Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

 

 

Não há outro nome a ser dada à Lei 14.994, de 09/10/2024, que trouxe significativas mudanças em um punhado de leis, todas exacerbando penas e punições a quem comete crimes contra as mulher, em razão de sua condição de mulher.

Mal a lei entrou em vigor, alguns questionamento já estão surgindo em face do uso da expressão: crime cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino.

Por se referir ao sexo e não ao gênero feminino, há quem diga que, ficaram fora da égide de sua aplicação travestir, transexuais, transgêneros, intersexuais e pessoas não binárias. Apesar de a legislação penal se reger pelo princípio da estrita legalidade, não há como reconhecer que a reforma restringiu seu âmbito de incidência à identificação biológica da mulher, sem alcançar aos segmentos que são reconhecidos como do gênero feminino.

 

CÓDIGO PENAL

Ao condenado por crime praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, foram impostas alguns restrições, a serem aplicadas de forma automática,  independe de pedido expresso da acusação e sem a necessidade de motivação na sentença (art. 92, § 2º, III):

Art. 92, I – a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo

Art. 92, II – a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente, tutelado ou curatelado, bem como nos crimes cometidos contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A deste Código;

Esta incapacidade, no entanto, não livra o genitor dos encargos decorrentes do poder familiar, como a obrigação pelo pagamento de alimentos. Ainda que não seja impedido o dever de convivência com os filhos, o seu exercício deve ser estabelecido de forma a não colocar a vítima em situação de vulnerabilidade.

Art. 92, § 2º, II – vedadas a sua nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena;

  Feminicídio

O feminicídio  era considerado um homicídio qualificado, cuja pena era de 12 a 30 anos (art. 121, § 2º, inc. VI).

Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino:

Pena – reclusão, de 20 a 40 anos.

Ao ganhar dispositivo próprio, o feminicídio tornou-se um crime autônomo.  Não mais se se pode falar em homicídio privilegiado. Circunstâncias atenuantes que autorizam a redução da pena em 1/6: por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (art. 121, § 1º).

Quando se trata de crime qualificado, que enseja o aumento da pena de 1/3 até a metade, foram inseridas mais algumas hipóteses:

I – (…) ou se a vítima é a mãe ou a responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade;

II – (…) ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental;

IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência impostas ao agressor (LMP, art. 22, incs. I, II e III);

V – em algumas das circunstâncias do homicídio qualificado (CP, artrs 121, § 2º):

III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

VIII – com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido.

E mais, o coautor ou partícipe sujeita-se às mesmas circunstâncias (art. 121-A, § 3º).

Violência doméstica

O  delito de violência doméstica é reconhecido como lesão corporal qualificada:  se for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade (art. 129, § 6º).

A pena de detenção passou a ser de reclusão. E foi aumentada de 6 meses a 1 ano para 2 a 5 anos.

Além das hipótese legais, foi incluída mais uma:

Se a lesão é praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino (art. 129, § 13): Pena de reclusão de 2 a 5 anos.

Significativa a alteração da pena de detenção para reclusão, uma vez que admite que o início do seu cumprimento seja no regime fechado.

Calúnia, difamação e injúria

Aos delitos de injúria (CP, art. 138), difamação (CP, art. 139) e injúria (CP, art. 140), quando cometidos contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, foi imposta pena em dobro (CP, art. 141, § 3º).

Ameaça

Ao crime de ameaça (art. 147), também é imposta pena em dobro  quando praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino (art. 147, § 1º). De detenção de 1 a 6 meses, ou multa, passou a 2 meses a 1 ano.

Além disso, tornou-se crime de ação pública incondicionada, ou seja, não depende de representação da vítima (art. 147, § 2º).

Vias de fato

À contravenção penal de vias de fato, foi determinada a aplicação da pena em triplo (art. 21, § 2º).

Ou seja, de 15 dias a 3 meses, passou a pena a ser de 1 mês e 15 dias a 9 meses.

 

LEI DE EXECUÇÃO PENAL

Ao artigo que elenca os direitos do preso (art. 41), quando se trata de condenado por crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino,  foram impostas algumas restrições:

Foi excluindo o direito à visita íntima ou conjugal (art. 41, § 2º).

Quanto ao local do cumprimento da pena, o condenado ou preso provisório por crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, será transferido para estabelecimento penal distante da residência da vítima, na hipótese de ameaçar ou praticar violência contra ela ou seus familiares durante o período da prisão  (art. 86, § 4º).

No que diz com a progressão da pena  para regime menos gravoso, houve um singelo aumento. A necessidade de cumprimento da pena passou de 50% para 55%, na hipótese de feminicídio, sendo o réu primário. E também foi vedada a concessão de livramento condicional (art. 112, VI-A).

A outra medida diz com as chamadas “saidinhas”, ou seja a autorização para saídas temporárias. O condenado por crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, será sempre fiscalizado por meio de monitoração eletrônica, conhecidas como “tornozeleiras”  (art. 146-E).

 

LEI DOS CRIMES HEDIONDOS

Como o feminicídio transformou-se em delito autônomo, assim também foi inserido no rol dos crimes hediondos (art. 1º, I, B).

 

LEI MARIA DA PENHA

Quando ocorrer descumprimento de medida protetiva, houve a majoração da pena de detenção de 3 meses a 2 anos passou a ser de reclusão, de 2 a 5 anos (art. 24-A).

 

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Quanto ao andamento das ações, foi determinado:

tramitação prioritária em todas as instâncias, dos processos que apuram os crimes hediondos e os de violência contra a mulher  (art. 394-A).

Isenção do pagamento de custas, taxas ou despesas processuais (art. 394-A, § 1º).

Esta isenção  se aplica à vítima ou, em caso de morte, a quem a represente (art. 394-A, § 2º).

 

ENFIM…

Por mais incrível que possa parecer, em plena era dos direitos humanos, no século 21, ainda exista quem se arvore o direito de propriedade sobre uma mulher pelo fato de com ela ter mantido um vínculo de natureza afetiva.

Quem sabe, com estas alterações legais, os homens se conscientizem que é crime, crime hediondo, praticar qualquer tipo de violência contra uma mulher, pelo simples fato de ser ela uma mulher.

 

publicado em 15/10/2024, em IBDFAM e na revista Conceito Jurídico, edição out/2024.

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