Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Direito à felicidade

Dicionário dos ‘Antis’: A cultura brasileira em negativo.

Maria Berenice Dias[1]

 

ANTIAFETO – substantivo, masculino, singular.

Esta palavra existe? Não está dicionarizada. Mas existe. Antiafeto é negar que o afeto é uma ação, uma conduta; é cuidado, proteção e assistência, a ponto de receber força normativa e tornar-se o princípio balizador de todas as relações jurídicas da família.[2]

Apesar de a razão de existir da sociedade e do próprio estado seja a proteção das pessoas, são quem, de modo mais escancarado, adotam posturas antiafeto.

No mais das vezes, o estado tenta impor pautas comportamentais de controle da organização social, sem atentar ao sentimento, aos sonhos, ao desejo das pessoas. Com isso, acabam excluindo do laço jurídico vínculos afetivos pelo só fato de escaparem do modelo eleito pela sociedade como sendo o único correto. Que todos devem cegamente seguir e cumprir.

Os resultados são perversos, pois condena à invisibilidade a vida como ela é.

Os exemplos são muitos. E assustadores.

Em face de influências religiosas, a lei buscava preservar e proteger exclusivamente as famílias constituídas pelos “sagrados laços do matrimônio”. Tudo o que pudesse comprometer a paz familiar era sumariamente descartado.

Havia toda uma classificação dos filhos, que recebiam rótulos pejorativos. Somente eram reconhecidos os que eram fruto de uma família matrimonializada. Os demais não. Chamados de “ilegítimos”, os filhos nascidos fora do casamento, não tinham direito de que constasse o nome do pai no registro de nascimento. Não podiam usar o seu sobrenome. Pelo jeito, não tinham sequer o direito de viver, pois não percebiam alimentos e nem lhes era assegurado direitos sucessórios do genitor.  O filho era penalizado quando ilegítima havia sido a conduta do pai, que descumpriu o dever de fidelidade envolvendo-se em uma aventura extramatrimonial.

Como o casamento era indissolúvel, as pessoas só podiam casar uma vez. Deviam ficar juntos até a morte, mesmo na doença, da pobreza e na tristeza. O chamado “desquite” autorizava a separação de corpos, mas não rompia a sociedade conjugal. Esta marginalização, de nítido caráter punitivo, tinha por objetivo obrigar as pessoas a permanecerem casadas. Quem não cumprisse esta determinação era condenada a viver sozinha, a não ser feliz.

Por isso os vínculos afetivos constituídos fora do casamento não eram considerados uma família.Independente do tempo de convivência, do número de filhos, ficavam à margem do Direito das Famílias e das Sucessões. Tais uniões – com o nome de “concubinato” – eram consideradas meras sociedades de fato. Via de consequência, não existia direito a alimentos, direitos previdenciários ou sucessórios.  Uma resposta nitidamente antiafeto.

Ainda que os tempos tenham mudado, se esteja vivendo sob a égide de uma Constituição encharcada de princípios, de modo a assegurar a dignidade das pessoas, persistem posturas excludentes.

Basta atentar às uniões de pessoas do mesmo sexo. Rejeitadas pela sociedade, as pessoas LGBTI – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, sempre foram obrigadas a viver dentro do armário. Sem direito de constituírem uma família, terem filhos. Seus relacionamentos eram invisíveis. Uma vida inteira de vida em comum não garantia nada. Falecido um dos parceiros, o outro era sumariamente despejado da casa que também era sua. Não lhe era assegurado o direito de moradia. Muito menos direito à herança. Mesmo que tivessem amealhado bens juntos, estes ficavam para parentes distantes. O sobrevivente sequer tinha direito a pensão previdenciária.

Diante da omissão do legislador – que tem resistência de editar leis que desagradem a maioria do seu eleitorado e possa comprometer sua reeleição – acabou a justiça suprindo esta lacuna. Foi utilizada a expressão homaofetividade para vincar que é o afeto o elemento identificador destas relações familiares. E foi assim que o Supremo Tribunal Federal agasalhou as uniões homoafetivas no âmbito do Direito das Família.

Os transgêneros, por sua vez, não tinham o direito de adequarem seu nome e sexo à sua identidade sexual. Expulsos de casa muito cedo, sofriam bullying na escola. Em face da evasão escolar, com baixa escolaridade, nunca tiveram acesso ao mercado de trabalho.  Ou seja, não podiam ser quem eles eram, pelo simples fato de se afastarem do binarismo de gênero que a sociedade impõe. Mais uma fez foi a justiça que lhes garantiu os direitos de cidadania: a troca da identidade diretamente junto ao cartório do registro civil. Administrativamente, bastando a autodeclaração. Assim foi vencida a injustificável resistência estatal de garantir o respeito, a preservação do direito à vida digna ao segmento mais vulnerável da população.

Mas há mais. Outras realidades existem e que ainda estão fora da tutela do estado.  As famílias plurais continuam penalizadas. Ainda que uniões simultâneas seja uma realidade. Homens conseguem a façanha de ter duas famílias ao mesmo tempo. Desdobram-se entre uma e a outra casa. Vivem de cá para lá e de lá para cá. De um modo geral têm filhos com as duas mulheres e mantém ambas as famílias. Está errado? Certamente nesta receita há infidelidade, há descumprimento do dever de lealdade, há mentiras. Mas estas famílias existem.

Apesar da rejeição social, a lei não penaliza quem assim age. Ao contrário. Incentiva tal postura, ao reconhecer apenas um dos relacionamentos. Como não impõe deveres e nem assegura direitos com relação às demais – pode ser mais de uma –, livra o homem de toda e qualquer obrigação, por um agir cuja reponsabilidade é exclusivamente dele. E é a mulher quem acaba punida. Induzida em erro, em um primeiro momento, acaba se conformando em dividir o amor de quem lhe jurou que seria exclusivo. Este vínculo afetivo não é reconhecido como uma entidade familiar, ainda atenda a todos os requisitos legais para a sua configuração: relacionamento público, contínuo, duradouro que constituiu uma família.

Do mesmo modo são ignoradas as estruturas poliafetivas, em que a família é composta por mais de duas pessoas, que convivem juntos na mesma casa. Esta proibido até firmarem escritura pública estabelecendo deveres recíprocos.

O silêncio do legislador, não impondo consequências jurídicas a estes vínculos afetivos, afronta elementar princípio ético, sintetizado na célebre frase da obra Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry: você é responsável por quem cativas!

Certamente esta é a síntese do Direito de Família, que foi repaginado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), ao desvendar o elemento identificador das relações de conjugalidade e de parentalidade. Esta evolução – verdadeira revolução – instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto.

Reconhecida a existência de um vínculo em que existe confiança e comprometimento recíproco, indispensável a imposição dos deveres de mútua assistência, de cuidado. Independe da estrutura do relacionamento, da identidade dos seus integrantes ou o número de participantes.

Não ver, dizer que uniões de diferentes conformações não existem, é incentivar comportamentos antiéticos. É adotar uma atitude antiafeto.

Sequer é necessária expressa previsão legal para que os vínculos afetivos – todos eles – sejam enlaçados pelo direito, com a imposição de responsabilidades recíprocas.

Basta atentar que a Constituição da República elenca um rol imenso de direitos individuais e sociais, como forma de garantir a dignidade de todos. Apesar de não utilizada no seu texto a palavra afeto, consagra o princípio da afetividade. Pode-se até dizer que houve a constitucionalização do afeto, no momento em que união estável foi reconhecida como entidade familiar, merecedora da tutela jurídica. Como a união estável se constitui sem o selo do casamento, isso significa que a afetividade que une e enlaça as pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico.

Paulo Lôbo identifica quatro fundamentos essenciais do princípio da afetividade na carta constitucional: (a) a igualdade de todos os filhos independentemente da origem (CR, art. 227, § 6.º); (b) a adoção, como escolha afetiva com igualdade de direitos (CR, art. 227, §§ 5.º e 6.º); (c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da família (CF 226 § 4.º); e (d) o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança, do adolescente e do jovem (CR, art. 227).[3]

O Código Civil também não utiliza a palavra afeto, ainda que, com grande esforço, se consiga visualizar no seu bojo a elevação do afeto a valor jurídico.[4] Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue.[5] São invocadas as relações de afetividade e afinidade como elementos indicativos para a definição da guarda a favor de terceira pessoa (CC, art. 1.584, § 5.º). A posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir um direito a ser alcançado. Um vínculo de parentesco e a convivência familiar

Belmiro Welter destaca algumas passagens em que há a valoração do afeto no Código Civil: (a) ao estabelecer a comunhão plena de vida no casamento (CC, art.  1.511); (b) quando admite outra origem à filiação além do parentesco natural e civil (CC, art. 1.593); (c) na consagração da igualdade na filiação (CC, art. 1.596); (d) ao fixar a irrevogabilidade da perfilhação (CC, art. 1.604); e, (e) quando trata do casamento e de sua dissolução, fala antes das questões pessoais do que dos seus aspectos patrimoniais.

E finalmente o afeto já foi reconhecido pelo legislador. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06, art. 5.º, II) define família como uma relação íntima de afeto.

A família transforma-se, na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros. Cada vez mais são valorizadas as funções afetivas da seus membros. Tanto o casamento como a união estável adquiriram novo perfil, voltados muito mais a realizar os interesses afetivos e existenciais de seus integrantes. Essa é a concepção eudemonista da família, que progride à medida que regride o seu aspecto instrumental.[6]

Despontam novos modelos de família mais igualitárias nas relações de sexo e idade, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e mais ao desejo.[7] A comunhão de afeto é incompatível com o modelo único, matrimonializado da família. Daí o novo nome: Direito das Famílias.

Como diz João Baptista Villela, as relações de família, formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por mais complexas que se apresentem, nutrem-se, todas elas, de substâncias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido à arte e à virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência em dar e receber amor.[8]

Talvez nada mais seja necessário dizer para evidenciar que o elemento fundante do Direito das Famílias é o princípio da afetividade, pois diz com o direito fundamental à felicidade. Um direito que não aceita o prefixo “anti”.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

LÔBO, Paulo. Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

 

OLIVEIRA, José Lamartine C. de; MUNIZ, Francisco José F. Curso de direito de família. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2002.

 

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito das famílias e sucessões Ilustrado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

 

PERROT, Michelle. O nó e o ninho. Revista Veja 25 anos: reflexões para o futuro, São Paulo, Abril, 1993, p. 75-81.

 

VILLELA, João Baptista. As novas relações de família. Anais da XV Conferência Nacional da OAB, Foz do Iguaçu, set. 1994.

 

WELTER, Belmiro Pedro. Estatuto da união estável. Porto Alegre: Síntese, 2003.

 

 

Publicado em 23/05/2019.

[1] Advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo

Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,

Pós-graduada e Mestre em Processo Civil

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

Presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM

 

[2] Rodrigo da Cunha Pereira, Dicionário de Direito de Família e Sucessões, verbete: afeto.

[3]       Paulo Lôbo, Famílias, p. 43.

[4]       Belmiro Pedro Welter, Estatuto da união estável, p. 49.

[5]       Paulo Lôbo, Famílias, p. 56.

[6]       José Lamartine C. de Oliveira e Francisco José F. Muniz, Curso de direito de família, 11.

[7]       Michelle Perrot, O nó e o ninho, p. 81.

[8]       João Baptista Villela, As novas relações de família, p. 645.

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