Maria Berenice Dias
Diz o refrão do hino Riograndense:
Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra.
Esta louvação cabe é a esta bela iniciativa do STJ, que traz ao debate internacional tema da maior relevância para o mundo: a construção de uma cidadania plural.
Louvação que merece a justiça deste país que, de maneira corajosa e sensível, vem cumprindo sua missão de fazer justiça, sem se limitar a fazer mera aplicação da lei.
Até porque perversa é a irresponsabilidade do legislador, que descumpre sua função de albergar no sistema jurídico os segmentos sociais mais vulneráveis. Omissão que decorre pura e simplesmente do medo de comprometer sua reeleição. É isso. A bíblia como cabo eleitoral para agradar os segmentos mais conservadores. Retrocesso que só aumenta. Não só no Brasil, mas mundo afora, e que assusta.
Só que o vácuo legislativo não impede que a justiça reconheça que a falta da lei não significa ausência de direitos.
Aliás, é o que termina a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que data do ano de 1942. Diz em seu art. 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Ou seja, o juiz não pode se escusar de julgar. A ausência de norma jurídica não é causa de extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido. Devem ser aplicadas as normas que regem os institutos que guardam semelhança, ser invocados os princípios constitucionais, atentando-se ao momento em que vive a sociedade.
Cabe destacar o importante papel do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que há um quarto de século reconheceu a afetividade como princípio ético fundante das relações familiares.
Do mesmo modo é necessário reconhecer o mérito dos advogados que, para atender aos dramas que batem à porta de seu escritório, trazem para a justiça a vida como ela é. Criam teses, insistem, recorrem até encontrarem eco em magistrados mais sensíveis.
Foi assim que, invocando os princípios constitucionais o Supremo Tribunal Federal interpretou a Constituição, no ano de 2011, reconheceu as uniões de pessoas do mesmo sexo – as chamando de uniões homoafetivas – como entidade familiar.
Com isso, o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a assegurar o acesso ao casamento e, via de consequência, a todos os desdobramentos que dita condição autoriza: alimentos, adoção, reprodução assistida, herança, direitos previdenciários e tantos outros correlatos.
Mas o STF não parou por aí.
No ano de 2018, assegurou aos transgêneros o direito de obter a alteração do nome e da identidade sexual, por auto declaração, diretamente perante o registro civil, sem a necessidade de qualquer prova, exame ou cirurgia, como chegou a ser exigido.
E foi além.
Flagrou a omissão do legislador de coibir a intolerância e o preconceito contra a população LGBTQIA+. Frente a triste realidade de o Brasil, há anos, ser o país em que mais se mata a população trans; em que homossexuais são cotidianamente alvo de agressões, com requintes de crueldade, em 2020, acolheu o mandado de injunção. E, até a edição de lei especial, determinou a aplicação da lei do Racismo – que penaliza os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Todos crimes motivados por ódio.
No mesmo ano foi declarada inconstitucional a proibição de homens que faziam sexo com homens de doarem sangue.
No ano de 2021, assegurou às presas transexuais e travestis, com identidade de gênero feminino, o direito de optar por cumprir pena em estabelecimento prisional feminino. Se a opção for pela prisão em presídio masculino, devem ser mantidas em área reservada, como garantia de segurança.
Diante destes e de tantos outros avanços, ainda há quem fale em ativismo judicial, alegando que o Judiciário tem substituído o legislador.
Não, mil vezes não.
Enquanto todos estes e outros direitos não forem positivados em lei, continuará a ser esta função primordial da justiça, que não pode ser cega à realidade da vida.
Afinal, é necessário que todos tenham assegurado o direito à liberdade de viver, de se expressar de forma livre, sem ficarem reféns da intolerância, de agressões e discursos de ódio.
Data do artigo: 11/04/2024