Maria Berenice Dias[1]
Estamos vivendo na era dos direitos humanos. Por tudo que se diz, por tudo que se proclama e defende, se deveria estar vivendo na época de maior plenitude do indivíduo, aureolado por uma gama de direitos e garantias. O Estado precisaria ter mecanismos ágeis e eficazes para garantir ao ser humano viver em um estado democrático de direito. As instituições sociais tinham que estar imbuídas da necessidade de preservar o cidadão e a própria sociedade.
Para dar efetividade ao imenso rol de direitos que o Estado assegura aos seus cidadãos é outorgo a um Poder o encargo de fazer justiça. Mas no próprio âmbito da jurisdição, os mais comezinhos direitos humanos são violados.
A lei não consegue acompanhar o acentuado desenvolvimento econômico, político e social dos dias de hoje. Não há condições de albergar todos os fatos sociais dignos de regramento. Os juízes precisam se conscientizar de que as regras legais não podem servir de limites à prestação jurisdicional.
Ao que escapa da normatização ordinária, precisa encontrar uma resposta nos direitos fundamentais que cada vez mais vêm buscando guarida em sede constitucional. A falta de lei não significa ausência de direito. A Constituição elegeu como seu dogma maior a dignidade da pessoa humana, calcado nos princípios da igualdade e liberdade.
Principalmente os vínculos interpessoais, muito mais sensíveis às mudanças sociais, não se comportam no âmbito da legislação tradicional. O surgimento de novos paradigmas leva à necessidade de rever os modelos preexistentes, impondo interpretações criativas ao modelo ditado pela lei. Mister reconhecer que a liberdade é um dos pilares do direito e que a igualdade está calcada muito mais no reconhecimento da existência das diferenças.
Precisam os juízes arrostar as novas realidades que lhes são postas. Atentar ao contexto histórico e cultural da sociedade, não olvidando que a quebra da ideologia patriarcal decorrente da chamada revolução feminina, a liberação dos costumes, bem como o surgimento dos métodos contraceptivos e a evolução da engenharia genética, acabaram por redimensionar o próprio conceito de família. Não dá mais para identificar como família a relação entre um homem e uma mulher unidos pelos sagrados laços do matrimônio.
Rompidos os paradigmas da família, que se esteava na tríade casamento, sexo e reprodução, necessário reconhecer que é a presença do vínculo afetivo que identifica a entidade familiar. Nesse conceito plural, não só as chamadas uniões estáveis e as famílias monoparentais, mas também as relações homossexuais, hoje chamadas de relações homoafetivas, estão enlaçadas no âmbito do Direito das Famílias.
Assim, cabe ao juiz pensar e repensar a relação entre o justo e o legal. Não pode buscar subsídios nas regras de direito posto, que não prevêem as situações novas. Precisa ter coragem de ousar na hora de decidir. Sob o fundamento de inexistir previsão legal, não pode o magistrado se omitir e simplesmente negar direitos. Tal revela-se como mera tentativa de punir quem ousa viver de forma diversa do modelo convencional. É a forma mais perversa de exclusão, pois configura condenação à invisibilidade, alijamento do âmbito de tutela jurídica.
Esta não é a função da Justiça.
Publicado em 20/08/2006.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM