Maria Berenice Dias

Advogada.

Vice-Presidente nacional do IBDFAM

 

 

Quando da constituição de uma entidade familiar, é imperiosa a regulamentação das questões de ordem patrimonial. Tanto é assim que, no silêncio dos cônjuges e dos conviventes, a lei impõe o regime da comunhão parcial de bens (CC, arts. 1.640 e 1.725). Daí ser chamado de regime supletivo.

Apesar dessa exigência, a lei privilegia a autonomia privada dos noivos e conviventes, conferindo-lhes plena liberdade para deliberarem, da forma que lhes aprouver, sobre seus bens (CC, arts. 1.639 e 1.725).

Desta autonomia – e injustificadamente – não desfrutam nem as famílias paralelas e poliafetivas, por não serem reconhecidas como famílias e nem aquelas em que é imposto o inconstitucional regime da separação de bens (CC, art. 1.641).

Por outro lado, apesar de a lei trazer um rol de regime de bens (CC, arts. 1.658 a 1.688), e dizer que os nubentes podem optar por qualquer dos regimes que o Código regula (CC, art. 1.640, parágrafo único), tal não significa que a escolha só possa recair em um dos regimes previstos. É possível cônjuges e companheiros mesclarem dois ou mais regimes ou criarem um regime próprio. Sequer é necessário nominar o regime de bens que elegeram. Basta que as disposições não deixem dúvidas quanto à forma de reger suas questões patrimoniais.

Ainda que a escolha do regime de bens seja um negócio jurídico, a depender da opção de como eles irão constituir a família, o tratamento é diferenciado.

Caso os noivos resolvam se casar para afastarem o regime da comunhão parcial, é necessário firmarem um pacto pré-nupcial, por escritura pública, antes da celebração do casamento (CC, art. 1.653).

Já a união estável não exige formalidade para a sua constituição. Sequer a indicação de um termo inicial impõe o seu reconhecimento, uma vez que somente é necessário estar comprovada a consolidação de um vínculo de convivência, compromisso mútuo, entrelaçamento de vidas e embaralhamento de patrimônios.

A eleição do regime de bens pode ser levada a efeito a qualquer tempo, antes ou durante a união. Basta firmarem um pacto de convivência, cujo único requisito é a forma escrita. De modo geral, o pacto de convivência é firmado depois do início da união. Assim, eleito o regime de bens que for, a partir da formalização do contrato, é que cessa o regime da comunhão parcial, que vigorou deste sua constituição.[1] Os bens adquiridos nesse período pertenciam a ambos os conviventes em partes iguais. Assim, não há como emprestar efeitos retroativos ao pacto. Ou seja, é descabido, via contrato de convivência, eleger um regime que subtraia bens de um dos companheiros. Significaria renúncia de um à propriedade de seus bens e o enriquecimento gratuito do outro.

Somente com relação à existência do vínculo e questões de ordem pessoal é que o pacto pode ter efeito retroativo. Também pode ser utilizado como meio de prova da existência da união, ainda assim, de forma relativa. Mesmo firmado o contrato é possível ser questionado judicialmente seu reconhecimento.

Tanto o pacto antenupcial como o contrato de convivência têm validade até o vínculo ser dissolvido: pelo divórcio, pela morte de um do par ou pela separação de fato do casal, que extingue a colaboração recíproca.

Qualquer um dos pactos tem sua eficácia sujeita à condição suspensiva. O pacto antenupcial só vigora a partir do casamento (CC, art. 1.654).  E o de convivência depende do reconhecimento da presença dos requisitos legais: ostensividade, publicidade, durabilidade e o elemento subjetivo do desejo de constituir família (CC, art. 1.723).

No entanto, feito o pacto antenupcial e não ocorrendo o casamento, se o casal opta por viver em união estável, o pacto passa a reger o regime patrimonial.  Afinal, o único requisito para a formalização do pacto da união estável é ter um documento escrito.[2]

A união formalizada por escrito particular produz efeitos limitados aos aspectos existenciais e patrimoniais da própria relação familiar por eles mantida. Vincula as partes e é relevante para definir questões interna corporis, mas é incapaz de projetar efeitos com relação a terceiros.[3]

Para examinar a eventual oponibilidade erga omnes, o pacto deve ser feito por escritura pública ou termo declaratório formalizado perante o Registro Civil das Pessoas Naturais e registrado no Livro “E”.[4]

 

Alteração do regime de bens

 

Na constância da vida em comum – tanto no casamento como na união estável – a pactuação sobre os aspectos patrimoniais pode ser alterada, por consenso do casal, independentemente do regime de bens em vigor.

No casamento, com a comprovação dos motivos que ensejam o pedido, este precisa ser judicializado (CC, art. 1.639, § 2.º e CPC, 734). Contudo, para alterar somente cláusulas existenciais ou processuais e não o regime de bens, mudanças podem ser feitas no tabelionato.

Já os conviventes têm a liberdade de modificar a qualquer tempo, por qualquer meio, o que haviam pactuado, sem a necessidade de apresentarem alguma justificativa, sendo dispensada intervenção judicial.

Admitida a modificação do regime de bens, muito se discute sobre a possibilidade ou não de se emprestar efeito retroativo ao regime que foi eleito.

Partes da doutrina e da jurisprudência, com fulcro nos princípios da liberdade e da autonomia privada, defendem que cônjuges e conviventes gozam de ampla liberdade para atribuir o efeito que desejarem, desde que seja expressa a previsão contratual dispondo sobre o patrimônio pretérito, e sejam respeitados os interesses de terceiros.[5]

Os tribunais estaduais se dividem. Ou é admitida a retroatividade, mesmo que a mudança seja para o regime da separação de bens, sem prévia partilha.[6] Ou é conferido apenas efeito ex nunc, a partir do trânsito em julgado da sentença.[7]

No entanto, se a mudança é para o regime da separação de bens, o Superior Tribunal de Justiça tem posição firmada pela invalidade das cláusulas que estabeleçam a retroatividade dos efeitos patrimoniais.[8]

Quanto à opção pelo regime da comunhão universal, em que ambos passam a ser proprietários dos bens particulares do outro, o Superior Tribunal de Justiça passou a permitir a eficácia retroativa, sob o fundamento de que o novo regime amplia as garantias patrimoniais, não prejudicando terceiros, consolidando, ainda mais, a sociedade conjugal.[9]

Será?

Pelo jeito a preocupação é somente preservar o interesse de terceiros. E o interesse de um dos cônjuges? Ficará alijado da metade do seu patrimônio? Trata-se de uma doação?

Aqui também, descabido, via alteração do regime de bens, eleger um regime que subtraia bens de um dos cônjuges ou companheiros, a significar renúncia de um à propriedade de seus bens e o enriquecimento gratuito do outro.

O fato é que estas discrepâncias não têm mais qualquer razão de ser.

A diferenciação entre casamento e união estável foi banida pelo STF.[10] Apesar de a decisão dizer com o direito de concorrência sucessória, o fundamento foi o princípio da igualdade consagrado constitucionalmente entre casamento e união estável.

Deste modo, nada justifica este tratamento diferenciado quanto às questões de ordem patrimonial entre casamento e união estável. Para lá de desnecessário justificar a pretensão de alterar o regime de bens. Bem como judicializar o pedido, que trata exclusivamente de aspectos materiais entre pessoas maiores e capazes.

Indispensável é impedir que, normalmente no limiar de uma separação, um dos cônjuges ou companheiro use de manobras para prejudicar o outro, vindo a se beneficiar com transferências de patrimônio com absoluto desrespeito ao direito adquirido de cada qual com relação aos bens que lhe pertencem.

 

 

 

[1] STJ – AgInt no AREsp 1.631.112/MT 2019/0359603-6, 4ª T., Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 26/10/2021.

[2] STJ – AREsp 1.980.523/RJ (Dec. monocrática), Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 07/12/2021.

[3] STJ – REsp 1.988.228/PR 2022/0056363-6 (dec. monocrática), Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 25/04/2022.

[4] CNJ – Provimentos 37/2014 e 141/2013.

[5] Nesse sentido: CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva Educação, 2002, p. 82; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Referências sobre o contrato de união estável. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (coord.). Questões controvertidas no direito das obrigações e dos contratos. São Paulo: Método, 2005, v, 4, p. 426; FARIAS,  Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Famílias. 15. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 539-540.

[6] TJRS – AC 70083730986 RS, 8ª Câm. Cív., Rel. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 23/04/2020.

[7] TJSP – AC 10184928220208260564 SP 1018492-82.2020.8.26.0564, 3ª C. Dir. Priv., Rel. Viviani Nicolau, j. 18/08/2021.

[8] STJ – AgInt no AREsp 1631112 MT 2019/0359603-6, 4ª T., Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 26/10/2021.

[9] STJ – REsp 1671422 SP 2017/0110208-3, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, j. 25/04/2023.

[10] STF – Tema 498: É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002.

 

Publicado em 21/08/2023.

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