Maria Berenice Dias[1]
Tal como os reis e as rainhas “de verdade”, também as mulheres são submetidas, desde o nascimento, a um rigoroso treinamento para o desempenho da missão à qual foram predestinadas. As meninas são vestidas de “cor-de-rosa”, para identificar toda a sua suavidade e doçura. De imediato, furam suas orelhas e lhes colocam brincos, sendo adornadas com laços, rendas e fitas. Afinal, as mulheres têm de ser belas e sedutoras e, além disso, ser meigas, castas e recatadas. Seus brinquedos são bonecas, panelinhas, casinhas, nada mais do que instrumentos que se destinam ao bom desempenho do seu reinado. O único e grande sonho de realização é encontrar o príncipe encantado, casar e ser feliz para sempre, como no final dos contos de fadas, dos filmes de Hollywood ou das novelas de televisão.
Depois de toda uma trajetória de culto ao corpo, que inclui malhação, dietas, academias, e após muita espera e persistência, eis que chega o grande dia. Vestida de noiva com véu e grinalda, é entregue pelo pai ao marido, até que a morte os separe…
Aí começa o seu reinado. Seu cetro é a vassoura, sua coroa, quem sabe, uma lata d’água e seu manto, montanhas de roupas para passar. Como lhe ensinaram, a ela cabe o papel de esposa e mãe, o que não raro se desdobra em cuidar de doentes e idosos. É a responsável pelas tarefas domésticas. Isso inclui limpar, cozinhar, lavar, costurar, fazer compras, além, é claro, de cuidar da educação, da socialização, da saúde e do bom desenvolvimento dos filhos, mas sem descuidar do marido. Porém, essas lides caseiras não são reconhecidas, não gozam de qualquer prestígio social. Por não ser trabalho remunerado, não é contabilizado, não possui valor econômico. Assim, as donas-de-casa são trabalhadoras que não recebem salário, não fazem jus a descanso semanal, limite de jornada, feriados, licenças nem à aposentadoria ou à previdência social.
A obrigação pelo exercício dessas atividades está ligada à equivocada noção de que elas decorrem da natural divisão do trabalho. Por terem as mulheres o monopólio da função reprodutiva e a capacidade de amamentação, a elas se atribui, com exclusividade, toda a responsabilidade pela criação dos filhos e organização do lar. No entanto, a reserva de papéis diferenciados ao homem e à mulher é uma construção cultural, que acaba gerando uma hierarquização pela mais-valia que se atribui às atividades masculinas pela só razão de que os homens ocupam o espaço público, monopolizam o poder econômico e o político.
Todos olvidam que a mulher desempenha papel fundamental para a subsistência não só da família, mas do próprio Estado, pois é a responsável pela procriação e criação dos cidadãos de amanhã. Seus filhos são a força de trabalho que irá garantir a continuidade da sociedade. Ainda assim, o trabalho que desempenham não é valorizado.
Quando, apesar de todos esses obstáculos e limitações que as atividades domésticas impõem às donas-de-casa, elas conseguem se inserir no mercado de trabalho, passam a desempenhar dupla jornada. Como não conseguem se livrar de seus encargos familiares, têm menos disponibilidade de viajar, freqüentar cursos, estudar, isto é, têm menos condições de se qualificar, o que limita salários e dificulta a ascensão profissional.
Não bastasse tudo isso – ou talvez em face de tudo isso –, a rainha do lar ocupa uma posição subordinada e de submissão, pois deve obediência ao marido, dono e senhor da casa.
De todo esse reino de sujeição, a rainha, sem dúvida alguma, é sempre a mulher. Até quando? Mister que tome consciência de suas potencialidades e busque sua realização pessoal para além do circuito doméstico. É preciso que desça do trono e se torne uma ativista na luta pela sua dignidade humana.
Publicado em 11/03/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família
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