Maria Berenice Dias[1]
Homens nunca puderam brincar com bonecas. Nem entrar na cozinha. Aliás, a eles nunca foi permitido sequer chorar, levar desaforo para casa. Precisavam ser fortes e competitivos. Por isso seus brinquedos sempre foram bolas, armas, carrinhos. Também foram educados para serem os provedores da família. Por certo esta cultura nunca lhes permitiu adquirir habilidade para assumir o cuidado dos filhos ou a administração da casa. Estas tarefas eram atribuições exclusivas da mulher. Para isso elas foram educadas. Além de puras e recatadas tinham que aprender a serem donas de casa e mães. Até hoje seus brinquedos são bonecas, panelinhas e até ferrinho de passar. Tudo porque as convencerem que seriam a rainha do lar doce lar. Qualquer atividade fora de tais afazeres gerava enorme sentimento de culpa. Sentiam-se como se estivessem descumprindo responsabilidades que eram exclusivamente delas. No máximo podiam contar com o auxilio do marido, a depender da boa vontade deles, é claro!
Mas os tempos mudaram. E o que aconteceu quando as mulheres ingressaram no mercado de trabalho? Passaram a ocupar os bancos acadêmicos? Ascenderam profissionalmente, precisando muitas vezes viajar e permanecer algum tempo longe de sua casa? Sem outra saída – já que domésticas estão em extinção e avós preferem ir à academia – apelaram aos maridos, que foram convocados a participar mais da vida dos filhos. Em um primeiro momento eles sentiram-se explorados. Afinal, não tinham qualquer habilidade para toda aquela infinidade de tarefas que se viram obrigados a assumir. Mas, ao descobrirem as delícias da paternidade passaram a reivindicar um convívio maior com a prole.
Assim, quando da separação, não mais se conformavam em simplesmente pagar alimentos e visitar os filhos quinzenalmente. Aos conflitos inerentes a todo o fim do relacionamento somava-se a disputa pelos filhos, muitas vezes usados como ferramenta de vingança contra quem frustrou o sonho do amor eterno. O homem acabava absolutamente refém do poder materno, que só lhe permitia ter acesso aos filhos, quando ela deixava. E isso sem qualquer justificativa. Muitas vezes era ameaçado de não mais vê-los, caso não majorasse os alimentos ou não partilhasse os bens da forma que a mãe queria. Até o fato de constituir novo vínculo afetivo servia de motivo para impedir que os filhos convivessem com o pai e a “madrasta”.
O primeiro passo: a guarda compartilhada.
Como afirma Giselle Groeninga, o conceito de visita não cabe mais nas relações parentais e a responsabilidade transcende a fiscalização e o mero pagamento relativo à manutenção dos filhos.Visitas esquadrinhadas acabam gerando forte angústia, nos momentos que as antecedem e, também, ao longo destas, em razão das repetidas separações. Há sempre um estranhamento, rondando os encontros, o que dificulta o estabelecimento e a manutenção de vínculos que, só se fortalecem com o acompanhamento das rotinas dos envolvidos e do frequente contato físico que deve existir.[2]
Na busca de mais direitos e mais espaço de convívio os pais se uniram em um número significativo de associações e organizações não governamentais. Destes movimentos participam algumas mulheres – poucas é verdade – que, afastadas dos filhos sofrem iguais dificuldades.
O primeiro avanço ocorreu em 2008, com a instituição da guarda compartilhada.[3] Da atribuição da guarda a quem revelasse melhores condições para atendê-la, dispondo o não guardião do direito de visitar os filhos e fiscalizar sua manutenção e a educação, a mudança foi significativa. Ao menos, era para ter sido, pois deixou de ser priorizada a guarda individual, conferindo aos genitores a responsabilização conjunta e o exercício igualitário dos direitos e deveres concernentes à autoridade parental. O modelo de corresponsabilidade foi um avanço, ao retirar da guarda a ideia de posse e favorecer o desenvolvimento das crianças com menos traumas, pela continuidade da relação dos filhos com seus dois genitores.
A lei inclusive trouxe dispositivo de natureza processual ao impor ao juiz o dever informar aos pais sobre o significado da guarda compartilhada: mais prerrogativas a ambos, fazendo com que estejam presentes de forma mais intensa na vida dos filhos (CC, art. 1.584, § 1º). Ou seja, mesmo que tenham os pais concordado com a guarda unilateral, lhe foi imposto o dever de alertá-los sobre as vantagens do compartilhamento.
Além de definir o que é guarda unilateral e guarda compartilhada (CC 1.583, § 1º), a lei sinalizou preferência ao compartilhamento (CC 1.584, § 2º). Mas o uso da expressão: “sempre que possível”, deu margem a uma equivocada interpretação por parte da jurisprudência. Acabou ocorrendo o incremento do litígio e a tentativa de alienação parental para obtenção da guarda unilateral. Um efeito colateral indesejável, e mesmo um uso perverso daquela expressão.[4]
O fato é que, de forma quase unânime juízes passaram a não conceder a guarda compartilhada sempre que reinava clima de animosidade ou beligerância entre os genitores. Mesma depois de reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo dita possibilidade,[5] insistiam os juízes em negar o compartilhamento. Com isso, acabaram mais uma vez cedendo à vontade de quem não queria dividir a guarda. Bastava manter-se em conflito com o outro genitor.
O recurso a outros profissionais seria um caminho para tentar harmonizar as diferenças e mesmo apaziguar o litígio. Estas ferramentas, no dizer de Giselle Groeninga, são pouco utilizadas e estão distantes da realidade da maioria dos tribunais. Dificuldades que, no entanto, não justificariam a indevida simplificação.[6]
Alienação parental, um alerta.
Diante da pouca ou quase nenhuma eficácia da alteração legal levada a efeito, priorizando a guarda compartilhada, persistiu o movimento dos pais na busca do direito de conviverem com os filhos.
Passaram eles a denunciar uma prática antiga: a desqualificação do genitor identificado como tendo sido o culpado pela separação. O cônjuge que se sente traído ou abandonado desencadeia verdadeira campanha de desmoralização. Programam os filhos a odiar o outro genitor e, com isso, não mais desejarem conviver com ele. Ou seja, pais ressentidos transformam os filhos em objetos de vingança.
Foi importada a expressão SAP – Síndrome da Alienação Parental. Muitas foram as críticas que cercaram esta verdadeira revelação. No entanto, os juízes que passaram a utilizar equipes interdisciplinares para solver as demandas de guarda e visitação, começaram a questionar a veracidade das afirmativas levadas a efeito por um dos genitores com o só intuito de fazer cessar as relações de convívio com o outro.
Certamente o mais cruel dos instrumentos utilizados é a falsa acusação de abuso sexual. De forma desavisada, psicólogos ouviam somente a criança e um dos pais e forneciam laudo consignando a possibilidade de existir indícios de abuso. De posse de tal documento era fácil para o advogado obter na justiça a suspensão liminar das visitas. Afinal, os juízes sempre tiveram a preocupação de atentar ao melhor interesse da criança.
A situação se perpetuava enquanto manobras procrastinatórias eram usadas à abundância para retardar o andamento do processo. Conclusão: em face do tempo decorrido os peritos não tinham condições de afirmar se o abuso ocorreu ou se haviam sido implantadas falsas memórias, uma vez que a criança reproduzia o que insistentemente lhe tinha sido repetido como verdade. Ou seja, sofria todas as sequelas como se tivesse mesmo sido molestada sexualmente.
Diante deste quadro é que, no ano de 2010, foi editada a lei da alienação parental.[7] Apesar de ser praticada de forma recorrente entre os pais, fazendo uso dos filhos, tal ocorre também entre pessoas com diversos graus de parentesco. Daí a inserção dos avós e parentes outros feita pelo legislador. A doutrina vem alertando a ocorrência de alienação parental também com relação a idosos e outras pessoas vulneráveis.
Os resultados da nova lei foram imediatos. No entanto, toda e qualquer manifestação de cuidado começou a ser rotulada de alienação parental. E a alegação de sua prática passou a ser invocada como excludente de criminalidade por quem é processado criminalmente por abuso sexual. Mas diante da aceleração processual imposta, com mais certeza peritos conseguem identificar se ocorreu alienação parental ou se, de fato, a denúncia de abuso é verdadeira.
A lei define alienação parental (art. 2º): a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância, para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
De modo exemplificativo e bastante didático, são indicadas diversas formas de sua ocorrência (art. 2.º, parágrafo único): I – realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II – dificultar o exercício da autoridade parental; III – dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV – dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V – omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI – apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.
Havendo indícios de sua prática, possível a instauração de procedimento autônomo ou incidental, com tramitação prioritária (art. 4º), devendo o juiz adotar as medidas necessárias à preservação da integridade psicológica do filho (art. 5.º). Não só um dos pais ou algum parente que se sinta vítima da alienação parental pode intentar a ação. O juiz pode agir de ofício e o Ministério Público dispõe de legitimidade concorrente.
Na inicial da ação – ou quando o pedido ocorrer de forma incidental – pode ser requerida antecipação dos efeitos da tutela (CPC, arts. 273 e 461, § 3º). O foro competente é o domicílio dos pais (ECA, art. 147 e CPC, art. 98), tendo a matéria sido sumulada pelo STJ.[8] No entanto, é frequente a alteração de domicílio, não só para dificultar a convivência entre o pai e o filho como também para provocar o deslocamento da competência. Por isso a injustificada mudança de domicílio para local distante configura prática alienadora (art. 2º, VI) sendo admitida a fixação cautelar do domicílio, seja de ofício, seja a requerimento da parte interessada (art. 6º, VI), a fim de inibir o distanciamento entre pai e filho e, por conseguinte, o deslocamento da competência. Além disso, caracterizada a mudança abusiva de endereço, o juiz pode inverter a obrigação de levar ou retirar o filho da residência do genitor, por ocasião da alternância dos períodos de convivência familiar (art. 6º, parágrafo único).
Determinada a realização de perícia psicológica ou biopsicossocial, o laudo deve ser apresentado em 90 dias (art. 5.º, § 3.º). Caracterizada a prática de alienação parental ou conduta que dificulte a convivência paterno-filial, sem prejuízo da responsabilidade civil ou criminal do alienador, o juiz, além de declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador, pode adotar medidas outras, segundo a gravidade do caso (art. 6º): I – declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador; II – ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado; III – estipular multa ao alienador; IV – determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; V – determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; VI – determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; VII – declarar a suspensão da autoridade parental.
O fato é que, diante da possibilidade de se obter uma resposta judicial mais célere e efetiva, arrefeceu um pouco a postura de quem tenta manipular filhos para afastá-los do outro genitor.
No entanto, findo o processo e reconhecida a ocorrência das práticas alienadoras, como fazer cumprir a decisão judicial? Como resgatar o filho? Como restabelecer a convivência? Por todos estes motivos é que continuaram os pais se mobilizando.
Uma explicitação sobre a guarda compartilhada?
Apesar de todos chamarem a recente Lei 13.058, de 22/12/2014, como Lei da Guarda Compartilhada, o correto seria nominá-la de Lei da Igualdade Parental. Além de a convivência compartilhada já existir no ordenamento jurídico desde 2008, quando da alteração do Código Civil, está prevista, como prioritária, na própria Lei da Alienação Parental, por duas vezes (art. 6º, V): caracterizados atos que dificultem a convivência com um dos genitores o juiz pode determinar a alteração da guarda unilateral para compartilhada; (art. 7º): quando inviável a guarda compartilhada, é concedida a guarda ao genitor que viabiliza a efetiva convivência do filho com o outro. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura a guarda compartilhada na hipótese de a adoção ser concedida quando os candidatos já estejam separados (art. 42, § 5.º).
A lei altera quatro artigos do Código Civil. Mas são mantidas as definições de guarda unilateral e guarda compartilhada (CC, art. 1.583, § 1º): compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. O resto do artigo foi todo reescrito.
Certamente o dispositivo que mais tem despertado atenção – sendo foco de inúmeras controvérsias – é o que explicita o modo de compartilhamento (CC, art. 1.583, § 2º): o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.
Quem está privado de conviver com os filhos, comemora, proclamando que foi introduzida a guarda alternada, com a divisão igualitária do período de convivência. Já quem tem os filhos sob sua guarda, se desespera. Diz que a alternância vai desestabilizar os filhos, que deixarão de ter uma referência de moradia. Giselle Groeninga afirma existir uma confusão quanto ao significado da indigitada expressão “divisão equilibrada do tempo”. Diz ser importante que esta se dê sempre tendo em vista as condições e interesses que variam em cada fase do desenvolvimento dos filhos, como também de acordo com as possibilidades dos pais, levando-se em conta o exercício diferenciado das funções parentais. [9]
Como explica Angela Gimenez, a guarda alternada se configura em uma modalidade de guarda unilateral ou monoparental, caracterizada pelo desempenho exclusivo da guarda, segundo um período pré-determinado, que pode ser anual, semestral, mensal ou outros. E alerta: essa modalidade de guarda não se encontra disciplinada na legislação brasileira e nada tem a ver com a guarda compartilhada, que se caracteriza pela constituição de famílias multinucleares, nas quais os filhos desfrutam de dois lares, em harmonia, estimulando a manutenção de vínculos afetivos e de responsabilidades, primordiais à saúde biopsíquica das crianças e dos jovens.[10]
A mudança tem sido considerada também uma ingerência demasiada do Estado na vida íntima e particular, uma intromissão sem limites nas decisões da família, com prejuízos significativos para o bom desenvolvimento dos filhos, que receberiam orientações de dois lares diferentes muitas vezes com valores e princípios antagônicos. Além disso, não é levada em conta a vontade dos filhos de conviver ou não com um dos pais, de quererem ou não estar com um ou com outro.[11] Não se pode esquecer que o Estatuto da Infância e da Juventude, determina que, sempre que possível, a opinião do menor deve ser devidamente considerada, respeitado o seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão (arts. 2º; 15; 16, incs. I e II; 28, §§ 1º e 2º; e 83).[12]
De outro lado, lembra Giselle Groeninga que a imposição de um modelo de relacionamento familiar, tomada no sentido de igualdade de tempo com cada pai, colocaria em difícil posição aquele que declarar ao magistrado que não deseja a guarda (CC, art. 1.584, § 2º). O desejável é que panorama atual fosse mais de conscientização do que de imposição, do respeito à diversidade, de liberdade com responsabilidade e reforço do poder familiar.[13] Afinal, a custódia e a proteção precisa ser querida e desejada pelos genitores e não imposta pela lei ou pelo juiz.[14]
O significado mais saliente da lei é que o compartilhamento da guarda deixa de depender da convivência harmônica dos pais. As situações de litigiosidade não mais servem de fundamento para impedir a divisão equilibrada da guarda. Como alerta Angela Gimenez é usual a prática em que um dos litigantes insiste nos desentendimentos para a obtenção da guarda unilateral, praticando, inclusive, atos de alienação parental que acabam sendo legitimados por decisões judiciais que mantém o afastamento do filho de um de seus genitores, sob o pálido argumento de que, para se evitar o conflito, melhor é manter a criança afastada de parte de seus familiares.[15]
A guarda compartilhada pode ser fixada por consenso ou por determinação judicial (CC, art. 1.583, § 4º). Caso não estipulada na ação de divórcio ou dissolução da união estável, há a possibilidade de ser buscada em demanda autônoma. Também pode ser requerida por qualquer dos pais em ação própria (CC, art. 1.584, I). Mesmo que um dos genitores não aceite compartilhar a convivência, deve o juiz determiná-la de ofício ou a requerimento do Ministério Público. Ainda que tenham os pais definido a guarda unilateral, há a possibilidade de um deles, a qualquer momento, pleitear a alteração.
Ainda que ambos os pais discordem, o juiz pode impor o compartilhamento, contanto que tenha por comprovado sua viabilidade. Na demanda em que um dos genitores reivindica a guarda do filho, comprovado que ambos demonstram condições de tê-lo em sua companhia, deve determinar a guarda compartilhada, encaminhando os pais, se necessário, a acompanhamento psicológico ou psiquiátrico (ECA 129 III), para desempenharem a contento as funções parentais. Essa forma, com certeza, traz menos malefícios ao filho do que a regulamentação minuciosa das visitas, com a definição de dias e horários e a previsão de sanções para o caso de inadimplemento.
Na hipótese de a guarda ser determinada judicialmente é que cabe estabelecer atribuições e definir os períodos de convivência. Para isso recomendável que seja feita avaliação por equipe interdisciplinar (CC, art. 1.584, § 3º). Mesmo que o filho seja reconhecido em decorrência de ação investigatória de paternidade, cabe ser determinada a guarda compartilhada.
De forma equivocada é mantida a assertiva de que na guarda compartilhada há a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres concernentes ao poder familiar (CC, art. 1.583 § 1º). Do mesmo modo, é assegurada na guarda unilateral ao genitor não guardião a obrigação de supervisionar o interesse dos filhos, bem solicitar informações e prestação de contas (CC, art. 1.583, § 5º). Ora, em qualquer das modalidades de guarda, existem todas estas atribuições e encargos que não dizem com o regime de convivência, pois são inerentes ao poder familiar. Pelo jeito quis a lei enfatizar que a responsabilidade parental e o exercício de direitos e deveres concernentes ao poder familiar, não só não deveriam se restringir, como se encontravam indevidamente desequilibrados com o predomínio da guarda unilateral.[16]
Mesmo determinado o compartilhamento, como alerta Fernando Henrique Pinto, continua prevalecendo os superiores interesses dos incapazes quanto à atribuição da guarda: a) é mantida a possibilidade de se deferir a guarda a terceira pessoa – até diversa dos próprios pais – que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade (CC art. 1.584, § 5º); b) reafirma que compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar (CC, art. 1.634); c) prevê que a cidade considerada
base da moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos (CC, art. 1.583, § 3º); d) excepciona a regra da prévia oitiva da parte contrária, antes da concessão liminar de guarda, se a proteção aos interesses dos filhos exigir (CC, art. 1.585).[17]
Claro que sua concessão não retira do juiz a responsabilidade de preservar o melhor interesse de quem constitucionalmente desfruta da proteção integral. Ao contrário, só faz aumentar seus encargos. Mantendo-se o clima de beligerância, tem ele a faculdade de atribuir a guarda a terceiros, preferentemente algum parente, com quem os filhos mantenham relações de afinidade e afetividade.
A concessão da guarda compartilhada não subtrai a obrigação alimentar do genitor que tem melhor situação financeira, pois o filho merece desfrutar de condição de vida semelhante na residência de ambos. Afinal, diferenças muito significativas de padrão econômico, não pode servir de motivo para convencer o filho a residir com quem tem mais a lhe oferecer.
A afirmação de que o projeto privilegia os pais, eximindo-o do pagamento da prestação alimentícia ou, ao menos, proporcionando-lhe redução na contribuição em curso não passa de mera retórica daqueles que insistem em manter um sistema colocando em padrões antigos e descolado das necessidades e anseios sociais, pois, por si só, a guarda compartilhada não implica em alteração dos alimentos pagos. [18]
Sobre a quantificação dos alimentos, pouca alteração o regime convivencial poderá trazer, exceto em casos excepcionais, uma vez que grande parte dos gastos infanto-juvenis se voltam às despesas com escola, plano de saúde, material escolar, remédio, roupas e calçados que se manterão fixos, independentemente do período em que a criança permaneça com cada um de seus genitores.[19]
Dúvidas a compartilhar.
A nova lei deixa muitas dúvidas e interrogações, o que não a desmerece. Mas há a necessidade de um esforço doutrinário para alcançar subsídios às decisões judiciais.
Assim, lá vão alguns questionamentos.
Se o tempo de convívio deve ser dividido de forma equilibrada, o que significa base de moradia? (CC, art. 1.583, § 3º). É quando os pais residem em cidades diferentes? E se forem em bairros distantes, quando a escola, por exemplo, é longe da residência de um dos genitores, será estabelecida uma base de moradia?
O fato de os alimentos serem irrepetíveis, não subtrai a legitimidade de genitor de buscar a prestação de contas. Mas tal probabilidade existe somente na guarda unilateral? (CC, art. 1.583, § 5º). Como persiste o dever de pagar alimentos mesmo na guarda compartilhada, nada justifica não conceder a mesma prerrogativa ao alimentante.
E o que quer dizer informações e/ou prestações de contas subjetivas? (CC, art. 1.583, § 5º).
Como é exigido que o genitor declare ao magistrado que não deseja a guarda compartilhada (CC, art. 1.584, § 2º), é indispensável a designação de audiência para a homologação judicial da definição consensual da guarda unilateral?
Estabelecida a divisão equilibrada do tempo de convívio, que atribuições poderão ser estabelecidas pelo juiz a cada um dos pais? (CC, art. 1.584, § 3º)
Quais as prerrogativas que podem ser reduzidas pelo juiz ao detentor da guarda unilateral ou compartilhada em caso de descumprimento imotivado de quaisquer das suas modalidades? (CC, art. 1.584, § 4º)
A concessão da guarda à família extensa (CC, art. 1.584, § 5º), impõe a institucionalização da criança até ser identificada a pessoa que revele compatibilidade com a medida, convocando-se os parentes com quem a mesma mantém relações de afinidade e afetividade?
A imposição da multa diária a estabelecimentos públicos ou privados que negarem informações a um dos pais (CC, art. 1.584, § 6º) dependerá da propositura de ação judicial? Qual o rito do procedimento? Tal multa não se sujeita a qualquer espécie de atualização monetária?
Em sede de antecipação de tutela, em que é pedida da concessão da guarda unilateral, é possível o estabelecimento da guarda compartilhada mesmo antes da ouvida da outra parte? (CC, art. 1.585)
A indispensabilidade da anuência de ambos os pais para os filhos mudar de residência permanentemente (CC, art. 1.634, V) precisa ser formalizada? Caso não o seja, possível a alegação de ocorrência de alienação parental (LAP, art. 2º, parágrafo único, VII), sujeitando o genitor a ver fixada cautelarmente o domicílio do filho e com o risco de ocorrer a suspensão da autoridade parental? (LAP, art. 6º, VI e VII)
Como é exigida a representação ou assistência judicial e extrajudicial dos filhos por ambos os genitores (CC, art. 1.634, VII) é possível a nomeação de advogados distintos?
Entre perdas e ganhos.
Às claras que, apesar de algumas incongruências e muitas dúvidas, a lei traz um punhado de benefícios.
O seu maior mérito é consagrar o direito da criança. Por isso deve provocar verdadeira mudança de paradigma, ao reafirmar o modelo da guarda compartilhada, que é afastada somente nas hipóteses em que um dos genitores ou ambos não se mostrem aptos para o exercício do poder familiar ou, ainda, se um deles não desejar exercitá-lo.[20]
A guarda conjunta garante, de forma efetiva, a permanência da vinculação mais estrita de ambos os pais na formação e educação do filho, que a simples visitação não dá espaço. O compartilhar da guarda é o reflexo mais fiel do que se entende por poder familiar. A participação no processo de desenvolvimento integral dos filhos leva à pluralização das responsabilidades, estabelecendo verdadeira democratização de sentimentos.
A dissolução dos vínculos afetivos dos pais não pode levar à cisão nem quanto aos direitos nem quanto aos deveres com relação aos filhos. O rompimento da conjugalidade dos genitores não pode comprometer os vínculos de parentalidade, pois o exercício do poder familiar em nada é afetado. É necessário manter os laços de afetividade, minorando os efeitos que o divórcio ou a dissolução da união estável dos pais acarreta nos filhos.
Sob critérios democráticos e humanistas, em qualquer perspectiva que se analise, médica, psicológica, jurídica, sociológica, filosófica, dentre outras, a guarda compartilhada tem de ser reconhecida, como a forma mais eficaz para o alcance do pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes.[21]
Compartilhar a guarda de um filho é muito mais garantir que ele terá pais igualmente engajados no atendimento aos seus deveres inerentes ao poder familiar.
Publicado 26/06/2015.
[1] Advogada
Vice-presidenta Nacional do IBDFAM
[2] GIMENEZ, Angela. A guarda compartilhada e a igualdade parental. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/995/A+guarda+compartilhada+e+a+igualdade+parental>. Acesso em 30/12/14.
[3] A Lei 11.698 de 13/06/2008, deu nova redação aos arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil.
[4] GROENINGA, Giselle. Guarda Compartilhada e Relacionamento Familiar – Algumas Reflexões Necessárias. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/996/Guarda+Compartilhada+e+Relacionamento+Familiar+%E2%80%93+Algumas+Reflex%C3%B5es+Necess%C3%A1rias+>. Acesso em 30/12/14.
[5] Guarda compartilhada. Consenso. Necessidade. Alternância de residência do Menor. Possibilidade. 1. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que Caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos Pais. 2. A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do poder familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial. 3. Apesar de a separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do distanciamento do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação da guarda compartilhada como regra, mesmo na hipótese de ausência de consenso. 4. A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo do poder familiar que existe para a proteção da prole. 5. A imposição judicial das atribuições de cada um dos pais, e o período de convivência da criança sob guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal, letra morta. 6. A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta – sempre que possível – como sua efetiva expressão. 7. Recurso especial provido. (STJ, REsp 1.428.596, 3º T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 03/06/2014).
[6] GROENINGA, Giselle. Guarda Compartilhada e Relacionamento Familiar – Algumas Reflexões Necessárias. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/996/Guarda+Compartilhada+e+Relacionamento+Familiar+%E2%80%93+Algumas+Reflex%C3%B5es+Necess%C3%A1rias+>. Acesso em 30/12/14.
[7] Lei 12.318, de 26/08/2010.
[8] Súmula 383: A competência para processar e julgar as ações conexas de interesse de menor é, em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda.
[9] GROENINGA, Giselle. Guarda Compartilhada e Relacionamento Familiar – Algumas Reflexões Necessárias. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/996/Guarda+Compartilhada+e+Relacionamento+Familiar+%E2%80%93+Algumas+Reflex%C3%B5es+Necess%C3%A1rias+>. Acesso em 30/12/14.
[10] GIMENEZ, Angela. A guarda compartilhada e a igualdade parental. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/995/A+guarda+compartilhada+e+a+igualdade+parental>. Acesso em 30/12/14.
[11] AKEL, Ana Carolina Silveira. Guarda Compartilhada. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/998/Guarda+Compartilhada>. Acesso em 30/12/14.
[12] PINTO, Fernando Henrique. PLC nº 117/2013 – Guarda compartilhada – O que realmente muda. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/1000/PLC+n%C2%BA+117%2F2013+-+Guarda+compartilhada%E2%80%93+O+que+realmente+muda >. Acesso em 30/12/2014.
[13] GROENINGA, Giselle. Guarda Compartilhada e Relacionamento Familiar – Algumas Reflexões Necessárias. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/996/Guarda+Compartilhada+e+Relacionamento+Familiar+%E2%80%93+Algumas+Reflex%C3%B5es+Necess%C3%A1rias+>. Acesso em 30/12/14.
[14] AKEL, Ana Carolina Silveira. Guarda Compartilhada. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/998/Guarda+Compartilhada>. Acesso em 30/12/14.
[15] GIMENEZ, Angela. A guarda compartilhada e a igualdade parental. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/995/A+guarda+compartilhada+e+a+igualdade+parental>. Acesso em 30/12/14.
[16] GROENINGA, Giselle. Guarda Compartilhada e Relacionamento Familiar – Algumas Reflexões Necessárias. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/996/Guarda+Compartilhada+e+Relacionamento+Familiar+%E2%80%93+Algumas+Reflex%C3%B5es+Necess%C3%A1rias+>. Acesso em 30/12/14.
[17] PINTO, Fernando Henrique. PLC nº 117/2013 – Guarda compartilhada – O que realmente muda. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/1000/PLC+n%C2%BA+117%2F2013+-+Guarda+compartilhada%E2%80%93+O+que+realmente+muda >. Acesso em 30/12/2014.
[18] GIMENEZ, Angela. A guarda compartilhada e a igualdade parental. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/995/A+guarda+compartilhada+e+a+igualdade+parental>. Acesso em 30/12/14.
[19] GIMENEZ, Angela. A guarda compartilhada e a igualdade parental. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/995/A+guarda+compartilhada+e+a+igualdade+parental>. Acesso em 30/12/14.
[20] GIMENEZ, Angela. A guarda compartilhada e a igualdade parental. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/995/A+guarda+compartilhada+e+a+igualdade+parental>. Acesso em 30/12/14.
[21] GIMENEZ, Angela. A guarda compartilhada e a igualdade parental. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/995/A+guarda+compartilhada+e+a+igualdade+parental>. Acesso em 30/12/14.