Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Sucessões

Seguro de vida e ausência de indicação de beneficiário.

Maria Berenice Dias[1]

 

Em sede de seguro de vida, há uma discrepância na lei para lá de inconstitucional. Quando o titular falece, sem ter indicado  beneficiário na apólice, o legislador elege o cônjuge não separado judicialmente como favorecido. Concede-lhe  metade do valor do seguro. O restante, aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem de vocação hereditária (CC 792).

Na união estável, a concessão do benefício está sujeita a dupla condição (CC 793): que o contrato seja firmado depois de o tomador estar separado de fato e que o companheiro conste como seu beneficiário. Ou seja, só é contemplado se foi expressamente indicado em seguro instituído depois do fim do casamento do segurado.

Não atendidas estas duas exigências, a indenização é paga ao ex-cônjuge, que recebe o capital segurado simplesmente por não ter sido formalizada a dissolução do casamento. Ora, de há muito está pacificado que a separação de fato sela o término do casamento, não sobrevivendo quaisquer direitos ou deveres entre ex-cônjuges.[2] De outro lado, a expressão “não separado judicialmente” não dispõe de qualquer significado, eis que o instituto da separação judicial foi excluído do panorama jurídico.[3] Logo, depois da separação de fato, não há como conceder direito algum nem a ex-cônjuge e nem a ex-companheiro.

O Superior Tribunal de Justiça, buscando uma solução salomônica – mas distanciada do que diz a lei – atribuiu um quarto do capital segurado à ex-mulher e um quarto à companheira, sendo o restante pago aos herdeiros.[4]

É imperioso reconhecer que existe uma lacuna na lei no que diz com o companheiro sobrevivente, quando não há indicação do beneficiário. No entanto, o reconhecimento constitucional da união estável como entidade familiar (CF, art. 226, § 3º) é o que basta para impedir que a omissão legal sirva para conceder privilégio a quem nem mais estava casado com o segurado.

Agora, não mais subsiste qualquer resquício de dúvida sobre a equiparação entre casamento é união estável. Foi espancada pelo Supremo Tribunal Federal, que, em sede de repercussão geral, proclamou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. [5] Mas a decisão foi além. Consta da própria ementa: não é legítimo desequiparar cônjuges e companheiros; a hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. E conclui o Min. Luis Roberto Barroso: discriminar os companheiros, dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos aos cônjuges, entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.[6]

Ou seja, a equiparação levada a efeito pelo Supremo Tribunal Federal, não se limita à concorrência sucessória. Vai além. Enlaça todas as hipóteses em que se verifica eventual discriminação entre cônjuges e companheiros.  Ainda que o seguro de vida esteja fora do âmbito do direito sucessório, sua eficácia está sujeita a condição suspensiva – o evento morte. Ainda assim, o companheiro não pode ser reconhecido como beneficiário somente quando indicado como tal ao tempo da contratação do seguro.

Quer pelo fim do instituto da separação, quer por a separação de fato romper o casamento, não pode subsistir a desequiparação consagrada nos artigos 792 e 793 do Código Civil.  Está maculada de inconstitucionalidade. Quem convivia com o instituidor à data de sua morte – cônjuge ou companheiro – é que pode beneficiar-se do seguro. Independe de quando o contrato foi firmado, se antes ou depois da separação do segurado.  Não é possível consagrar enriquecimento sem causa.  De todo descabido deferir o seguro a quem não mais convive com o segurado, deixando de beneficiar a pessoa que com ele mantinha uma entidade familiar. [7]

Voltaire Marensi vai além. Sugere que o seguro seja pago, em sua integralidade,  a quem  vivia com o segurado, mantendo-se o parágrafo único  do art. 792 do CC, única hipótese em os herdeiros seriam contemplados com a metade do capital segurado.[8]

A consagração constitucional do princípio da afetividade, como elemento constitutivo dos elos de convivência, faz com que, na falta de indicação de beneficiário na apólice, seja contemplado com a indenização securitária quem dividiu a vida com outro alguém até sua morte.

 

 

Publicado em 15/02/2018.

 

[1] Advogada

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

[2] IBDFAM – Enunciado 02: A separação de fato põe fim ao regime de bens e importa extinção dos deveres entre cônjuges e entre companheiros.

[3] A Emenda Constitucional 66/2010 deu nova redação ao § 6º do art. 226 da CF.

[4] STJ, REsp 1.401.538- RJ,  Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, decisão monocrática de 14/08/2015.

[5] STF – Tese 498: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002. (RE 646.721 e RE 878.694)

[6] STF, RE 646.721/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão, Min. Luis Roberto Barroso. j. 10/05/2017.

[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, São Paulo: RT, 11ª ed., 2017, p. 241.

[8] MARENSI, Voltaire. A união estável e o seguro de pessoa (www.conjur.com.br)

 

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