Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Processo Civil

As ações de família no novo Código de Processo Civil

Maria Berenice Dias

Advogada

Vice Presidenta Nacional do IBDFAM

 

A reforma do sistema legal dos ritos processuais veio para resolver o mais sério problema da justiça deste país: sua morosidade. Daí a tentativa de modernização dos procedimentos e a determinação do uso de técnicas de solução consensual dos conflitos, como a conciliação e a mediação em todas as demandas (3º §§ 1º a 3ª e 334).

Especial atenção é dedicada às demandas de família, tendo se inspirado no projeto do Estatuto das Famílias, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, que visa excluir o livro do Direito de Família do Código Civil emprestando-lhe tratamento individualizado em formato de microssistema.[1]

 

Ações litigiosas

A inserção de um capítulo tratando das ações de família é uma das novidades (693 a 699).

Disciplina as demandas litigiosas de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação. Pelo jeito, demandas outras como de anulação de casamento, por exemplo, não se submetem ao mesmo procedimento. Ainda assim, não se pode reconhecer tratar-se de enumeração exaustiva.

Já as ações de alimentos e as que versarem sobre interesse de crianças ou adolescentes, foram relegadas à Lei de Alimentos (L 5.478/69) e ao Estatuto da Criança e do Adolescente (L 8.069/90).

Ditas exceções só trazem problemas. Com relação à ação de alimentos, perdeu o legislador a bela oportunidade de atualizá-la e agilizar o seu procedimento, que se encontra absolutamente fora do contexto atual e ainda gera inúmeras dificuldades interpretativas. Apesar de emprestar sobrevida à Lei de Alimentos, a execução do encargo alimentar está regulado na lei processual, revogando assim, parte de seus dispositivos. Melhor teria agido se sepultasse de vez uma lei editada no longínquo ano de 1969. Finalmente cabe lembrar que não há como decidir as questões da guarda sem estabelecer a obrigação alimentar.

O mesmo se diga quanto a remissão ao Estatuto da Criança e do Adolescente. As ações de guarda e visitação – expressões inclusive já em desuso, pois hoje se fala em direito de convivência – bem como as ações de filiação não têm como serem regidas por lei que diz com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade (ECA 98). Certamente inúmeros conflitos de competência vão ocorrer.

Chama a atenção a reinserção feita na Câmara dos Deputados do revogado instituto da separação, como derradeira – mas vã – tentativa de ressuscitar o que morto está: a ação de separação judicial.

A possibilidade do rompimento do casamento, com a mantença do vínculo conjugal, não mais existe. Diante da Emenda Constitucional 66/2010, que alterou o § 6º do art. 226[2] da Constituição Federal, a única forma de dissolução do casamento é o divórcio.

Sete dispositivos fazem referência à separação (23 III, 53 I, 189 II, 693, 731, 732 e 733), mas somente um deles fala em separação judicial (23 III). Todos os demais usam somente a expressão separação. Deste modo, para não rotular de inconstitucionais tais dispositivos o melhor é reconhecer que a referência diz com a separação de fato ou a separação de corpos, quando é decretada judicialmente. Não há outra leitura possível de tais dispositivos.

A mais marcante diferença das ações de família diz com a forma da citação (695 § 1º). Depois de apreciado eventual pedido de tutela antecipada, o juiz determina a citação do réu para comparecer à audiência de mediação e conciliação (710). O mandado deve conter somente os dados referentes à audiência, desacompanhado da cópia da petição inicial.

A medida é mais do que salutar, pois evita o acirramento de ânimos. A novidade é festejada pela doutrina que vê um clima menos litigioso, mais amigável, e, via de consequência, mais favorável e propenso ao acordo o fato de o réu não preparar e apresentar previamente sua contestação.[3]

A previsão se afasta da regra geral em que o mandado de citação deve ser acompanhado da cópia da inicial (248) e o comparecimento espontâneo do réu supre a necessidade de sua citação, passando a fluir o prazo de resposta (239 § 1º). Nas ações de família é facultado tanto ao réu como a seu procurador o direito de examinar a qualquer tempo seu conteúdo, sem que tal dê início ao prazo de contestação.

Caso inexitoso o acordo, recebe o réu, na audiência, a contrafé, passando a fluir desta data o prazo de contestação, quando o processo prossegue pelo rito ordinário (697).

Na tentativa de encontrar formas consensuais de solução dos conflitos, é prevista a realização de audiência preliminar de conciliação ou mediação em todos os processos de conhecimento (334). Esta determinação, no entanto, não se confunde com o mesmo ato a ser realizado nas ações de família. Nestas demandas o mediador ou conciliador deve estar acompanhado de profissional de outras áreas de conhecimento (694). Há outras peculiaridades. No processo de conhecimento o réu deve ser citado com 20 dias de antecedência (334), enquanto para a audiência de família, o prazo é de 15 dias (695 § 2º). Nestas demandas não é possível a qualquer das partes manifestar desinteresse em sua realização, como é facultado ao autor e ao réu nas demais ações (334 §§ 4º e 5º).

Do mesmo modo não há limitação de tempo para a suspensão do processo, como ocorre nas ações de conhecimento, cujo prazo para a conciliação ou mediação não pode exceder a dois meses (334 § 2º). Quando o objeto da demanda diz com relações familiares, além da divisão da audiência em tantas sessões quantas sejam necessárias na busca de uma solução consensual (696), possível a suspensão do processo, enquanto as partes se submetem a mediação extrajudicial ou atendimento multidisciplinar, sem limitação de prazo (694 parágrafo único).

Para os processos em geral, a citação é feita, preferencialmente, pelo correio (247), mas nas ações de família a citação precisa ser pessoal (247 I e 695 § 3º). A diferença de tratamento é para lá de injustificável. Com certeza o correio é mais ágil do que a diligência a ser realizada por oficial de justiça.

A intervenção do Ministério Público está limitada às causas em que há interesse público ou social e quando existir interesse de incapaz (178). A repetição da limitação no âmbito das ações de família evidencia que não há como alegar que exista eventual interesse público a justificar sua participação.

O último dispositivo é de todo desarrazoado.  Autoriza o juiz a colher o depoimento pessoal nas demandas que envolvem abuso ou alienação parental (699). Ao invés de vetar que a escuta seja feita pelo magistrado, expressamente autoriza tal prática, determinar que o mesmo esteja acompanhado por um especialista.

De há muito a tendência em muitos países é proibir qualquer pessoa – até mesmo o magistrado – de ouvir vítima, tarefa a ser desempenhada exclusividade por um técnico. O chamado Depoimento Sem Dano, hoje intitulado Depoimento Especial, criou um sistema de escuta que preserva a vítima e não subtrai o contraditório de seu depoimento.[4] Certamente teria andado melhor o legislador se tivesse imposto a adoção de tal prática.[5]

 

Ações consensuais

Entre os procedimentos de jurisdição voluntária estão previstas as ações consensuais de divórcio, separação, dissolução de união estável e alteração do regime de bens (731 a 734).

A normatização é das mais enxutas. Limita-se a exigir que a petição seja assinada por ambos os cônjuges ou companheiros, na qual deve constar a descrição dos bens e a deliberação sobre a partilha, a disposição sobre pensão alimentícia entre as partes e com relação aos filhos, bem como o acordo relativo à guarda e ao regime de visitas. A partilha não precisa ser definida, podendo ocorrer posteriormente, de forma amigável ou litigiosa, obedecendo o procedimento de partilha no processo de inventário (647 a 658).

Não há a determinação de que seja ouvido o casal e muito menos que ocorra audiência de ratificação, como previa a legislação pretérita, a evidenciar que a solenidade foi dispensada. A solução é bem-vinda diante da possibilidade de ser utilizada a via extrajudicial.

A falta de previsão do procedimento de conversão da separação em divórcio, não permite que seja buscada judicialmente. As partes somente poderão fazê-lo pela via extrajudicial. Em juízo somente podem requerer o divórcio, de forma amigável ou litigiosa.

A faculdade de ocorrer a dissolução do casamento por escritura pública não atentou aos apelos da doutrina, que sempre questionou a exigência do uso da via judicial pelo fato de existirem filhos incapazes. Estando solvidas as questões referentes à prole, nada justifica a necessidade da chancela judicial, até porque não mais é realizada audiência em juízo para a decretação do divórcio.

A via extrajudicial é facultativa, mas é proibida se houver nascituro ou filhos incapazes (733). Sem a necessidade de homologação judicial, é título hábil para todos os atos: registros e levantamento de importâncias depositadas em instituições financeiras (733 § 1º). Às claras que o rol não é exaustivo, valendo para todos os fins.

De forma injustificada é exigido o uso da via judicial para a alteração do regime de bens do casamento (734). Ora, se os cônjuges, antes do casamento, podem livremente eleger o regime de bens, via escritura pública, descabido que a sua alteração, durante o casamento, necessite de justificativa para obter a mudança. Há mais. Só se pode reconhecer como um cochilo do legislador determinar a intimação do Ministério Público quando do recebimento da inicial (734 § 1º). Além de as partes serem maiores e capazes, o objeto da demanda é exclusivamente de natureza patrimonial.

É necessária a publicação de edital e, somente após o decurso de 30 dias, o juiz profere a sentença, determinando sua averbação nos cartórios do Registro Civil e no de Imóveis. No caso de um dos cônjuges ser empresário, deve ocorrer a averbação também no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.

As precauções são exacerbadas, pois expressamente a alteração ressalva interesse de terceiros.

De outro lado cabe atentar que na união estável, a alteração do regime de bens pode ocorrer extrajudicialmente, a qualquer tempo, mediante simples alteração no contrato de convivência. Além disso, nada impede que os cônjuges se divorciem e casem novamente, elegendo o regime de bens que desejarem, sem a necessidade de se submeterem à ação judicial.

 

Publicado em 11/06/2015.

[1] O projeto original (PL 2.285/07) foi aprovado na Câmara dos Deputados e reapresentado no Senado (PLS 470/2013).

[2] CF, art. 226, § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

[3] Denise Damo Comel, A mitigação do processo civil no direito de família. Disponível no site: www. jus.com.br.

[4] O processo consiste em colocar a vítima em uma sala, de preferência em um espaço humanizado, com um psicólogo ou assistente social, o qual terá uma escuta. O depoimento é colhido por vídeo conferência.  Juiz, promotor e advogados acompanham o depoimento e formulam perguntas, que são transmitidas pelo técnico à vítima. Não existe melhor forma para evitar sua revitimização.

[5] Sua adoção esta prevista no PL 035/07  e na Recomendação 33/2010 do Conselho Nacional de Justiça.

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