Maria Berenice Dias[1]
Sumário: 1. O casamento; 2. A união estável; 3. A relação homossexual.
- O casamento
O Código Civil destina-se a regular a vida em sociedade por meio da edição de pautas de conduta. A lei anterior, que datava do ano de 1916, reconhecia uma única forma de constituição da família e outorga juridicidade somente ao relacionamento decorrente do casamento. Quase um século depois, o Código Civil atual, em vigor desde 2003, sujeita-se ainda à influência do cristianismo, que tem o casamento como um sacramento e com a finalidade única de perpetuação da espécie.
Ausente qualquer definição ou tentativa de conceituação do que seja família ou casamento, limita-se a lei a estabelecer requisitos para sua celebração, elencar direitos e deveres dos cônjuges e prever as seqüelas patrimoniais decorrentes da dissolução do vínculo conjugal.
Persiste a sacralização da família matrimonializada. Mesmo sendo possível o divórcio, tenta o legislador manter a indissolubilidade do vínculo matrimonial e resistem em sacralizar as novas uniões. A tentativa de manutenção da família fez a lei tornar indispensável a identificação do culpado pela separação, o qual não pode intentar a ação para dar fim ao casamento. A limitação do valor dos alimentos e a possibilidade de perda do nome, condicionada à vontade do cônjuge inocente são penalidades que atingem quem deixou de amar e quer sair do casamento.
- A união estável
Apesar do verdadeiro repúdio do legislador a quaisquer outros vínculos afetivos constituídos à margem do casamento, tanto que eram chamados de espúrios, uniões extramatrimonias sempre existiram. Quando do desfazimento dos vínculos extramatrimoniais, seus membros, mesmo sem qualquer respaldo legal, acabaram batendo às portas do Judiciário. Porém, tal era a rejeição à idéia de ver essas uniões como uma família, que buscou a jurisprudência identificá-las como se de prestação de serviços domésticos se tratasse. No máximo eram consideradas sociedades de fato. Ditos subterfúgios eram utilizados para justificar a partição patrimonial, evitando-se o enriquecimento injustificado de um dos companheiros. Nada mais se cogitava conceder, como alimentos ou direitos sucessórios.
Essa nova realidade tornou-se tão saliente, que foi consagrada pela Carta Magna de 1988, acabando por produzir uma profunda revolução na própria estrutura social. Alargou-se o conceito de família, que passou a albergar relacionamentos outros. A Constituição outorgou a proteção estatal tanto aos vínculos monoparentais – formados por um dos pais com seus filhos – como ao que chamou de união estável: relação de um homem e uma mulher, ainda que não sacralizada pelo matrimônio.
Assim, deixou de ser o casamento o marco a identificar a existência de uma família e o único sinalizador do estado civil das pessoas. De tal envergadura foi a alteração levada a efeito pelo preceito constitucional, que intimidou os juízes, que não conseguiram visualizar o dimensionamento da nova ordem jurídica. Nada foi alterado, não tendo havido qualquer avanço na concessão de direitos além dos que já vinham sendo deferidos.
Somente com o advento das leis que regularam o dispositivo constitucional – e isso em 1994 e 1996 – é que se começou a conceder alimentos, reconhecer o direito à herança, à habitação ou o direito de usufruto. Mas ainda há tanta resistência para enxergar essa nova realidade, que alguns tribunais não aceitam, apesar de expressa determinação legal, que as ações sejam julgadas nas varas especializadas de família.
Mas as famílias que se formam entre os partícipes advindos de relacionamentos anteriores não contam, até hoje, com um vocabulário adequado para identificar seus figurantes. Também não dispõe de uma terminologia própria a relação dos filhos das uniões anteriores com os figurantes dessas novas famílias. Por exemplo: não existe uma palavra para nominar os novos companheiros e sua prole frente aos filhos das uniões anteriores. As expressões madrasta e enteado são termos encharcados de preconceito. Essas dificuldades, no entanto, não foram suficientes para impedir que ditas uniões florescessem, vincadas muito mais pelo afeto, elemento cuja exteriorização e publicização são valorizadas para sua identificação.
- A relação homossexual
Buscando a Constituição Federal exercer o controle social, emprestou juridicidade apenas às relações heterossexuais. Tal tentativa limitante, no entanto, não logrou impedir a convivência entre pessoas do mesmo sexo, as quais, na ocorrência de conflitos, também passam a clamar a tutela judicial. Nem a ausência de leis nem a omissão do Judiciário podem ensejar a consagração de injustiças. Preconceitos de ordem moral ou ética não podem levar à omissão do Estado. Reconhecer como juridicamente impossíveis pretensões de caráter patrimonial é chancelar o enriquecimento sem causa de parentes, em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida a outrem, participando na formação do acervo de bens. Descabe julgar as opções de vida das partes. Há que se cingir o juiz em apreciar as questões que lhe são postas, devendo centrar-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo.
Ainda que, quase intuitivamente, se conceitue a família como uma relação interpessoal entre um homem e uma mulher tendo por base o afeto, necessário reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade de sexos, são calcados no amor. Dão origem a um novo estado civil, merecendo as ações respectivas ser apreciadas nas varas especializadas. Não há como não considerar família o relacionamento em que transparece o afeto como fato gerador de efeitos jurídicos. Nada diferem ditas uniões para que não possam ser identificadas como uma entidade familiar, a ensejar, enquanto inexistir um regramento legal, a aplicação analógica das regras jurídicas que regulam a união estável e o próprio casamento.
Publicado em 28/09/2005.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM