à qual se deve recorrer somente quando esgotados todos os recursos de manutenção do filho junto à família natural.

Na ânsia de manter os elos consanguíneos, deixa-se de atentar ao melhor interesse de quem se encontra em situação de abandono, negligência ou maus tratos. Ora, relegar a adoção como medida excepcional, impede a busca imediata para a inserção em uma estrutura familiar que já se encontra previamente habilitada pela justiça.

Há restrições inaceitáveis. Quem está cadastrado à adoção, não pode participar do programa de acolhimento familiar (ECA, art. 34, § 3º).

E nem do programa de apadrinhamento. Não é possível esquecer que participam do programa crianças ou adolescentes com remotas possibilidades de inserção familiar ou colocação em família adotiva (ECA, art. 19-B, § 4º). Assim, de todo descabido impedir a adoção pelos padrinhos, quando constituído um vínculo de filiação socioafetiva entre eles.

Ainda bem que, atentando ao princípio do melhor interesse, alguns juízes admitem a adoção pelos padrinhos, bem como que os candidatos à adoção participem do programa.

Talvez o mais significativo seja atentar que, quando a genitora não tem condições de manter o filho em sua companhia, seu desejo é entregá-lo à adoção. Não quer que sejam convocados os parentes para atribuir-lhes a guarda. Aliás, houvesse tal intenção ou possibilidade, a mãe não a teria entregado à Justiça. Muito menos, ela quer que o filho fique depositado em um abrigo por um prazo indefinido. Seu sonho é que ele viva em uma família, tenha o lar que ela não conseguiu lhe garantir.

E este deve ser o propósito de todos que tem a responsabilidade de cumprir o designo constitucional de garantir a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar.

 

 

Publicado em 01/06/2019.

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo

Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,

Pós-graduada e Mestre em Processo Civil

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

Presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM

[2] www.ibdfam.org.br

[3] Lei 8.069/1990.

[4]  Lei nº 13.509/2017.

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