Maria Berenice Dias[1]
Desde quando o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA instituiu o cadastro de adotantes e de adotandos, a tendência dos juízes e promotores foi transformar estes meros instrumentos facilitadores em uma ferramenta impeditiva da adoção em desobediência à ordem de anterioridade ou por pessoas não inscritas.
Assim, a tendência sempre foi negar a adoção a pretendentes que não se encontrem cadastrados bem como impedir a adoção consentida, a chamada adoção intuito personae, ou seja, quando a mãe escolhe a quem deseja entregar o filho.
A imposição a um respeito irrestrito ao cadastro sempre gerou situações para lá de aterradoras.
Para obedecer a ordem de inscrição crianças são arrancadas de seus lares depois de meses ou até anos de convivência com as únicas pessoas que elas reconhecem desde sempre como pai ou como mãe.
Depois deste ato de atrocidade é que tem início o processo de destituição do poder familiar, que de um modo geral, se arrasta por muito tempo. Enquanto isso, a criança permanece literalmente depositada em um abrigo. Só depois – sabe-se lá depois de quanto tempo – é entregue aos candidatos devidamente habilitados segundo a ordem de inscrição.
Com o advento da chamada Lei da Adoção – Lei 12.010/2009 – que mais deveria chamar-se de lei anti-adoção, a situação complicou-se em muito.
Isto porque foi imposto o prazo de 48 horas para a inscrição das crianças e dos candidatos habilitados ao cadastro, sob pena de responsabilidade (ECA 50 § 8º) e delegado ao Ministério Público a alimentação dos cadastros e a convocação dos postulantes à adoção (ECA 50 § 12). Assim, amedrontaram-se juízes e promotores em face da previsão de multa administrativa, em valor de até três mil reais (ECA 258-A). Para não serem penalizados desencadeou-se verdadeira caça a crianças. Mandados de busca e apreensão são expedidos de forma in continenti sem ao menos ser oportunizado averiguar a situação em que se a criança se encontra.
Parece que todo mundo, por puro medo de ser responsabilizado, esqueceu que o ECA busca proporcionar a crianças e adolescentes verdadeiras vantagens para o seu desenvolvimento físico, educacional e emocional sendo prioritária sua permanência no ambiente familiar.
Cabe atentar que, tanto antes, como depois das novas regras, a colocação em família substituta sempre foi admitida, bastando haver a expressa concordância dos pais, manifestada diretamente em cartório (ECA 166). Agora foi somente explicitada a dispensabilidade da assistência de advogado. O consentimento dos titulares do poder familiar precisa ser levado a efeito por escrito, devendo ser chancelada em audiência, após receberem orientações e esclarecimentos por equipe interprofissional (ECA 166 § 3º).
A leitura das novas regras foi tão açodada que sequer se está cumprido o que a própria reforma estabelece.
Parece que ninguém está atentando que o respeito às alistagens não é obrigatória. Tanto que o § 13 do art. 50 do ECA enumera as causas em que é permitida a adoção a candidatos não cadastrados, e o art. 197-E § 1º admite a quebra da ordem cronológica quando comprovado ser esta a melhor solução no interesse do adotando.
Assim, nada, absolutamente nada permite a retirada da criança do lar onde se encontra. Imperioso é primeiro averiguar o que atende ao seu melhor interesse. A permanência de crianças em lares que não são de seus pais biológicos configura guarda de fato. E, quando presente tal situação não é permitida a expedição de mandado de busca e apreensão. Nesta hipótese simplesmente não é dispensa a realização de estágio de convivência (ECA 46 § 2º). A lei determina o acompanhamento por equipe interdisciplinar, que deve apresentar relatório a cerca da sua permanência (ECA 46 § 4º).
Deste modo, quando uma criança se encontrar sob a guarda de fato de alguém que não esteja habilitado, ou sem que tenha sido respeitada a ordem de inscrição, ao invés de retirá-la de onde se encontra, deve o juiz determinar o seu acompanhamento por equipe interdisciplinar.
A providência excepcional do abrigamento e a entrega ao inscrito em primeiro lugar só cabe quando o laudo elaborado por equipe interdisciplinar se manifestar pela conveniência da medida e que esta é a melhor solução para atender ao interesse da criança.
O fato de a transferência da guarda ter eventualmente ocorrido sem a chancela judicial não pode gerar a penalização da criança. Se alguém deve ser penalizado é quem eventualmente afrontou a lei. Mas a pena não é a perda do filho.
Entre o medo e o dever, todos devem preservar o direito de crianças permanecerem no seu lar. Tornar obrigatória a observância do cadastro é de uma inconstitucionalidade flagrante por desrespeitar o princípio do melhor interesse e o sagrado direito à convivência familiar.
Assim, desobedecer a norma constitucional e desrespeitar as regras postas na lei é que pode gerar a responsabilização que juízes e promotores tanto temem, por cometerem verdadeiros crimes contra quem merece proteção integral com absoluta prioridade.
Publicado em 13/06/2010.
[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões
Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS
Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM
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