Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Separação

Amor proibido

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Diante do que tem sido divulgado de forma “espetaculosa” pelos mais diversos veículos de comunicação, só falta a lei dizer: “É proibido amar”.

Ante a leviana afirmativa de que o simples namoro ou um relacionamento fugaz podem gerar obrigações de ordem patrimonial, começou-se a decantar a necessidade de o par firmar contratos buscando assegurar a ausência de comprometimento recíproco e a incomunicabilidade do patrimônio presente e futuro.

Parece que o amor está virando um negócio. Ninguém mais pensa na alegria de ter alguém, pois vive com medo de que o “querer bem’ se transforme em “dividir bens’…

Assim, o intuito de prevenir responsabilidades acaba por monetarizar as relações afetivas. Esquece-se, no entanto, um fato: somente geram encargos os relacionamentos que, por sua duração, levam a um tal envolvimento de vidas que provoque um verdadeiro embaralhamento de patrimônios. Essa é a única hipótese em que o Judiciário reconhece a necessidade de partilhar o que foi adquirido após o início da vida em comum. A obrigação alimentar, por outro lado, só é imposta depois de um longo período de convivência, em favor de quem – geralmente a mulher – se dedicou exclusivamente aos cuidados com a casa e a prole, não tendo mais condições de ingressar no mercado de trabalho para prover a própria sobrevivência.

Como se tudo isso não bastasse, surgiu outra espécie de terrorismo. Não se consegue detectar a origem do que vem sendo alardeado, até por charges via internet: que existe no casamento o “débito conjugal”, que um cônjuge deve ceder à vontade do outro e atender ao seu desejo sexual. Tal obrigação não está na lei. A previsão da “vida em comum” entre os deveres do casamento (Código Civil de 1916, art. 230, II, e novo Código Civil, art. 1.566, II) não significa imposição de “vida sexual ativa” nem impõe a obrigação de manter “relacionamento sexual”. Essa interpretação infringe até o princípio constitucional do respeito à dignidade da pessoa, além de violar a liberdade e o direito à privacidade, afrontando a inviolabilidade do próprio corpo. Não existe sequer a obrigação de se submeter a um beijo, afago ou carícia, quanto mais de se sujeitar a práticas sexuais pelo simples fato de estar casado. Mas talvez o mais absurdo seja sustentar que o descumprimento de tal “dever” dá ensejo a pretensão indenizatória por dano moral, como se respeitar a própria vontade afrontasse a imagem do outro ou comprometesse sua postura ética.

Não é só. Também se sustenta – igualmente sem qualquer respaldo legal – que o fim do amor gera o dever de indenizar, como se o casamento fosse um contrato indissolúvel e a busca da separação configurasse descumprimento de cláusula contratual, com a possibilidade de gerar direito à reparação por dano moral. Mais uma vez é de questionar qual o bem jurídico violado que ensejaria o reconhecimento de um abalo à estrutura pessoal, capaz de configurar responsabilidade civil.

É preciso que as pessoas acreditem na sabedoria da Justiça em distinguir as situações, mesmo quando, em face da evolução dos costumes e do desenvolvimento da sociedade, os relacionamentos se tornem íntimos de forma quase instantânea. Porém, não desapareceram a beleza do namoro e o encanto do noivado, que não ensejam responsabilizações de qualquer ordem.

Está na hora de buscar a felicidade e usufruir exclusivamente das alegrias que o comprometimento afetivo enseja, isto é, o direito de ter alguém em quem confiar, com quem dividir tristezas e multiplicar bons momentos. Que a responsabilidade daí decorrente fique por conta da tão repetida frase de Saint-Exupéry: És responsável por quem cativas. É só isso que o amor gera: o direito de ser feliz e o dever de fazer o outro feliz.

 

Publicado em 06/07/2016.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

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