Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Homoafetividade

Uma conquista: Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB

Maria Berenice Dias[1]

 Em um Estado democrático de direito, todos são merecedores da tutela jurídica. É o que diz a Constituição Federal ao consagrar os princípios da liberdade e da igualdade e proclamar respeito à dignidade da pessoa humana. Já no seu preâmbulo, assegura uma sociedade pluralista e sem preconceitos. Também garante, como um dos objetivos fundamentais da República, uma sociedade livre e justa, que deve promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça sexo, cor idade ou qualquer outra forma de discriminação.

Todos estes princípios servem para qualquer um, menos para gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.

O covarde silêncio do legislador, que se nega a aprovar leis que atendam as minorias alvo de discriminação, acaba por alimentar o preconceito. O medo de ser rotulado de homossexual, de comprometer sua reeleição ou desagradar o eleitorado – formado na maioria por heterossexuais – faz com que parcela significativa de cidadãos reste à margem da sociedade e condenados à invisibilidade.

Basta lembrar que, em todo o ordenamento jurídico, há somente uma referência à orientação sexual. Encontra-se na Lei Maria da Penha que conceitua família como relação íntima de afeto, independente da orientação sexual.

A omissão legislativa tem um resultado perverso. Torna impossível assegurar direitos a quem ama alguém que lhe é igual. Porém, a falta de lei não significa ausência de direito.

De há muito sustento a necessidade de o direito dos homossexuais serem inseridos no sistema jurídico e suas relações integrarem o direito das famílias. Assim também o direito de crianças terem um lar, alguém para chamar de pai, para chamar de mãe. Mesmo que sejam dois pais ou duas mães. Igualmente é indispensável garantir aos travestis e transexuais o direito à troca do nome e da identidade de gênero.

Enquanto a lei não vem, toda a violação de direito precisa ser trazida a juízo. A própria lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro impõe ao juiz o dever de julgar e inclusive indica as ferramentas que deve utilizar: a analogia, os princípios constitucionais e os costumes.

Ou seja, o exercício da cidadania depende de reconhecimento de direitos no âmbito do Poder Judiciário. A função do juiz é colmatar os vazios da legislação, mas para isso é preciso que seja chamado a julgar. No entanto, é insignificante o número de ações em juízo buscando o reconhecimento de direitos da população LGBT, o que impede a consolidação da jurisprudência.

Constatar esta realidade me levou, depois de 35 anos, a abandonar a magistratura e abrir o primeiro escritório especializado em direito homoafetivo do país. Não que inexistissem profissionais que advogassem nesta área – tanto que havia ações, ainda que em pequena quantidade – mas achei que havia a necessidade de escancarar a existência de uma porta aberta. Coloquei na placa do meu escritório como uma das minhas especialidades: “direito homoafetivo”.

Como são relacionamentos alvo de muita rejeição, por habitar o imaginário coletivo a prática sexual dos parceiros, acabei criando o neologismo “homoafetividade”, para ressaltar que é o afeto o elemento essencial dos vínculos homossexuais. Daí, “união homoafetiva”. Estas expressões já se encontram dicionarizadas, sendo que no Google, “direito homoafetivo” é citado 37.200 vezes e “homaoafetividade”, 28.500 vezes.

No dia em que recebi a Carteira da OAB-RS, na mesma oportunidade ingressei com o pedido de criação da primeira Comissão da Diversidade Sexual do país, sob a justificativa de  ser indispensável qualificar os advogados para atuarem com segmento tão vulnerável.

E, por onde andei reuni advogados e representantes dos movimentos sociais. Resultado: já foram criadas 19 Comissão da Diversidade Sexual junto a OAB. Em nove Estados há grupos se mobilizando neste sentido. Também o IBDFAM criou a Comissão Nacional de Direito Homoafetivo que está constituindo comissões em todos os Estados.

Aliás, foi toda uma comunhão de esforços que ensejou a realização, no Rio de Janeiro, dias 23 a 25 de março, do I Congresso Nacional de Direito Homoafetivo.

Os resultados vêm sendo sentindo.

Como são absolutamente inacessíveis as sentenças dos juízes de primeiro grau e a maioria dos julgados dos tribunais, reuni em um portal (www.direitohomoafetivo.com.br) mais de 1.000 decisões de todos os Estados e de todas as justiças. Não só da justiça estadual, mas da justiça federal, justiça do trabalho, justiça eleitoral e até da justiça militar.

Esses antecedentes têm levado à concessão de direitos já em sede administrativa, como acontece com o visto de permanência e o direito a pensão previdenciária post mortem junto ao INSS.

Tal evidencia que esta é a principal função do advogado: provocar a justiça para que assegure direitos a todos. Assim, a responsabilidade é mesmo da OAB, que desempenha importante papel na defesa das prerrogativas do cidadão: assegurar o direito fundamental à felicidade.

Mas para isso é necessário que os advogados estejam preparados, conheçam este novo ramo do direito, se qualifiquem para provocar a justiça a se manifestar.

Somente ocorrendo um derrame de ações é que se vai consolidar a jurisprudência, o que acaba por premir a aprovação de leis.

Daí o significado da criação, no último dia 15 de abril, da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. O órgão máximo representativo da classe dos advogados avocou para si a responsabilidade de retirar a população LGBT da invisibilidade.

Esta é a composição: Maria Berenice Dias (RS); Adriana Galvão Moura Abílio (SP); Jorge Marcos Freitas (RJ); Marcos Vinicius Torres Lima (RJ); Paulo Tavares Mariante (SP). Membros Consultores: Daniel Nogueira de Albuquerque Sarmento (RJ); Rodrigo da Cunha Pereira (MG); Tereza Rodrigues Vieira (SP). O primeiro grande desafio é elaborar o Estatuto da Diversidade Sexual, um microssistema que albergue direitos e penalize a homoafobia.

Com certeza não há ninguém mais legitimado do que os advogados para serem os guardiões da cidadania, eis que precisam exercer o múnus que lhes é imposto pela Constituição Federal (art. 133): O advogado é indispensável à administração da justiça.

Todos têm o direito de buscar a Justiça e para isso precisam socorrer-se de um advogado, a quem cabe o dever se ser a voz de quem a sociedade vira o rosto e o legislador insiste em ignorar.

 

Publicado em 18/04/2011.

[1] Advogada

Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual

www.mbdias.com.br

www.mariaberenice.com.br

www.direitohomoafetivo.com.br

 

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