Maria Berenice Dias[1]
Enquanto as pessoas se tratam de “meu bem”, tudo vai bem!
Quando do fim do sonho do amor eterno, cada um só fala nos “meus bens”.
A depender do grau de ressentimento – que sempre existe – todos querem ser recompensados pelas mágoas e ressentimentos. Afinal, alguém tem que pagar pelo fim do sonho do amor eterno.
Por isso, no mais das vezes, a partilha do patrimônio perpetua-se na Justiça. Ambos querem ficar, ou com a maior parte, ou a melhor delas. As justificativas sempre são as mesmas: que adquiriu o bem sozinho, que contribuiu mais para a sua aquisição etc. Enfim, a vã tentativa de ser indenizado pela dor da solidão, pelo investimento afetivo, pelo tempo perdido…
O fato é que, no limiar de uma vida a dois, é difícil falar em regime de bens. Como todo o relacionamento afetivo gera embaralhamento de sonhos e de patrimônio, no silêncio que decorre do constrangimento que cerca as relações afetivas, presume a lei que o desejo do casal seja distinguir: o que é meu, o que é teu e o que é nosso. Elege assim, como regime supletivo, o regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725).
Esta intervenção não afronta a liberdade das pessoas de deliberarem sobre seus bens da forma que quiserem. Se há um espaço em que existe respeito ao princípio da autonomia da vontade, é o que diz com as questões de ordem patrimonial, eminentemente de natureza privada. Quer antes do casamento, via pacto antenupcial (CC 1.640, parágrafo único); quer por meio de contrato de convivência, na união estável (CC 1.725).
Por falta de vedação legal, os conviventes podem estabelecer quando quiserem e alterar a qualquer tempo o regime de bens, formalizando novos contratos, antes ou durante o período de convivência. No casamento, o regime de bens precisa ser eleito antes do casamento. E, surpreendentemente, para os cônjuges fazerem uso da prerrogativa de alterar o regime de bens, é indispensável que ingressem com uma ação judicial, devendo o pedido ser devidamente justificado (CC 1.639, §2º). Caso não aceita a justificativa apresentada, o juiz pode negar o pedido, uma clara afronta à liberdade dos cônjuges de fazer o que quiserem com os seus bens.[2] Mas há mais. É exigida a participação do Ministério Público (CPC 734, §1º), única exceção à sua necessária atuação, já que sua presença é indispensável somente quando há interesse de incapazes (CPC 178, II e 698).
Mas esta não é a única injustificável interferência no direito de escolha do par. Presume a lei que, quem tem mais de 70 anos, não tem discernimento para eleger o regime de bens (CC 1.641, II). Ou seja, casar pode, só que o casamento não tem efeitos patrimoniais. É imposto o regime da separação legal de bens.
Esta inconstitucional interferência no que diz com a eleição do regime de bens, pelo jeito, visa a proteger o patrimônio de quem, cego pela paixão, se esquece da razão. Com isso o seu patrimônio fica “preservado” para os seus herdeiros.
Por orientação jurisprudencial, o mesmo regime aplica-se à união estável.[3] Apesar de não haver qualquer restrição na lei (CC 1.723-1.727), quando do início da união, se um dos conviventes tiver mais de 70 anos, é feita analogia, restringindo direitos.
É tal o absurdo desta indevida ingerência que, simplesmente, o Supremo Tribunal Federal a derrogou através de súmula.[4] Gerou a presunção de que os bens adquiridos durante o casamento se comunicam. Ou seja, alterou o regime da separação obrigatória de bens para o regime da comunhão parcial. Sequer é exigida prova do esforço de quem aparentemente deu “o golpe do baú”, para que faça jus à metade do patrimônio adquirido durante o período da vida em comum.[5]
Às claras que este regime não se confunde com o regime da separação convencional de bens (CC 1.687), quando, de forma livre, o par elege não misturar amor e patrimônio. Neste, a incomunicabilidade atinge tanto os bens particulares, adquiridos por cada um antes da união, como os bens adquiridos durante o relacionamento. Deste modo, o regime da separação legal, diz com os bens passados, não os futuros.[6] Já no regime da separação convencional, a incomunicabilidade atinge tanto o patrimônio já existente como aquele que cada um vier a adquirir em nome próprio.[7]
Como a Justiça tem dificuldade em lidar com injustiças, vem se consolidando o entendimento de que, mesmo no regime da separação convencional, é cabível a partilha de bens, ainda que esteja na titularidade de somente um dos cônjuges. Para isso, no entanto, é preciso a prova da participação efetiva do não titular para a constituição do acervo patrimonial.[8] Mas, como vai conseguir a mulher provar sua participação na aquisição do patrimônio? Inquestionável que tem sua capacidade laborativa limitada. Afinal, ainda tem ela o fardo da dupla jornada de trabalho, sendo a responsável pela casa e pela criação dos filhos.
Na contramão, Zeno Veloso,[9] Mário Delgado e Flávio Tartucce,[10] sustentam a possibilidade de cônjuges e conviventes afastarem a aplicação da Súmula 377, quer no regime da separação convencional, quer no da separação obrigatória. No entanto, se há a possibilidade de afastar a incidência da súmula, é preciso ser assegurada também a possibilidade de ser prevista sua incidência.
Nesta esteira a Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco expediu provimento[11] impondo ao oficial do registro civil o dever de comunicar aos noivos e conviventes dita possibilidade, quando forem firmar via pacto antenupcial ou contrato de convivência.
Esta possibilidade de previamente excluir qualquer direito futuro, macula um punhado de regras constitucionais que asseguram a princípio da igualdade de gênero, bem como afronta a proibição do enriquecimento sem causa (CC 884).
Como vai a mulher previamente abrir mão de tudo o que eventualmente vier a ser adquirido durante o período da vida conjugal? Afinal, ainda persiste, até os dias de hoje, resquícios de uma sociedade patriarcal, machista e sexista. Os números da violência doméstica, do feminicídio e dos estupros, são provas inquestionáveis.
E dita sugestão, feita às vésperas do casamento, quando já está tudo pronto para a realização do sonho maior – ainda embalado por quase a totalidade das mulheres – as pega totalmente desprevenidas. Não há como recuar, não tem como dizer não.
Os tempos mudaram, a sociedade evoluiu, a mulher conseguiu inserção no mundo do trabalho e na vida pública. Mas nas relações privadas, ela ainda se sujeita a um relacionamento verticalizado!
Publicado em 23/06/2016.
[1] Advogada
Vice Presidente Nacional do IBDFAM
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[2] Casamento. Alteração de regime de bens. É possível a alteração do regime de bens adotado no casamento, para tanto é necessário processo judicial, consenso dos cônjuges na postulação, motivação e ressalva do direito de terceiros. Verificado que não procedem as razões invocadas pelas partes para alteração do regime de bens de comunhão parcial para separação, descabe o acolhimento do pedido. Apelação cível desprovida, de plano. (TJRS, AC 70066154584, 7ª C. Cív., Rel. Des. Jorge Luís Dall’Agnol, j. 27/11/2015).
[3] Civil. Recurso especial. Direito de família. União estável. Contrato de convivência. […] Regime obrigatório de separação de bens no casamento. Inciso II do art. 1.641 do CC/02. Aplicação na união estável. Aferição da idade. Época do início do relacionamento. Precedentes. […] 2) pretensão de se atribuir efeitos retroativos a contrato de convivência. Impossibilidade. Recurso especial da ex-companheira não provido. 1. A condição de idoso e o acometimento de doença incurável à época da celebração do contrato de convivência, por si, não é motivo de incapacidade para o exercício de direito ou empecilho para contrair obrigações, quando não há elementos indicativos da ausência de discernimento para compreensão do negócio jurídico realizado. 2. Com o aumento da expectativa de vida do povo brasileiro, conforme pesquisa do IBGE, com a notória recente melhoria na qualidade de vida dos idosos e, com os avanços da medicina, não é razoável afirmar que a pessoa maior de 60 anos não tenha capacidade para praticar os atos da vida civil. Afirmar o contrário afrontaria diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana e o da igualdade. […] 5. Apesar do inciso II do art. 1.641 do CC/02 impor o regime da separação obrigatória de bens somente no casamento da pessoa maior de 60 anos (70 anos após a vigência da Lei nº 12.344/2010), a jurisprudência desta egrégia Corte Superior estendeu essa limitação à união estável quando ao menos um dos companheiros contar tal idade à época do início do relacionamento, o que não é o caso. Precedentes. 6. O fato do convivente ter celebrado acordo com mais de sessenta anos de idade não torna nulo contrato de convivência, pois os ex-companheiros, livre e espontaneamente, convencionaram que as relações patrimoniais seriam regidas pelo regime da separação total de bens, que se assemelha ao regime de separação de bens. Observância do disposto no inciso II do art. 1.641 do CC/02. […] 8. No curso do período de convivência, não é lícito aos conviventes atribuírem, por contrato, efeitos retroativos à união estável elegendo o regime de bens para a sociedade de fato, pois, assim, se estar-se-ia conferindo mais benefícios à união estável que ao casamento. 9. Recursos especiais não providos. (STJ, REsp 1.383.624/MG, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, p. 12/06/2015).
[4] Súmula 377 do STF: No regime da separação legal de bens, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento.
[5] Agravo regimental. Agravo em recurso especial. Casamento. Regime de bens. Separação obrigatória de bens. Art. 258, II, do CC/16 (art. 1.641, II, CC/02). Súmula n. 284/STF. Partilha. Esforço comum. Prova. Súmulas n. 7 e 83/STJ […] 3. No regime da separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, sendo presumido o esforço comum (Súmula n. 377/STF). 4. Agravo regimental desprovido. (STJ, AgRg no AREsp 650.390/SP, 3ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 27/10/2015).
[6] Processual civil. Agravo regimental no recurso especial. Direito civil. Família. Ação de inventário que visa à partilha de bens adquiridos na constância de sociedade conjugal formada sob o regime de separação legal de bens. Art. 258 do CC/1916. Esforço comum. Súmula n. 377/STF. Precedentes do STJ. 1. A partilha dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal, erigida sob a forma de separação legal de bens (art. 258, parágrafo único, I, do CC/1916), não exige a comprovação ou demonstração de comunhão de esforços na formação desse patrimônio, a qual é presumida, à luz do entendimento cristalizado na Súmula n. 377/STF. Precedentes do STJ. 2. A necessidade de preservação da dignidade da pessoa humana e de outras garantias constitucionais de igual relevância vem mitigando a importância da análise estritamente financeira da contribuição de cada um dos cônjuges em ações desse jaez, a qual cede espaço à demonstração da existência de vida em comum e comunhão de esforços para o êxito pessoal e profissional dos consortes, o que evidentemente terá reflexos na formação do patrimônio do casal. 3. No caso concreto, a recorrente, ora agravada, foi casada com o agravante por aproximadamente 22 (vinte e dois) anos pelo regime da separação legal de bens, por imposição do art. 258, parágrafo único, I, do CC/1916, portanto, perfeitamente aplicável o entendimento sedimentado na Súmula n. 377 do STF, segundo o qual os aquestos adquiridos na constância do casamento, pelo regime da separação legal, são comunicáveis, independentemente da comprovação do esforço comum para a sua aquisição, que, nessa hipótese, é presumido. 4. Agravo regimental desprovido. (STJ, AgRg no REsp 1.008.684/RJ, 4ª T., Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 02/05/2012).
[7] Divórcio. Regime da separação convencional de bens. Partilha. Impossibilidade. 1. O regime obrigatório da separação legal de bens, previsto no art. 1.641 do CCB, não se confunde com o regime facultativo da separação de bens, previsto nos arts. 1.687 e 1.688 do mesmo diploma legal. Somente na hipótese de separação legal de bens, os adquiridos na constância do casamento de forma onerosa devem ser partilhados em proporção igualitária, não se aplicando, in casu, o teor da Súmula nº 377 do STF. […] Apelo da autora provido, desprovido o recurso do réu. (TJRS, AC 70059719336, 7ª C. Cív., Rel. Des. Sandra Brisolara Medeiros, j. 02/07/2014).
[8] Divórcio. Separação convencional de bens. Pacto antenupcial. Partilha. Sentença reformada em parte. 1 Os litigantes optaram pelo regime da separação convencional de bens quando do matrimônio, e apesar de terem firmado pacto antenupcial, não se ocuparam em minuciar os bens que detinham com exclusividade antes do enlace. […] 3 A aquisição dos imóveis deu-se a partir do casamento, e em havendo dúvidas quanto à participação econômica de cada um dos cônjuges, incide o regramento da Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal. Na hipótese dos autos ambos os cônjuges têm rendimentos próprios, posto serem empresários, e as equivalências conjugais na administração das finanças em comum, por vezes, são distribuídas com base da conveniência natural do cotidiano matrimonial. 4 Os frutos civis advindos da locação dos imóveis, mostra-se como consectário lógico da co-propriedade formada a partir do matrimônio, de maneira que ambos os litigantes fazem jus a metade dos valores auferidos a esse título. 5 – Deu-se parcial provimento ao recurso do autor. (TJDF, AC 20120111992285/DF 0055833-14.2012.8.07.0001, 2ª T. Cív., Rel. Des. Leila Arlanch, j. 21/01/2015).
[9] VELOSO, Zeno. Casal quer afastar a Súmula 377. Disponível em http://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/333986024/ casal-quer-afastar-a-sumula-377-artigo-de-zeno-veloso. Acesso em 15 mai. 2016).
[10] TARTUCE, Flávio. Da possibilidade de afastamento da Súmula 377 do STF por pacto antenupcial. Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI239721,61044-Da+possibilidade+de+afastamento+da+sumula+377+do+STF+por+pacto>. Acesso em 08 jun. 2016.
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[11] TJPE, Provimento 8/2016.