Maria Berenice Dias[1]
Ivone M. C. Coelho de Souza[2]
Costuma-se identificar a família como relação decorrente do matrimônio, instituição geradora de um vínculo indissolúvel. Duas pessoas fundiam-se numa só, formando uma unidade patrimonial, tendo o homem como único elemento identificador do núcleo familiar. As funções da mulher reduziam-se ao interior, historicamente sem voz nas decisões e sem influência nas suas manifestações do grupo familiar. Era nula como agente de produção econômica formal, sem condições de prover seu sustento. Não lograva acesso à informação e era considerada incapaz perante a lei.
Hoje, a dinâmica das transformações impressas aos grupos familiares deve ser revisitada sob a ótica da transformação dos papéis da mulher, considerada a grande revolução do século XX. A família moderna constitui-se em um núcleo evoluído a partir do desgastado modelo clássico, matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterossexual.
Grande parte dos avanços tecnológicos e sociais estão diretamente vinculados às funções da mulher na família e referendam a evolução característica da modernidade, confirmando verdadeira revolução no social. O advento dos contraceptivos liberou a mulher da imposição de tantas gestações e levou-a até eventualmente a optar por não tê-las. O rápido avanço da tecnologia doméstica também tornou-se um coadjuvante na liberação da mulher frente ao cerceamento caseiro, aliás objeto de uma depreciação e rechaço intrigantes. O ingresso da mulher no mercado de trabalho formal, externo, tem exacerbado a latente competição e disputa de poder entre os gêneros.
Os paradigmas capitalistas, que promovem apenas o que é monetariamente gratificável, efetivamente contribuem para a subvalorização dos trabalhos domésticos e outros ligados à figura feminina. Dessa forma, mesmo que a parcela proveniente da mulher para a economia doméstica seja hoje quase imprescindível, a reciprocidade é muito lenta quanto à adesão do homem ao trabalho da casa, cuidado dos filhos, auxiliares domésticos, etc. As pressões econômicas provocam mudanças cada vez mais bruscas, seguidas lentamente pelo Direito.
A emancipação feminina e suas reivindicações de participação no social são também responsáveis por conflitos e desarranjos novos, imperceptíveis nas antigas famílias. Mesmo com dificuldades e interrogações, instalaram-se importantes alterações nos papéis de gênero. No que diz respeito diretamente à mulher, transparecem pelas expressões atualizadas e liberadas da sexualidade, pelo desempenho na maternidade e pelas recentes relações sócio-laborais, diretamente associadas ao plano público. A partir disso, revolucionam-se as relações intergenéricas, abalando a dissociação masculino-público e feminino-privado, que passa a alternar-se, ou inverter, repercutindo decisivamente sobre a nova família.
O claro declínio do modelo patriarcal rígido, no sentido de todo poder ao pai, com o encapsulamento da mãe, restrita a tarefas domésticas e à procriação, desencadeou confusão e ambivalência no relacionamento interfamiliar. Por outro lado, a premência econômica e a revisão nem sempre tranqüila das funções da mulher projetam-na para fora do âmbito doméstico, pressionando-a por vezes a subestimar a maternidade-maternagem.
A evolução da mulher, entretanto, não se produziu isolada. Desencadearam-se sobre o homem uma série de transformações, uma vez que as exigências atuais desafiam o até então concebido como inerente ao masculino, agora partilhado. Essa competição crescente entre o casal moderno freqüentemente perturba a relação e a identidade de gênero a ser transmitida aos filhos.
Dentre tantas inconclusões, é bom assinalar que a família ideal definida por alguns estudiosos é apenas uma tentativa de indicar e redefinir relações. Os conflitos invariáveis na associação de quaisquer indivíduos para quaisquer fins resistem, reestruturam-se, atualizam-se. O antigo paradigma familiar permanece como um resíduo rançoso, não obstante todas as conquistas obtidas. No imaginário coletivo, o dinheiro-poder ainda se identifica como masculino, mesmo com a ascensão da mulher ao mercado de trabalho, no qual ainda não logrou equiparar-se em status econômico e em liderança. As inevitáveis resistências a mudanças no sistema de hierarquia entre os gêneros, tão antigo quanto desfavorável do ponto de vista feminino, são quase sempre percebidas como ameaçadoras. Confirmam as fantasias obscuras e temíveis de desestruturação familiar e social. Tornou-se o pater familias um homem premido pelas exigências crescentes de um mundo também voraz, e se deixa oprimir por realidades que já não pode controlar.
A temível violência doméstica, a intolerância, o preconceito, a injustiça, nas mais variadas formas, apresentam-se como metáfora a ser administrada.
Publicado em 07/08/2005.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
[2] Psicóloga
Coordenadora da Assessoria Psicológica do JUSMulher