Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoafetividade

A população LGBT no STJ

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Ninguém duvida de que são as manifestações dos tribunais superiores que balizam o entendimento das demais instâncias judiciais e dão o norte para a construção da jurisprudência.

Por isto estão sendo festejados os mais recentes julgamentos do STJ que ratificam posições já consagradas nos tribunais federais e em significativo número de decisões nos tribunais estaduais.[2] Foi reafirmado o direito de quem vive em uniões de afeto com pessoas do mesmo sexo de serem enquadrados no rol dos dependentes preferenciais dos segurados, no regime geral, bem como dos participantes, no regime complementar de previdência, em igualdade de condições com todos os demais beneficiários em situações análogas. A Min. Fátima Nancy Andrigui é categórica: a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo não pode ser ignorada em uma sociedade com estruturas de convívio familiar cada vez mais complexas, para se evitar que, por conta do preconceito, sejam suprimidos direitos fundamentais das pessoas envolvidas. Ressalta a Relatora: enquanto a lei civil permanecer inerte, as novas estruturas de convívio que batem às portas dos tribunais devem ter sua tutela jurisdicional prestada com base nas leis existentes e nos parâmetros humanitários que norteiam não só o direito constitucional, mas a maioria dos ordenamentos jurídicos existentes no mundo.  Diante da lacuna da lei que envolve o caso em questão, a aplicação da analogia é perfeitamente aceitável para alavancar como entidade familiar as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Se por força do artigo 16 da Lei n. 8.213/91, a necessária dependência econômica para a concessão da pensão por morte entre companheiros de união estável é presumida, também o é no caso de companheiros do mesmo sexo, diante do emprego da analogia que se estabeleceu entre essas duas entidades familiares.[3]

Mas esta não foi a primeira decisão do STJ, que no ano de 2005, reconheceu que a relação homoafetiva gera direitos analogicamente à união estável, foi admitida a inclusão do companheiro como dependente em plano de assistência médica. Disse o Min. Humberto Gomes de Barros que o homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana.[4]

Em outro julgamento, o mesmo relator, ao proclamar a existência do direito à inclusão no plano assistencial afirma: A questão a ser resolvida resume-se em saber se os integrantes de relação homossexual estável têm direito à inclusão em plano de saúde de um dos parceiros. É grande a celeuma em torno da regulamentação da relação homoafetiva (neologismo cunhado com brilhantismo pela e. Desembargadora Maria Berenice Dias do TJRS). Nada em nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa relação tão corriqueira e notória nos dias de hoje. A realidade e até a ficção (novelas, filmes, etc) nos mostram, todos os dias, a evidência desse fato social. Há projetos de lei, que não andam, emperrados em arraigadas tradições culturais. A construção pretoriana, aos poucos, supre o vazio legal: após longas batalhas, os tribunais, aos poucos proclamam os efeitos práticos da relação homoafetiva. Apesar de tímido, já se percebe algum avanço no reconhecimento dos direitos advindos da relação homossexual.[5]

Também a pensão por morte do companheiro de relacionamento homoafetivo já foi assegurado pelo STJ, que reconheceu, inclusive, a legitimidade do Ministério Público para intervir no processo em que ocorre reivindicação de pessoa, em prol de tratamento igualitário quanto a direitos fundamentais. Disse o Min. Hélio Quaglia Barbosa que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Eis o fundamento do julgado: Por ser a pensão por morte um benefício previdenciário, que visa suprir as necessidades básicas dos dependentes do segurado, no sentido de lhes assegurar a subsistência, há que interpretar os respectivos preceitos partindo da própria Carta Política de 1988 que, assim estabeleceu, em comando específico: ‘Art. 201 – Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a:  […] V – pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, obedecido o disposto no § 2 º. Não houve, pois, de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo do direito previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deverá ser preenchida a partir de outras fontes do direito.[6]

Como argumento derradeiro cabe lembrar que o INSS, em decorrência de decisão judicial, estabelece os procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro homossexual em sede administrativa[7].  Deste modo, escancaradamente afronta ao princípio da igualdade não assegurar o mesmo direito aos homossexuais em se tratando de previdência privada. De todo descabido conceder direitos aos empregados celetistas e excluir os mesmos direitos de quem é segurado por outras entidades previdenciárias estatais ou federais.

Cabe atentar que data do ano de 1998 a primeira decisão do Superior Tribunal de Justiça que, afirmando a existência de sociedade de fato, assegurou ao parceiro homossexual a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum.[8] Ainda que estabelecida a competência das varas cíveis,[9] a Corte vem admitindo a partilha de bens a depender de prova da mútua colaboração.[10]

O Superior Tribunal Eleitoral, ao estender a inelegibilidade da parceira do mesmo sexo, atestou a existência de uma união estável homossexual.[11] Mais recentemente, o STJ reconheceu a possibilidade jurídica da ação declaratória de união homoafetiva, sob o fundamento de que não existe vedação legal para o prosseguimento do feito.  Afirma o Min. Antônio de Pádua Ribeiro que os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Ponderou o Relator: Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. E conclui: Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. [12]

De outro lado, o compromisso de dar efetividade à norma constitucional que impõe, com prioridade absoluta, que seja assegurar a crianças e adolescentes proteção integral, levou a justiça a reconhecer a eles o direito de serem adotados por pares do mesmo sexo.  Em 2006, por decisão unânime, o TJ-RS[13] deferiu à parceira da adotante a adoção dos filhos que haviam planejado adotar em conjunto. Esta decisão, ao ser confirmada pelo STJ,[14] selou de vez o reconhecimento de que a divergência de sexo é indiferente para a configuração de uma família.

E, falando da postura do STJ frente à população LGBT, não há como deixar de citar o reconhecimento de direito dos transexuais à alteração do nome e identidade de gênero[15], inclusive homologando sentenças estrangeiras que autorizaram a redesignação sexual em países outros.[16]

Deste modo, a partir do balizamento levado a efeito pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem a seu encargo impor respeito à legislação infraconstitucional, perde significado o irresponsável silêncio do legislador. Nenhum juiz mais pode alegar inexistência de lei e se furtar de cumprir com a sua obrigação de assegurar direitos a quem está condenado à invisibilidade por absoluta inércia legislativa.

 

Publicado em 07/06/2010.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mbdias.com.br

www.mariaberenice.com.br

www.direitohomoafetivo.com.br

[2] Disponíveis em www.direitohomoafetivo.com.br

[3] STJ , REsp 1.026.981-RJ, 4ª T.Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2010.

[4] STJ, REsp 238.715-RN, 3ª T. Rel. Min.  Humberto Gomes De Barros, j. 19.05.2005.

[5] STJ, REsp 238.715-RS, 3ª T. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 07.03.2006.

[6] STJ, REsp 395904-RS,  6ª T. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 13.12.2005.

[7] Instrução Normativa 25, de 7 de junho de 2000.

[8] STJ, REsp 148897-MG,  4ª T.  rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 10.02.1998.

[9] STJ, REsp 323.370-RS, 4ª T. – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 14.12.2004; STJ, REsp 502.995-RN, 4ª T. Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 26/04/2005.

[10] STJ, Resp 773.136-RJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.10.2006; STJ, REsp 648.763/RS, 4.ª T., Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07.12.2006.

[11] TSE, REsp. Eleitoral 24.564, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01.10.2004.

[12] STJ, REsp 820475-RJ, 4ª T. Rel. Min.  Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, j. 02.09.2008.

[13] TJRS, 7.ª C.Cív., AC 70013801592, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 05.05.2006

[14] STJ, 4ª T, Resp 889.852/RS, Rel. Luis Felipe Salomão, j. 27.04.2010.

[15] STJ, 3.ª T., REsp 678.933/RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 22.03.2007; STJ – Resp 1.008.398 – SP, 4ª T.Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15 de outubro de 2009; STJ – Resp 737.993 –MG, 4ª T. Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 10.11. 2009.

[16] STJ – SE 001058-IT 2005/0067795-4, rel. Min. Barros Monteiro, j. 01.08.06; STJ-SE 2.149 – IT 2006/0186695-0, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 04.12. 2006; STJ – SE 002.732 – IT 2007/0105198-0, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07.04.2009; STJ – SE 004179 – IT 2008/0273512-), Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07.04.2009.

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