Maria Berenice Dias[1]
Como era no século passado?
A indissolubilidade do casamento, tradicionalmente, era consagrada nas Constituições brasileiras. Por décadas, a lei punia quem ousasse descumprir os deveres matrimoniais ou se relacionar com uma pessoa casada. Essas interdições atingiam até os frutos de relacionamentos extraconjugais. Os filhos não podiam ser reconhecidos e recebiam uma quantidade enorme de perversos rótulos. No entanto, ditas proibições de nada adiantavam. Somente produziam severas injustiças.
Não há – e nunca houve – como obrigar alguém a cumprir a promessa feita no altar de amar o outro na pobreza, na tristeza e na doença, até que a morte os separe! Como diz a música de Djavan: “É improvável, é impossível ver alguém feliz de fato sem alguém pra amar”.
Difícil impor aos cônjuges que abram mão do direito de buscar a felicidade e se submetam eternamente ao significado etimológico dessa expressão. Cônjuge, vale lembrar, vem do latim “cum jugo” – peça de madeira ou arreio que mantém juntos os bois que puxam uma carroça.
Aliás, a tentativa de perpetuação da família nunca foi verdadeira. Havia o desquite. Para a sua concessão, era necessária a identificação de um culpado, condenação que geralmente era imposta à mulher. A infidelidade sempre foi um pecado feminino, mas era motivo de orgulho dos homens perante os amigos. Reconhecida a mulher como “adúltera”, perdia ela a guarda dos filhos, não tinha direito a alimentos e era condenada à retirada do nome do marido, o qual tinha sido obrigada a adotar quando do casamento.
Como as pessoas podiam se separar, mas não podiam casar novamente, a saída era constituir vínculos extramatrimoniais. Esse agir recebia o nome de “concubinato”, e era visto com enorme preconceito pela sociedade. Não gerava nenhum efeito patrimonial e nem produzia quaisquer consequências jurídicas, simplesmente pelo fato de o casal não ser “oficialmente” casado.
A vedação de reconhecimento desses relacionamentos, que sequer podiam ser formalizados, privilegiava o homem e sempre vinha em desfavor da mulher. Com a pecha de “concubina”, além do rechaço social, a mulher era alvo, também, do assédio sexual. Quando do fim do relacionamento pela separação ou pela morte do seu par, não tinha direito a nada: nem alimentos, nem direitos sucessórios. Era punida com a condenação à invisibilidade, como se não existisse.
Somente depois de a Justiça gerar legiões de mulheres famintas é que a “concubina”, foi reconhecida como “companheira” e passou a perceber indenização por serviços domésticos.
Muito depois é que essas uniões foram identificadas como “sociedade de fato”, no âmbito do Direito das Obrigações. Uma sociedade irregular que ensejava a divisão do patrimônio mediante a prova do aporte financeiro de cada um dos sócios. No entanto, as “prendas domésticas” – cuidado com a casa, com o marido e com os filhos – não dispunham de valor econômico. Como o varão era o provedor da família, detinha ele a titularidade do patrimônio. Conclusão: restava ele como proprietário exclusivo dos bens, o que provocava flagrante enriquecimento sem causa.
Por meio de emenda constitucional, caiu o princípio da indissolubilidade do casamento. A Lei do Divórcio, n. 6.015 (1977), transformou o desquite na “separação judicial”, havendo a necessidade da implementação de prazos para a sua concessão.
Onze anos depois, em 1988, com a promulgação da atual Constituição da República e acolhendo o que sinalizavam os tribunais, aconteceu a mais profunda mudança no âmbito das relações familiares, qual seja, a pluralização do conceito de família. Além do casamento, foram reconhecidas, como entidade familiar, as uniões extramatrimoniais entre um homem e uma mulher e o núcleo de convívio de um dos pais com os seus filhos, que passou a ser chamado de família monoparental.
Houve o reconhecimento da absoluta igualdade entre o homem e a mulher no exercício das funções parentais e foi proibido qualquer tratamento discriminatório entre os filhos, fossem eles frutos de uma união matrimonial, estável ou por adoção.
As mudanças, suas causas e efeitos
Alguns dos grandes marcos civilizatórios que mudaram a história do mundo foram a eclosão dos direitos humanos, o movimento feminista e a revolução sexual. Com direito ao voto, a mulher adquiriu acesso ao estudo e ao trabalho. Abandonou o papel de coadjuvante e o dever de obediência ao marido. Rompeu-se o tabu da virgindade, verdadeiro véu de pureza que a envolvia, como um atributo qualificador. O livre exercício da sexualidade deixou de desqualificá-la. E, de objetos de desejo, as mulheres tornaram-se sujeitas de direitos.
A liberdade de migrar de um relacionamento afetivo a outro, sem que esse agir configurasse pecado ou infração legal, tirou da marginalidade estruturas de convívio que sempre existiram, mas que não geravam responsabilidades, encargos e nem deveres. E a aceitação social dessa mobilidade forjou a construção de uma nova ética.
Assim, o evoluir da sociedade levou a uma verdadeira transformação da própria família. Da rigidez legal e do conservadorismo social passou-se ao pluralismo das entidades familiares. Com o alargamento de seu conceito, foram abrigadas estruturas não convencionais em que nem sequer o número ou o sexo dos partícipes são determinantes para seu reconhecimento.
Essa foi a grande contribuição do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que, ao isolar o afeto como elemento identificador das relações interpessoais, desatrelou o conceito de família da instituição do casamento. A consagração do princípio da afetividade levou ao reconhecimento de outras estruturas familiares como merecedoras da tutela jurídica.
Daí falar-se em Direito das Famílias de forma a albergar no conceito de entidade familiar todas as conformações que têm como elemento identificador o comprometimento ético decorrente do laço de afetividade.
Casar ou não casar?
A família sempre foi abençoada por todas as religiões que buscam perpetuá-la por meio do casamento. Considerada um sacramento, é invocada a interferência divina para garantir sua indissolubilidade: o que Deus uniu, o homem não separa!
O distanciamento entre Estado e igreja subtraiu do matrimônio sua auréola de sacralidade. Muitos fatores levaram ao esgarçamento do seu conceito, de maneira que se passou a falar em entidade familiar e não mais em família matrimonializada. O indivíduo tornou-se sujeito de direito, e a dignidade humana, o seu valor maior. Com todos esses ingredientes, a sociedade mudou de feição, produzindo eco nas estruturas de convívio.
Quando do advento da Lei do Divórcio, o desquite mudou de nome. Passou a chamar-se separação, mas o conceito continuou o mesmo. Os dois institutos rompiam, mas não dissolviam, o vínculo matrimonial. Ambos desobrigavam o cumprimento dos deveres do casamento, mas não era permitido novo casamento. Sabe-se lá qual o significado da mantença por tanto tempo dessa distinção, que, felizmente, acabou com a Emenda Constitucional n. 66/2010. Apesar de algumas referências no Código de Processo Civil de 2015, a separação está mesmo sepultada e enterrada.
A Constituição concede a mesma e igual proteção à família, independentemente de sua origem ou modo de constituição, via casamento ou união estável. A recomendação para que a lei facilite a conversão da união estável em casamento não hierarquiza os dois institutos. Não coloca o casamento como modelo. Ao contrário, visa a dar mais garantia à união estável.
Tanto o casamento como a união estável geram direitos, obrigações e iguais efeitos patrimoniais que precisam ser solvidos quando da sua extinção. Nada justifica posturas diferenciadas pelo fato de os integrantes da entidade familiar terem comparecido ao cartório civil ou não.
Ainda assim, de modo para lá de desarrazoado, principalmente em sede de direito sucessório, o Código Civil deferiu-lhes tratamento distinto. Considera o cônjuge herdeiro necessário, e o companheiro, não. Ao atribuir, a quem compartilhou a vida com o falecido, fração do acervo sucessório que cabe aos filhos ou aos pais, estabelece outra e desarrazoada diferenciação. Esse naco da herança – conhecido como direito de concorrência sucessória – tem diferente base de incidência e distintos percentuais.
A depender do regime de bens, o viúvo recebe parte dos bens particulares do falecido, quais sejam: os bens adquiridos antes do casamento por doação ou por herança. Já o companheiro sobrevivente recebe um quinhão dos bens que foram adquiridos durante a união. A repartição, no entanto, é feita entre todos os herdeiros, incluindo parentes até o quarto grau (tio-avô, sobrinho-neto ou até mesmo algum primo). Inclusive – e absurdamente – o companheiro sobrevivente recebe um terço dos bens comuns. Já os parentes, mesmo distantes, ficam com dois terços e mais todos os bens particulares do falecido.
Essa injustificável discrepância foi corrigida pelo Supremo Tribunal Federal em 2017 (RE 878.694, rel. min. Roberto Barroso, j. 10/05/2017). A decisão, que dispõe de eficácia vinculante, equiparou casamento e união estável em nome do princípio da igualdade.
Desse modo, quando morre um dos cônjuges ou um dos companheiros, descabido que a parte da herança que o sobrevivente irá receber a título de concorrência sucessória seja calculada de modo diverso, exclusivamente em razão da forma de constituição do vínculo de convívio.
De outro lado, o fato de o objeto da ação tratar de direito de concorrência sucessória não limita o reconhecimento da inconstitucionalidade de outras desequiparações legais. O companheiro sobrevivente tornou-se herdeiro necessário, recebendo a totalidade da herança se inexistentes descendentes e ascendentes. Os efeitos da decisão se alastram a qualquer diferença discriminatória, acaso existente, entre cônjuges e companheiros.
Qual a justificativa para esse tratamento discriminatório? Por que um “sim” provoca tantas diferenças? A alegação de que deve ser assegurada a liberdade de as pessoas escolherem a forma de como querem viver não convence.
Todos são livres para permanecerem sozinhos ou viverem com alguém. Porém, no momento que uma pessoa opta por ter alguém para chamar de seu, constitui uma entidade familiar e precisa assumir as responsabilidades decorrentes do dever de mútua assistência e solidariedade recíproca, independentemente da forma de sua constituição: casamento ou união estável.
Não há mais como reconhecer eventual hierarquização e nem fazer qualquer diferenciação entre casamento e união estável. Essa equalização nada mais significa do que a imposição de uma postura ética ao afeto.
Famílias além da moldura legal: uniões homoafetivas
O receio de comprometer o conceito de família, limitado à ideia da procriação e, por consequência, à heterossexualidade do casal, nunca permitiu que as uniões entre pessoas do mesmo sexo fossem aceitas. Por serem relacionamentos estéreis – ao menos até o surgimento das técnicas de reprodução assistida –, sempre foram rejeitados.
As pessoas LGBTI+ – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais e todas as identidades que fogem do padrão binário – ainda são consideradas, por uma parcela da população enfeitiçada por falsas crenças religiosas, uma abominação, uma aberração. Assim, acabam alvo de toda sorte de discriminação, a ponto de qualquer um sentir-se legitimado a tentar eliminá-las. Cumpre notar que o Brasil é o país que registra o maior número de agressões e homicídios contra quem se afasta do chamado padrão de comportamento convencional: um homem e uma mulher, casamento, filhos e o cumprimento do “débito conjugal” até a morte.
Ao trazer o conceito de entidade familiar, a Constituição da República limitou-se a reconhecer como base da sociedade e merecedores da especial proteção do Estado o casamento, a união estável entre um homem e uma mulher e a unidade familiar constituída por um dos genitores com sua prole.
A dificuldade de reconhecer que não é a possibilidade procriativa, mas sim a convivência afetiva que caracteriza a família, sempre impediu que a união de pessoas do mesmo sexo fosse albergada, no âmbito do Direito das Famílias, como uma união estável com acesso ao casamento.
Tudo isso, porém, não conseguiu fazer com que deixassem de existir as uniões homoafetivas – expressão que valoriza a presença do vínculo da afetividade como seu elemento constitutivo. Mas estas também precisaram percorrer o mesmo calvário que foi imposto às uniões extramatrimoniais.
Mesmo quando reconhecida a existência de um vínculo de convivência familiar, de forma pública, contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, a demanda judicial era distribuída às varas cíveis. Chamadas de sociedade de fato, a Justiça limitava-se a conferir-lhes sequelas de ordem patrimonial restritas ao âmbito do Direito das Obrigações. Somente quando um dos “sócios” conseguia provar sua efetiva participação na aquisição dos bens amealhados durante o período de sua vigência, era determinada a partição proporcional do patrimônio, operando-se verdadeira “divisão de lucros”.
Contudo, é indispensável admitir que os vínculos homoafetivos – muito mais do que relações homossexuais – configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito. Embora não reconhecidos pelo ordenamento jurídico, amoldam-se no conceito de entidade familiar, que tem por base o dever de mútua assistência. Por elementar princípio de igualdade, mister que aos pares do mesmo sexo sejam concedidos os mesmos direitos dos companheiros heterossexuais. O dever de mútua assistência entre os parceiros parte de uma perspectiva ética, que tem origem no dever de solidariedade.
A partir do momento em que o afeto foi reconhecido pelo Poder Judiciário como elemento identificador da família, as demandas envolvendo uniões homoafetivas migraram, finalmente, para as varas de família. E foram albergadas no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões com a garantia de iguais direitos.
Ao definir como família qualquer relação íntima de afeto, a Lei Maria da Penha, que visa a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliou o seu conceito. E também teve o mérito de ser o primeiro marco legal a fazer referência expressa às uniões de pessoas do mesmo sexo. Reconhece que as situações que configuram violência doméstica independem do sexo e da orientação sexual do par (Lei 11.340/2006, art. 2º e art. 5º, II e parágrafo único).
O preceito é de enorme repercussão. Ao assegurar proteção legal a fatos que ocorrem no seio de uma família, sem distinção da orientação sexual, as uniões homoafetivas são hoje reconhecidas como entidades familiares. Assim, tanto as uniões formadas por um homem e por uma mulher, como as formadas por duas mulheres ou por dois homens, configuram famílias.
De outro lado, ao afirmar que está sob seu abrigo a mulher, independentemente de sua orientação sexual, assegura proteção não somente a mulheres lésbicas, mas também a travestis e transexuais do gênero feminino. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência justificam a concessão de medidas protetivas.
Como existe o direito subjetivo à livre orientação sexual e à identidade de gênero, há o dever jurídico de que esse direito seja reconhecido, positivado e respeitado. Daí o desafio assumido pela Ordem dos Advogados do Brasil, ao elaborar, junto com os movimentos sociais, o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero. O projeto foi encaminhado ao Senado Federal por iniciativa popular, acompanhado por mais de 100 mil assinaturas (PLS n. 134/2018).
Famílias simultâneas
A determinação legal que impõe o dever de fidelidade no casamento e o dever de lealdade na união estável não consegue se sobrepor a uma realidade histórica, fruto de uma sociedade patriarcal e muito machista. Vínculos afetivos concomitantes nunca deixaram de existir.
Esse é um fato que ninguém duvida. Mesmo casados ou tendo uma companheira, homens partem em busca de novas emoções sem abrir mão dos vínculos familiares que já possuem. Ainda que tal conduta configure adultério – que nem mais crime é –, maridos assim agem. Tal ocorre, também, quando se trata de união estável.
O fato é que somente homens dispõem de habilidade para se desdobrarem entre dois ou mais relacionamentos concomitantes. Dividem-se entre mais de uma casa, mantêm duas mulheres e têm filhos com ambas.
Ainda que a postura indevida seja do homem, a carga de negatividade sempre recai na mulher. A “outra” era – e ainda é – alvo do repúdio social por manter um relacionamento que sempre recebeu denominações pejorativas: concubinato adulterino, impuro, impróprio, espúrio, de má-fé, concubinagem, etc.
Tais relacionamentos passaram a ser chamados de famílias simultâneas ou relacionamentos paralelos, quer se trate de um casamento ou de uma união estável, quer de duas ou até de mais uniões estáveis.
Fechar os olhos a essa realidade e não responsabilizar essa postura é ser conivente, é incentivar esse tipo de comportamento. O homem pode ter quantas mulheres quiser porque a Justiça não lhe impõe quaisquer ônus. Livrá-lo de responsabilidades é punir quem, durante anos, acreditou em quem lhe prometeu, um dia, amor exclusivo. A mulher fica à disposição do homem, dependendo de sua disponibilidade. E, ao ser abandonada, fora do mercado de trabalho, vê-se de repente sem condições de sobrevivência.
Ao bater à porta do Judiciário, a mulher não pode ouvir um solene: “Bem feito, quem mandou te meter com homem casado!”. É o que ocorre toda vez que se negam efeitos jurídicos a esses relacionamentos. No máximo, é reconhecida uma sociedade de fato se a mulher alegar que desconhecia a duplicidade de vidas do parceiro. Caso confesse que desconfiava ou sabia da traição, a nada faz jus. É punida pelo adultério que foi cometido por ele. Já a esposa saber do relacionamento extramatrimonial do marido não tem qualquer significado. O homem que foi infiel, desleal, às duas mulheres é “absolvido”. Permanece com a titularidade de seus bens e desonerado da obrigação de alimentos. Conclusão: manter duas entidades familiares concomitantes assegura privilégios ao homem, que conta com a conivência da Justiça ao lhe garantir total irresponsabilidade.
Essa é a solução largamente chancelada pela jurisprudência.
Não há como deixar de reconhecer a existência de união estável, sempre que o relacionamento atende aos requisitos de ostensividade, publicidade e notoriedade. Apenas o fato de o homem ter uma família não quer dizer que não constituiu outra. Dito elemento de natureza subjetivo resta escancarado quando são comprovados longos anos de convívio, com extensa prole.
Poliamor
O nome pode ser uma novidade, mas sua existência não.
A moderna expressão poliamor identifica a concomitância de vínculos afetivos entre mais de duas pessoas. Formam uma única entidade familiar, compartilhando ou não o mesmo lar, diferentemente das famílias simultâneas, em que seus integrantes constituem entidades familiares distintas, não residem sob o mesmo teto e, no mais das vezes, as mulheres não se conhecem.
No chamado amor plural, a vida é compartilhada entre todos. Não são formadas duas famílias, mas uma só.
É possível afirmar até que são relações mais honestas do que as uniões paralelas, em que existe verdadeiro jogo de dissimulações e mentiras.
Tentar engessar a família ao modelo do casamento é deixar ao desabrigo da juridicidade uma legião de famílias que constituem a sociedade dos dias de hoje.
Há que se reconhecer como transparente o desejo de formalizar por pública escritura a livre manifestação de vontade de todos, sobre os efeitos da relação mantida a três. Lealdade não lhes falta, ao preverem, de forma igualitária, direitos e deveres mútuos, aos moldes da união estável. Evidencia uma postura ética dos firmatários, e não há como deixar de reconhecer sua validade.
Claro que justificativas não faltam a quem quer negar efeitos jurídicos a tais uniões. A alegação é que afronta o princípio da monogamia e desrespeita o dever de fidelidade. O argumento é absolutamente inconcebível. Descabe qualquer juízo prévio e geral de reprovabilidade a quem formaliza uma união poliafetiva. Se a declaração dispõe de eficácia jurídica ou não, são os tribunais que vão dizer, se acionados forem.
Eventual rejeição de ordem moral ou religiosa à múltipla conjugalidade não pode gerar proveito indevido de um perante os demais partícipes da união. Negar a existência de tal entidade familiar é simplesmente condená-la à invisibilidade. Pelo jeito, nenhum de seus integrantes poderia receber alimentos, herdar, ter participação sobre os bens adquiridos em comum. Sequer seria possível invocar o direito societário com o reconhecimento de uma sociedade de fato, partilhando-se entre eles os bens adquiridos na sua constância.
A sociedade sempre tentou, sem sucesso, engessar a forma de as pessoas viverem e amarem. Essa resistência – historicamente e ainda hoje – é acompanhada pelo legislador, que tem enorme resistência em flexibilizar direitos relacionados às relações interpessoais no âmbito privado.
Cabe repetir. Negar reconhecimento a qualquer núcleo da ordem da afetividade é fonte de grandes injustiças. Subtrair obrigações e negar direitos gera sempre resultados perversos, chancelando irresponsabilidades que levam ao enriquecimento sem causa.
Qual o limite no futuro?
No século passado, o amor somente era aceito dentro do casamento, uma instituição indissolúvel. Isto é, o amor tinha de ser eterno. Esse sonho de infinitude acabou quando as pessoas descobriram que, primeiro, precisam amar a si próprias.
Da ideia sacralizada do matrimônio, passou-se ao pluralismo das entidades familiares. Ocorreu o alargamento de seu conceito, abrigando estruturas não convencionais, em que nem sequer o número ou o sexo dos partícipes são determinantes para seu reconhecimento.
Ninguém mais acredita que só se ama uma vez na vida. Há amores sucessivos e até sobrepostos. Estes ainda são malvistos, mas sempre existiram.
As mudanças foram muitas, e significativas. As causas foram várias, mas o resultado, um só: foi decretada a liberdade de amar!
Além do casamento, existem outros espaços em que o amor gera efeitos jurídicos. E a união estável é a prova. A continuidade e a ostensividade dos vínculos vivenciais constituem entidade familiar merecedora da tutela do Estado. É por isso que se afirma, com razão, que a Constituição emprestou efeitos jurídicos ao afeto.
A tríade casamento, sexo e filhos não mais serve para definir família. Não é por outro motivo que se passou a falar em Direito das Famílias, assim, no plural. Afinal, a família é mesmo plural. Há corações de todos os tamanhos, e a capacidade de amar é infinita.
As mudanças sociais demoram a ser incorporadas ao sistema legal, por conta do conservadorismo irresponsável do legislador, que tem medo de desagradar o seu eleitorado e perder a reeleição. Mas são desastrosas as tentativas legais que, singelamente, tentam inibir comportamentos ao negar direitos a quem foge da mesmice do igual.
Daí o papel significativo do Poder Judiciário, que precisa encontrar respostas a quem clama por justiça. Como ausência de lei não significa ausência de direitos, o compromisso dos juízes faz com que busquem soluções, muitas vezes à margem da lei, e, em outras tantas, até contra a lei.
Não há lei – nem dos homens, nem do deus de qualquer crença ou religião – que consiga impedir o ser humano de buscar a realização do sonho de ser feliz.
Se as relações se estabelecem da forma não legal ou não convencional, cabe ao juiz identificar a existência de um vínculo familiar para abrigá-las sob o manto da juridicidade. Essa é a única forma de se fazer justiça – enxergar a realidade e flagrar as situações merecedoras de tutela.
Até parece singelo ou piegas, mas é imperioso repetir o significado da vida e a finalidade do Estado. Se o cidadão busca a felicidade, cabe ao Estado garantir-lhe esse direito. Quando o legislador se omite, essa função é exercida pelo Poder Judiciário, sem que com isso se possa falar em afronta à divisão dos poderes ou ao ativismo judicial.
Na tentativa de banir o reconhecimento de vínculos familiares que desatendem aos segmentos mais conservadores da sociedade, a lei não pode ter postura repressiva ou punitiva.
Essas mudanças sempre têm início no meio social e são trazidas aos tribunais. Os juízes trabalham mais rente aos fatos. E aos que têm mais sensibilidade resta a missão pioneira de atentar a essas evoluções e julgar segundo a feição atual da sociedade. A consolidação de novos paradigmas deveria forçar sua inserção na lei e na própria Constituição.
As famílias mudaram e, com elas, também as necessidades e os desafios para protegê-las. São muito expressivas as vitórias obtidas nos tribunais, neste século, graças à coragem de especialistas de vanguarda, doutrina e jurisprudência, que têm permitido que mais direitos sejam garantidos a mais pessoas.
Ora, o dever maior do Estado é assegurar respeito à dignidade humana, dogma que se assenta nos princípios da liberdade e da igualdade. Essa é uma realidade contra a qual não adianta lutar. Simplesmente ignorar o que está diante dos olhos não faz nada desaparecer.
Em sede de Direito das Famílias, a função do legislador é estabelecer pautas de conduta como forma de garantir o convívio social. Condenar à invisibilidade é fonte de grandes injustiças, e os resultados são sempre perversos.
Cabe à lei estabelecer pautas de conduta como forma de garantir o convívio social. Na ausência de lei, o dever primordial do julgador é preencher os espaços que, ao agir das pessoas, fora das estruturas de convívio existentes, escapa ao referencial normativo.
A Justiça não pode ser cega, fazer de conta que não vê. É preciso impor os deveres inerentes à entidade familiar a quem assume um relacionamento afetivo, independentemente de manter uma união, independentemente da orientação sexual de seus integrantes ou com mais pessoas.
Talvez a última barreira que se precise romper seja o reconhecimento de que o amor é livre. Vínculos afetivos surgem entre pessoas de diferente ou do mesmo sexo. Entre duas ou mais pessoas.
Ao invés de rótulos, de presunções legais, da necessidade da chancela estatal, o indispensável é exigir um comportamento ético a todos os que se envolvem afetivamente.
Essa é a única limitação cabível quando se fala em afeto e em suas múltiplas facetas. Todos podem amar quem quiserem, mas precisam assumir os ônus decorrentes da confiança que foi gerada no outro. Talvez esse seja o único limite ao amor: a responsabilidade pelos seus afetos.
Publicado em 21/09/2021.
[1] Advogada
Vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM