Maria Berenice Dias[1]

 

Sumário: 1. Introdução – 2. União estável – 2. Casamento – 3. Transgêneros – 4. Intersexuais – 5. Criminalização da homotransfobia – 6.  Doação de sangue – 7. Reprodução assistida – 8. Estatuto da Diversidade Sexual – 9. Panorama atual.

 

  1. Introdução

Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI) existem desde que o mundo é mundo. E o preconceito contra elas, também. Há um injustificável repúdio a tais segmentos, o que, no entanto, não tem o condão de fazê-los desaparecer.

Apesar da eclosão dos direitos humanos que abriu as portas para que todos sejam aceitos e respeitados do jeito que são, um assustador fundamentalismo conservador se alastra globalmente. Só que não adianta. Mais dia, menos dia. Mais ano, menos ano. Nem que se tenha de esperar um século, ou mais, a diversidade sexual vai ser aceita. Todos os que integram esta sigla – que não para de agregar mais segmentos – sairão sem medo do armário. Vão receber tutela jurídica e suas uniões afetivas vão ser reconhecidas como entidade familiar.

O Brasil era o país com maior número de católicos no mundo. A forte influência religiosa gerou normas de conduta muito conservadoras. A lei garantia direitos exclusivamente a quem vivia dentro do modelo oficial de família: a união entre um homem e uma mulher, formalizada pelo casamento. Somente seus integrantes tinham direitos. Nada era assegurado aos vínculos extramatrimoniais. Considerados como simples sociedades de fato, era determinava-se apenas a divisão patrimonial, quando provada a efetiva participação do “sócio” na aquisição dos bens, considerados como “capital social”.  Filhos nascidos fora do casamento não podiam ser registrados pelo pai. Assim, durante décadas, multidões de crianças e mulheres foram condenadas à invisibilidade pelo simples fato de viverem fora do modelo eleito pelo Estado.  Relegadas à própria sorte, eram excluídas da proteção legal. Às claras, a forma mais perversa de punição.

O fato é que se forma um verdadeiro círculo vicioso. O legislador, para garantir sua reeleição, só aprova leis que não desagradam seu eleitorado. Na falta de lei, a tendência da justiça sempre foi não reconhecer direitos. Como se a omissão legal representasse o desejo da sociedade em não tutelar determinadas situações fáticas. Quando o verdadeiro motivo era – e ainda é – o temor de se comprometer com pautas que contemplem minorias alvo da intolerância social.

Diante deste panorama, na busca de uma justiça mais justa, mais rente à realidade da vida, há mais de 20 anos, comecei a proclamar que o juiz tem o dever de julgar.  A falta de lei não significa ausência de direito. Até porque, é o que diz a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.[2]

Os avanços doutrinários encorajaram magistrados mais sensíveis. Aqueles que têm dificuldade de conviver com injustiças começaram a garantir direitos mesmo diante do vácuo legislativo. Estas decisões de vanguarda, divulgadas em publicações especializadas, em redes sociais e nos meios de comunicação, auxiliaram os advogados a bater às portas do Poder Judiciário buscando o reconhecimento de direitos ainda que não previstos em lei.

Foi quando, no início deste século, escrevi a primeira obra, denunciando a omissão legal e a necessidade de as uniões de pessoas do mesmo sexo merecer tutela como entidade familiar: “União homossexual, o preconceito e a Justiça”. À medida que avanços começaram a ocorrer, a obra foi alterando de nome. Tanto que a 7ª edição é intitulada “Homoafetividade e os direitos LGBTI”.

Com o intuito de retirar o ranço que carrega a expressão “homossexualidade”, criei o neologismo “homoafetividade” para evidenciar que “uniões homoafetivas” são também relações de afeto, devendo ser reconhecidas como entidades familiares merecedoras de tutela. Enquanto desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com base nos princípios constitucionais da liberdade, igualdade e respeito à dignidade humana, proferi as primeiras decisões, concedendo às uniões homoafetivas direitos no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões.

Como eram escassas ações judiciais que chegavam aos tribunais, resolvi me aposentar da magistratura e abri o primeiro escritório de advocacia especializado em “Direito Homoafetivo”. Assim, com letra maiúscula, por se tratar de um novo ramo do Direito.

Certamente o passo seguinte foi o reconhecimento de que as uniões de pessoas do mesmo sexo são uma entidade familiar e não uma sociedade de fato. Juízes e tribunais, invocando a analogia, passaram a aplicar as regras da união estável: figura jurídica que define como família os relacionamentos extramatrimoniais. Não demorou a ser admitida a adoção de crianças por homossexuais, bem como a possibilidade de eles fazerem uso das técnicas de reprodução assistida. O reconhecimento da multiparentalidade autoriza que figure no registro de nascimento mais de um pai ou mais de uma mãe.

Consolidada a jurisprudência no âmbito dos tribunais estaduais, estes temas chegaram aos tribunais superiores.

 

  1. União estável

Como a Constituição da República diz que a união estável é o relacionamento entre um homem e uma mulher,[3] em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a inconstitucionalidade da exigência da distinção de sexo para o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas, com os mesmos direitos e obrigações das uniões heteroafetivas.[4] Esta emblemática decisão foi certificada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como patrimônio documental da humanidade.

 

  1. Casamento

Logo em seguida o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou não inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo.[5]

Como alguns juízes resistiam em acolher a orientação firmada pela Corte Suprema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – órgão administrativo e fiscalizador da Justiça – proibiu as autoridades competentes de se recusarem a habilitar ou celebrar casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.[6]

E foi assim que o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a assegurar o casamento homoafetivo por decisão judicial, e não em virtude de lei.

  1. Transgêneros

No ano de 2018, por decisão vinculante, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou tese garantindo aos transgêneros o direito à alteração do nome e da identidade de gênero em sede administrativa, diretamente no registro civil, por autodeclaração, sem a necessidade de se submeter à redesignação sexual ou hormonoterapia.[7]

  1. Intersexuais

Resolução 1.664/2002 do Conselho Federal de Medicina regulamenta os procedimentos médicos-cirurgicso para os casos de intersexualidade – que eram chamados os hermafroditas.

No entanto, como no formulário para o registro de nascimento somente constava espaço para sexo masculino ou feminino, sem a cirurgia, não era possível o registro das crianças intersexo.

Em face disso o Conselho Nacional de Justiça, em 2021, autorizou o registro, devendo constar como sexo ignorado.[8]

A partir desta normatização, várias pessoas pediram, administrativamente, a alteração da identificação do seco para “não binário”.

 

  1. Criminalização da homotransfobia

Apesar de a Constituição reiteradamente vedar qualquer tipo de discriminação, nem o Código Penal (CP 140. § 3º) e nem a Lei do Racismo  (Lei 7.716/1986), incluem a prática da homofobia como crime.

Em face disso, o Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a omissão e, até o legislador prever esta hipótese de crime, determinou a aplicação da Lei que pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, às hipóteses de homotransfobia.[9]

 

  1. Doação de sangue

Portaria do Ministério da Saúde vedava a doação de sangue por homens que fizessem sexo com homens nos últimos 12 meses. Esta restrição foi reconhecida como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.[10]

 

  1. Reprodução assistida

O Conselho Federal de Medicina, que regulamenta o uso das técnicas de reprodução assistida, considerando o reconhecimento e qualificação como entidade familiar a união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal, garante acesso a qualquer pessoa. E, expressamente, permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina. [11]

 

  1. Estatuto da Diversidade Sexual

Em 23 de agosto de 2011, o Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero, elaborado pela Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB, com a participação dos movimentos sociais, foi formalmente apresentado ao Senado Federal por iniciativa popular, acompanhado de 100 mil assinaturas.

O PLS 134/2018 é o mais arrojado projeto legislativo deste século, quer pela sua abrangência, quer pelo seu significado e alcance. Recebeu parecer favorável do Relator, Conselheiro Carlos Roberto Siqueira Castro, mas acabou sendo arquivado, como todos os outros projetos referentes a esta temática.

 

  1. Panorama atual

Este é o atual retrato do Brasil. Importantes avanços, mas ainda permeados de enormes resistências.

O crescimento das igrejas evangélicas fundamentalistas tem ensejado, a cada eleição, assustador aumento do número da chamada bancada evangélica no parlamento brasileiro.

Ainda assim, ocorreu a expansão dos grupos em defesa dos direitos LGBTQIA+. Cada vez mais organizados, com o uso das novas mídias digitais, atingiram uma capilaridade inédita e são artífices de muitas mudanças.

Apesar de os avanços serem muitos – e significativos – é frágil a garantia de direitos assegurados exclusivamente pelo Poder Judiciário. A depender da mudança dos integrantes dos tribunais, a jurisprudência pode mudar. Daí a indispensabilidade da aprovação do Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero.

Definitivamente, gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e intersexos “saíram do armário” e ganharam as ruas.

Coloriram não só no Brasil, mas em todo o mundo com as cores do arco-íris.

E este é um caminho sem volta.

 

 

[1] Advogada, Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, fundadora e Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.

 

[2] Lei 4.657/1942, art. 4º:  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

[3] CR, art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

[4] STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, Relator Ministro Ayres Britto, julgado em 05/05/2011.

[5] STJ – RESP 1.183.378/RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 25/10/2011.

[6] CNJ, Resolução 175, de 14/05/2013.

[7] STF – Tema 761: I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”; III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos. (RE 670.422.)

[8]  CNJ –  Provimento 122/2021.

[9] STF – Mandado de Injunção 4733-DF, T. Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, j. 13/06/2019.

[10]  STF – ADI 5.543, T. Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, j. 11/05/2020.

[11] CFM – Resolução 2.320/2022.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *