Maria Berenice Dias[1]
O preconceito contra lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI) existe desde que o mundo é mundo. Mas, ao menos a partir da chamada era cristã, há um injustificável repúdio a tais segmentos, o que, no entanto, não tem o condão de fazer estas pessoas desaparecerem.
Apesar do avanço de um assustador um conservadorismo, que se alastra globalmente, não adianta. A eclosão dos direitos humanos abriu as portas para que todos sejam aceitos e respeitados do jeito que são. Mais dia, menos dia. Mais ano, menos ano. Nem que se tenha de esperar um século, ou mais, a diversidade sexual vai ser aceita. Todos os que integram esta sigla – que não para de agregar mais segmentos – sairão sem medo do armário. Vão receber tutela jurídica e suas uniões afetivas serão reconhecidas como entidade familiar.
O Brasil era o país com maior número de católicos no mundo. A forte influência religiosa gerou normas de conduta muito conservadoras. A lei garantia direitos exclusivamente a quem vivia dentro do modelo oficial de família: a união entre um homem e uma mulher, formalizada pelo casamento. Somente seus integrantes tinham direitos. Nada era assegurado aos vínculos extramatrimoniais. Considerados como simples sociedades de fato, determinava-se apenas a divisão patrimonial, quando provada a efetiva participação do “sócio” na aquisição dos bens, considerados como “capital social”. Filhos nascidos fora do casamento não podiam ser registrados pelo pai. Assim, durantes décadas, multidões de crianças e mulheres eram condenadas à invisibilidade pelo simples fato de viverem fora do modelo eleito pelo Estado. Relegadas à própria sorte, eram excluídas da proteção legal. Às claras, a forma mais perversa de punição.
Forma-se verdadeiro círculo vicioso. O legislador, para garantir sua reeleição, só aprova leis que não desagradam seu eleitorado. Na falta de lei, a tendência da justiça sempre foi não reconhecer direitos. Como se a omissão legal representasse o desejo da sociedade em não tutelar determinadas situações fáticas. Quando o verdadeiro motivo era – e ainda é – o temor de se comprometer com pautas que contemplem minorias alvo da intolerância social.
Diante deste panorama, na busca de uma justiça mais justa, mais rente à realidade da vida, há mais de 20 anos, comecei a proclamar que o juiz tem o dever de julgar. A falta de lei não significa ausência de direito. Até porque, é o que diz a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.[2]
Mas como o novo assusta, os avanços são demorados. É difícil sair da zona de conforto. Estas resistências é que motivaram o nascimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Em 25 anos, com mais de 18 mil associados, provocou a mais profunda revolução no âmbito das relações familiares. Tanto no conceito da conjugalidade como da parentalidade. O casamento deixou de ser a única forma de constituição da família. Com isso foi necessário buscar outro parâmetro para conceituá-la, de forma a albergar outras estruturas de convívio merecedoras de tutela.
A identificação do afeto como elemento constitutivo da família, levou a inclusão da ética no seu conceito. Passou-se a falar na ética do afeto. Ou seja, a presença do vínculo de afetividade gera a responsabilização mútua dos seus membros. Com o alargamento conceitual, o “Direito de Família” passou a se chamar “Direito das Famílias”.
Os avanços doutrinários encorajaram magistrados mais sensíveis. Aqueles que têm dificuldade de conviver com injustiças começaram a garantir direitos mesmo diante do vácuo legislativo. Estas decisões de vanguarda, divulgadas em publicações especializadas, em redes sociais e nos meios de comunicação, auxiliaram os advogados a bater às portas do Poder Judiciário buscando o reconhecimento de direitos ainda que não previstos em lei.
Foi quando, no início deste século, escrevi a primeira obra, denunciando a omissão legal e a necessidade de as uniões de pessoas do mesmo sexo merecerem tutela como entidade familiar: “União homossexual, o preconceito e a Justiça”. À medida que avanços começaram a ocorrer, a obra foi alterando de nome. Tanto que a 7ª edição é intitulada “Homoafetividade e os direitos LGBTI”.
Com o intuito de retirar o ranço que carrega a expressão “homossexualidade”, criei o neologismo “homoafetividade” para evidenciar que “uniões homoafetivas” são também relações de afeto, devendo ser reconhecidas como entidades familiares merecedoras de tutela. Enquanto desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com base nos princípios constitucionais da liberdade, igualdade e respeito à dignidade da pessoa, proferi as primeiras decisões, concedendo às uniões homoafetivas direitos no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões.
Como eram escassas ações judiciais que chegavam aos tribunais, resolvi me aposentar da magistratura e abrir o primeiro escritório de advocacia especializado em “Direito Homoafetivo”. Assim, com letra maiúscula, por se tratar de um novo ramo do Direito.
Ao receber a carteira profissional de advogada, requeri à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a criação de Comissões de Diversidade Sexual e Gênero, com a finalidade de qualificar os advogados para atuarem nestas demandas. Logrei aprovar a criação de Comissão Nacional, que presidi por 10 anos, período em que foram instaladas mais de 200 comissões país a fora.
A Comissão Nacional constituiu um grupo de juristas que, juntamente com os movimentos sociais, elaborou o Projeto do Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero. Durante seis anos foram coletadas assinaturas e, ao chegar ao número de 100 mil, foi apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Senado Federal, por iniciativa popular (PLS 134/2018).[3]
Havia também a necessidade de dar visibilidade aos avanços vagarosamente alcançados. Como inexiste um banco nacional de dados das decisões judiciais e é difícil o acesso aos processos que tramitam em segredo de justiça, criei um site em que estão disponibilizados os direitos garantidos à população LGBTI.[4] Para isso, foi precioso o apoio das Comissões da Diversidade Sexual e Gênero da OAB e do IBDFAM, que encaminham não só julgados, mas também os avanços obtidos em sede administrativa.
Certamente a primeira grande vitória foi obter o deslocamento da competência para o julgamento das ações versando sobre direito homoafetivo, das Varas Cíveis para as Varas de Família. O passo seguinte foi o reconhecimento de que as uniões de pessoas do mesmo sexo são uma entidade familiar e não uma sociedade de fato. A ausência de lei não intimidou juízes e tribunais. Invocando a analogia, aplicaram as regras da união estável: figura jurídica que define como família os relacionamentos extramatrimoniais. Não demorou a ser admitida a adoção de crianças por homossexuais, bem como a possibilidade de eles fazerem uso das técnicas de reprodução assistida. O reconhecimento da multiparentalidade autoriza que figure no registro de nascimento mais de um pai ou mais de uma mãe.
Consolidada a jurisprudência no âmbito dos tribunais estaduais, estes temas chegaram aos tribunais superiores. Em face do texto da Constituição da República que diz que a união estável é o relacionamento entre um homem e uma mulher,[5] em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a inconstitucionalidade da exigência da distinção de sexo para o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas.[6] Esta emblemática decisão foi certificada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como patrimônio documental da humanidade.
Logo em seguida o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou não inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo.[7]
Como alguns juízes resistiam em acolher a orientação firmada pela Corte Suprema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – órgão administrativo e fiscalizador da Justiça – proibiu as autoridades competentes de se recusarem a habilitar ou celebrar casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.[8]
E foi assim que o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a assegurar o casamento homoafetivo por decisão judicial, e não em virtude de lei. A Suprema Corte dos Estados Unidos acabou por copiar o modelo brasileiro.
Também os transgêneros acumularam várias conquistas. O direito ao uso do nome social – nome como a pessoa se identifica socialmente – foi autorizado por órgãos da administração pública, instituições de ensino e empresas privadas. Também foram editadas algumas leis estaduais e municipais garantindo igual direito. E acabou a justiça por assegurar o direito de os procedimentos de readequação genital e de adequação das características sexuais serem realizados pelo sistema público de saúde (SUS). Também foi admitida a alteração do nome e do sexo no registro civil, mesmo sem a realização de qualquer intervenção cirúrgica.
Finalmente, em 2018, por decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF), foi garantido aos transgêneros o direito à alteração do nome e da identidade de gênero em sede administrativa, diretamente no registro civil, por autodeclaração, sem a necessidade de se submetere à redesignação sexual ou hormonoterapia.[9]
Apesar da resistência inicial dos movimentos sociais, a inserção da letra “I” na sigla LGBT, que identifica as pessoas intersexo, provocou um resultado surpreendente. Acabou a invisibilidade dos intersexuais – que eram chamados de hermafroditas – pessoas que nascem com órgãos genitais ambíguos. Certamente, é o segmento mais vulnerável.
Na ânsia de enquadrar todos no modelo sexual binário, crianças são vítimas de verdadeira mutilação. Com autorização do Conselho Federal de Medicina (CFM),[10] os médios realizam cirurgias de “adequação genital” nos bebês, sem qualquer respeito ao direito de eles, um dia, escolherem a própria identidade de gênero. Os pais são aconselhados a não revelar ao filho o “problema” que ele teve, o que gera um ambiente de silêncio e mentiras.
Os intersexuais passaram a procurar as Comissões da Diversidade Sexual da OAB e a denunciar estas práticas perversas. Para chamar a atenção das autoridades, coordeno a primeira publicação que aborda o tema: “Intersexo – aspectos jurídicos, internacionais, trabalhistas, registrais, médicos, psicológicos, sociais e culturais”. O tema começou a despertar o interesse da sociedade, tanto que foi criada a Associação Brasileira de Pessoas Intersexo (ABRAI) .
Além disso, a falta de lei tem outro efeito devastador e que gera números assustadores. O Brasil é o país em que mais se mata LGBTIs no mundo. A cada 19 horas alguém é morto por sua orientação sexual ou identidade de gênero.[11]
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal[12] ao reconhecer a omissão do legislador em criminalizar a homofobia e a transfobia, determinou que tais condutas sejam punidas pela Lei do Racismo (Lei 7.716/1986), que prevê outros crimes de ódio: por discriminação ou preconceito por raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. As penas são de um a cinco anos de prisão. O racismo é crime inafiançável e imprescritível (CR, art. 5º, XLII).
Há mais.
O Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2020, reconheceu como inconstitucional a restrição de doação de sangue por homens gays e bissexuais.[13]
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou ao Ministério da Saúde que adote medidas para, que o SUS garanta o acesso a especialidades médicas à população transexual e travestis, respeitando a identidade de gênero com a qual o paciente se identifica.[14]
Este é o atual retrato do Brasil. Importantes avanços, mas ainda permeados de enormes resistências.
No entanto, o crescimento das igrejas evangélicas fundamentalistas arregimentou grande contingente de seguidores. Seus pastores começaram a se aproximar dos políticos, a financiar campanhas milionárias. Logo em seguida, passaram eles próprio a disputar cargos eletivos. Assim, a cada eleição tem aumentado o número da chamada bancada evangélica no parlamento brasileiro.
O atual Presidente da República é um militar, evangélico, com um discurso conservador e homofóbico. A favor da “família tradicional”, faz manifestações raivosas contra os homossexuais, responsabilizando-os pela “degradação moral da sociedade”.
Claramente se trata de uma reação ao neo-feminismo e ao movimento antirracismo. Cabe atentar que ocorreu a expansão dos grupos em defesa dos direitos LGBTQIA+. Cada vez mais organizados, com o uso das novas mídias digitais, atingiram uma capilaridade inédita e são artífices de muitas mudanças.
Ainda que os avanços sejam muitos – e significativos – é frágil a garantia de direitos assegurados exclusivamente pelo Poder Judiciário. A depender da mudança dos integrantes dos tribunais, a jurisprudência pode mudar. Daí a indispensabilidade da aprovação do Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero.
Definitivamente, gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e intersexos “saíram do armário” e ganharam as ruas. Coloriram o Brasil com as cores do arco-íris.
E este é um caminho sem volta. Não só no Brasil, mas em todo o mundo.
Publicado em 02/09/2021.
[1] Advogada, Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, fundadora e Vice-Presidente Nacional do IBDFAM. Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM.
[2] Lei 4.657/1942, art. 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[3] Texto no site: www.direitohomoafetivo.com.br
[4] www.direitohomoafetivo.com.br
[5] CR, art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
[6] STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, Relator Ministro Ayres Britto, julgado em 05/05/2011.
[7] STJ, RESP 1.183.378/RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 25/10/2011.
[8] CNJ, Resolução 175, de 14/05/2013.
[9] STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275 e Recurso Extraordinário (RE) 670.422, Rel. para o acórdão, Min. Luiz Edson Fachin, julgado em 15/08/2018.
[10] CFM, Resolução 1.664/2003.
[11] Dado do Grupo Gay da Bahia (GGB): www.grupogaydabahia.com.br.
[12] STF, Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão 26 e Mandado de Injução 4.733,T. Pleno, Rel. Min. Celso de Melo.
[13] STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.543, T. Pleno, Rel. Min. Luiz Edson FAchin, j. 8/5/2020.
[14] STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 787, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 29/06/2021.