Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Direito das Famílias

A SOCIEDADE ATUAL E A NECESSIDADE DE UM NOVO CÓDIGO CIVIL

Maria Berenice Dias[1]

 

Sumário: 1. Comissão de juristas instituída pelo Senado Federal – 2.Atividade da Comissão do Direito de Família – 3. Direito das Famílias – 4. Entidades familiares – 5. Dever de fidelidade e de lealdade – 6. Famílias parentais – 7. Famílias recompostas – 8. Casamento – 9. União estável: estado civil – 10. Regime de bens – 11. Comunicabilidade patrimonial – 12. Aval – 13. Separação de fato – 14. Divórcio unilateral – 15. Dissolução post mortem do casamento e da união estável – 16. Parentalidade – 17. Autoridade parental – 18. Dupla residência – 19. Guarda e visitas – 20. Convivência unilateral e compartilhada – 21. Convívio unilateral – 22. Descumprimento dos deveres parentais – 23. Dolo presumido – 24. Perda da autoridade parental – 25. Socioafetividade e multiparentalidade – 26. Adoção de maiores de idade – 27. Animais de estimação – 28. Reconhecimento da parentalidade – 29.  Reprodução assistida – 30. Alimentos às pessoas incapazes – 31.  Alimentos e economia do cuidado – 32. Alimentos gravídicos – 33. Alimentos compensatórios – 34. Alimentos transitórios – 35. Tutela – 36.  Tomada de decisão apoiada – 37. Curatela – 38. O que mais deveria ter entrado na reforma? – 39. Multiconjugalidades – 40. Obrigação alimentar entre parentes – 41. E o que deveria ficar fora do projeto de reforma? – 42. Cláusula de ruptura – 43. Usufruto dos bens dos filhos – 44. Curatela do nascituro – 45. Enfim…

 

 

  1. Comissão de juristas instituída pelo Senado Federal

No dia 4 de setembro de 2023, foi instalada pelo Senado Federal a Comissão de Juristas para a atualização do Código Civil, sob a Coordenação Geral do Ministro Luis Felipe Salomão, tendo como Relatores Rosa Nery e Flávio Tartuce.

Os integrantes foram divididos em grupos temáticos e eu tive o privilégio de integrar a Subcomissão responsável pelo Direito de Família, juntamente com o Min. Marco Buzzi e Rolf Madaleno, tendo como Relator Pablo Stoze. Certamente o Livro que mais necessita de atualização e, por isso, foram sugeridas profundas e significativas modificações.

Depois de seis meses de intenso trabalho, em 18 de dezembro, as sugestões de todas as subcomissões foram formalmente entregues, para o exame dos Relatores.

E, de 1º a 5 de abril, depois da votação do projeto pela assembleia geral, serão formalmente entregues ao Senado Federal.

E depois… só o tempo dirá o que vai ser aprovado ou não.

Mas que as mudanças são necessárias, são. E urgentes.

 

  1. Atividade da Comissão do Direito de Família

Em um primeiro momento, a comissão viu a necessidade de expurgar os institutos que nem mais integram o sistema jurídico, mas permanecem na lei como letra morta, como, por exemplo, a separação judicial.

Do mesmo modo, foram afastadas as desequiparações dos papéis parentais, com especial atenção à necessidade de se atentar às questões de gênero.

Como a responsabilidade ética do afeto foi erigida, a princípio, fundamental no âmbito das estruturas de convívio, em face da verdadeira revolução promovida pelo IBDFAM, no que diz com os vínculos de conjugalidade e parentalidade, houve a necessidade da inserção de novas realidades já consagradas pela jurisprudência e pela doutrina.

Socioafetividade, multiparentalidade, bem como a responsabilidade indenizatória pelo abandono afetivo e a apenação pelo descumprimento da obrigação de assegurar o compartilhamento dos encargos parentais, são alguns exemplos.

 

  1. Direito das Famílias

Como as palavras importam, o projeto sugere a alteração do nome do Livro para Direito das Famílias. Afinal, a própria Constituição da República esgarçou o conceito de família ao conceder especial proteção às entidades familiares, trazendo alguns exemplos em rol meramente exemplificativo. Elenco que foi dilatado por obra e graça da doutrina e da jurisprudência.

 

  1. Entidades familiares

Diante da terminologia constitucional que utilizou a expressão “entidade familiar”, ao reconhecer a família como base da sociedade e conferir-lhe especial proteção, assim devem ser denominadas as regras gerais que regem não só o casamento e a união estável, mas também as outras estruturas de convívio.

Como o STF proclamou a inconstitucionalidade da discriminação entre casamento e união estável, por ferir o princípio da igualdade, houve a equalização do tratamento de ambos, apesar de receberem regramentos próprios.

Ainda assim, aos integrantes das entidades familiares – todas elas – foram estabelecidos os deveres recíprocos de:

  • respeito, assistência e consideração mútuos;
  • cuidado, sustento, e educação dos filhos;
  • mesmo que separados, compartilhar, de forma igualitária o convívio e os encargos para com os filhos e os animais de companhia.

 

  1. Dever de fidelidade e de lealdade

Foi afastado o dever de fidelidade dos cônjuges e de lealdade dos conviventes,  invasão injustificada à esfera da autonomia de vontade dos parceiros. Até porque, com o fim do instituto da separação judicial foi afastada a perquirição da culpa para a exclusão de todo e qualquer direito. Daí o descabimento da imposição de deveres que dizem com a vida sexual do par.

 

  1. Famílias parentais

Ainda que reconhecidas constitucionalmente, as chamadas famílias monoparentais ou solo foram esquecidas pelo legislador civil.

No entanto, a esta estrutura de convívio, foi eleita a expressão famílias parentais, para identificar  as famílias constituídas pelo convívio de pessoas com vínculo de parentesco natural, socioafetivo, civil ou de outra origem.

Foram chamadas de famílias monoparentais as entidades familiares formadas por um ascendente e seus descendentes, qualquer que seja a natureza da filiação ou do parentesco que os une.

Às famílias parentais, foram atribuídos os mesmos direitos e deveres das demais entidades familiares, devendo-se atentar à perspectiva de gênero de quem desempenha os encargos parentais.

 

  1. Famílias recompostas

As entidades familiares formadas por pessoas egressas de outros relacionamentos, constituem vínculo de parentesco por afinidade entre o cônjuge ou o companheiro e os enteados.

Reconhecida a constituição de vínculo de filiação socioafetiva entre eles, é possível o registro da multiparentalidade, sem afastar ou limitar os encargos parentais do genitor.

 

  1. Casamento

A habilitação para o casamento foi desburocratizada, acabando com a necessidade de editais e proclamas.

Foi igualmente dispensada a figura do celebrante, atribuição delegada ao registrador civil ou à pessoa que os cônjuges elegerem, que inclusive pode ser uma autoridade religiosa, uma vez que foi mantida a possibilidade do registro civil do casamento religioso.

 

  1. União estável: estado civil

Como a união estável gera efeitos de natureza patrimonial, é indispensável que a condição familiar de quem vive em união estável seja publicizada, sob pena de gerar enorme insegurança jurídica a quem tem relações negociais com um deles.

Por isso, foi suprida a omissão do legislador de reconhecer que a união estável constitui o estado civil de conviventes.

 

  1. Regime de bens

Foi proposta a eliminação do regime da separação obrigatória, não só com referência aos maiores de 70 anos, mas em todas as outras hipóteses legais. Assim, o regime legal, é o da comunhão parcial, que pode ser afastado mediante pacto antenupcial ou contrato de convivência, acabando com embaralhada solução proposta pelo STF de manter o regime obrigatório, mas admitindo sua flexibilização a quem tem mais de 70 anos.

Ao depois, consagrado que é a separação de fato que delimita o fim da comunicabilidade patrimonial, não existe risco de embaralhamento de bens para fins de partilha ou inventário.

Outro natimorto que foi enterrado: o regime de participação final dos aquestos, novidade que nunca saiu do papel.

Remanescendo somente os regimes da comunhão parcial, comunhão universal e separação de bens, foi assegurada a eleição de qualquer um desses regimes diretamente perante o registro civil, quando da habilitação do casamento ou registro da união estável.

No entanto, persiste a exigência de escritura pública quando houver mescla de regimes ou a inserção de qualquer cláusula de natureza patrimonial ou existencial.

Por outro lado, a alteração do regime de bens tanto no casamento como na união estável passa a ser extrajudicial, sem a necessidade de participação do Ministério Público. Afinal, são deliberações de pessoas maiores de idade e capazes, dispondo sobre questões estritamente patrimoniais.

 

  1. Comunicabilidade patrimonial

Quando no casamento e na união estável, o regime de bens eleito admite a comunicabilidade dos aquestos, então, houve a preocupação de explicitar os bens que se comunicam e dos que não se comunicam.

Entram na comunhão:

  • o aumento de valor dos bens particulares em razão das benfeitorias realizadas;
  • os direitos patrimoniais sobre as quotas ou ações societárias adquiridas na constância a vida em comum;
  • a valorização das quotas ou ações societárias que decorreu do esforço comum do casal, ainda que sua aquisição tenha acontecido antes do início do relacionamento;
  • a valorização das quotas sociais ou ações societárias decorrente dos lucros reinvestidos na vigência da união, ainda que sua constituição tenha ocorrido antes do início da convivência.

São excluídos da comunhão:

  • os bens de uso pessoal, os livros e os instrumentos necessários para o exercício da profissão ou ofício, que não sejam de valor extraordinário;
  • as previdências privadas fechadas.

 

  1. Aval

Foi afastada a necessidade da concordância do cônjuge ou companheiro para a outorga de aval. Até porque sua aquiescência significa os transformar em avalistas.

E, caso o avalista tenha que honrar o aval concedido, a meação do cônjuge ou do companheiro fica preservada.

 

  1. Separação de fato

Mais um tema consagrado doutrinária e jurisprudencialmente foi reconhecido: é a separação de fato, que marca o fim da conjugalidade e da comunicação patrimonial.

Afasta-se, assim, a esdrúxula possibilidade de os efeitos do casamento persistirem após dois anos da morte de um dos cônjuges (CC, art. 1.830).

 

  1. Divórcio unilateral

Atendendo à tendência que se alastrou, foi regrado o divórcio liminar.

Quer a dissolução do casamento ocorra judicial ou extrajudicialmente, o divórcio deve ser decretado, a título de tutela antecipada. Somente o seu registro no assento de casamento depende da simples notificação do outro cônjuge, que não tem como se opor.

O divórcio pode ser levado a efeito extrajudicialmente, mesmo havendo nascituro, filhos menores de idade ou incapazes. Basta haver consenso quanto ao regime de convivência e o estabelecimento de alimentos a favor deles e, eventualmente, ao ex-cônjuge. Somente nestas hipóteses é necessária a participação do Ministério Público.

 

  1. Dissolução post mortem do casamento e da união estável

Depois de proposta a ação de divórcio ou de dissolução da união estável, a morte de uma das partes, não extingue o processo. Podem os herdeiros prosseguir com a ação, dispondo a sentença de eficácia retroativa à data da morte.

 

  1. Parentalidade

Outra atualização terminológica necessária: ao invés de paternidade ou maternidade cabe falar em parentalidade, até porque os vínculos parentais não são compostos necessariamente de um pai e uma mãe. Quer em face da filiação homoparental, quer pelo reconhecimento da multiparentalidade.

 

  1. Autoridade parental

Primeiro, chamava-se pátrio poder. A alteração para poder familiar também não agradou. Afinal, os pais não têm poder sobre os filhos. Eles têm é responsabilidades para com eles. Daí, a adoção do termo eleito pela doutrina: autoridade parental, até para individualizar as iguais responsabilidades dos pais para com sua prole.

 

  1. Dupla residência

O divórcio ou a dissolução da união estável dos pais não altera as relações com os filhos, bem como suas responsabilidades, o que impõe o compartilhamento do exercício da parentalidade.

Deste modo, é de todo descabida a eleição de um lar de residência, independente do tempo em que o filho permanece na companhia de um ou de outro genitor.

O filho tem dupla residência, como faculta a própria lei (CC, art. 71). Afinal, ele tem mesmo duas casas.

 

  1. Guarda e visitas

Estas abomináveis expressões foram banidas.

Nem os filhos são objetos que ficam sob a guarda de um ou do outro, como também o genitor não se limita a visitá-los.

Como o exercício da autoridade parental compete aos pais, é impositivo o compartilhamento da convivência e a responsabilidade igualitária dos deveres de cuidado, criação e educação.

É dever dos pais e direito dos filhos  terem suas necessidades atendidas por ambos.

Imposto o compartilhamento dos encargos parentais, não é estabelecido somente o tempo de convivência com um e com o outro.  Os encargos parentais têm que ser exercidos pelos genitores de forma igualitária.

 

  1. Convivência unilateral e compartilhada

Afastada a possibilidade de qualquer dos pais simplesmente abrir mão das suas responsabilidades parentais, não mais cabe, nem mesmo por consenso, atribuir a somente um deles a guarda unilateral. Afinal, ambos têm deveres para com os filhos, decorrentes da autoridade parental.

Assim, a convivência é sempre compartilhada, com divisão equilibrada não só do tempo de convívio, mas também dos encargos parentais.

A interferência na formação psicológica da criança, mediante a prática de atos que desqualifiquem o convívio entre pais e filhos e os respectivos parentes, impõe a determinação de acompanhamento psicossocial de quem assim age, de modo a garantir o exercício da convivência compartilhada.

Reconhecida a animosidade entre os pais, de modo a prejudicar a convivência harmônica dos filhos com ambos, o juiz determinará o acompanhamento psicológico dos genitores e do filho, indicando um mediador para estabelecer um planejamento para o exercício da parentalidade e o acompanhamento da sua execução.

 

  1. Convívio unilateral

O afastamento do convívio do filho com um dos genitores somente cabe ser imposto judicialmente, quando reconhecido que a convivência pode comprometer seu desenvolvimento saudável ou causar-lhe algum prejuízo.

Quando a proteção aos interesses do filho exigir o afastamento liminar de um dos genitores, é necessário que as partes sejam ouvidas e que esta providência seja recomendada por estudo psicossocial.

Atribuído o convívio unilateral, o juiz deve determinar periódica reavaliação social e psicológica, para ver da possibilidade do retorno ao compartilhamento.

Ainda assim, o afastamento de um dos pais não suspende o seu direito de conviver com o filho. A depender da gravidade da situação, os contatos podem ocorrer de forma assistida.

 

  1. Descumprimento dos deveres parentais

Imposto o compartilhamento dos encargos parentais, tal não significa exclusivamente a divisão equilibrada  do tempo de convivência. Implica no exercício de forma igualitária das obrigações parentais. É o que se chama de responsabilidade pelo cuidado.

Em face disso, o descumprimento imotivado do regime de convivência, a omissão de um dos pais em informar a alteração de residência, bem como a ausência de informações relevantes sobre o filho, autoriza a aplicação da pena de advertência.

A reiteração de tais comportamentos pode ensejar a imposição do convívio unilateral com o outro genitor, preservada, no entanto, a convivência assistida, até que seja comprovada a possibilidade de ser restabelecido o compartilhamento.

Se o juiz verificar que nenhum dos genitores tem condições de exercer os deveres parentais, concederá a guarda do filho a algum membro da família extensa com quem ele mantém relações de afinidade e afetividade.

Comprovado o descumprimento, presume-se a ocorrência de dano, que sequer precisa ser provado. Para a imposição de obrigação indenizatória por danos materiais e morais, basta a prova da omissão.

 

  1. Dolo presumido

O descumprimento por qualquer dos pais dos deveres inerentes à autoridade parental, bem como o de assegurar o exercício compartilhado dos encargos de convivência e cuidado, gera obrigação indenizatória por danos materiais e morais. Tratando-se de dolo presumido, descabe avaliar eventuais reflexos danosos no filho, bastando a prova da responsabilidade pelo inadimplemento do dever de convívio.

 

  1. Perda da autoridade parental

Foi afastada a possibilidade de os pais castigarem moderadamente os filhos. Algo inadmissível até para fins educacionais, como muitos justificam.

Agora a perda da autoridade parental se justifica quando o genitor:

  • não a exercer no melhor interesse do filho, em casos como assédio ou abuso sexual, violência doméstica ou abandono material, moral ou afetivo;
  • submeter o filho a qualquer tipo de violência, de modo a comprometer sua integridade física, moral ou psíquica;
  • deixar de cumprir o dever de convivência, sustento e educação;
  • impedir ou dificultar a convivência do filho com o outro genitor.

 

  1. Socioafetividade e multiparentalidade

O reconhecimento da parentalidade socioafetiva não exclui o vínculo de filiação natural.

Flagrada a concomitância de vínculos de natureza biológica e socioafetiva, acabou a jurisprudência por reconhecer a multiparentalidade, assegurando os mesmos e iguais direitos e obrigações independente da sua origem.

A concomitância da parentalidade não atribui somente iguais responsabilidades. Também é obstáculo à desconstituição desses vínculos quando reconhecida a presença da posse de estado de filho.

 

  1. Adoção de maiores de idade

Foi afastada do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a adoção de pessoas maiores de idade, que passa a acontecer extrajudicialmente. Caberá ao Oficial do Registro Civil certificar-se da intenção legítima para a adoção.

Indispensável a ciência dos pais registrais, mas não a concordância com a adoção.  

  

  1. Animais de estimação

Mesmo depois da separação dos tutores, foi estabelecido o dever de cuidado para com os animais de estimação, bem como a divisão das despesas de custeio, cujo inadimplemento não autoriza a prisão civil do devedor.

 

  1. Reconhecimento da parentalidade

Com a possibilidade de identificar o vínculo genético, com certeza absoluta – ou quase – via exame do DNA, a Lei 8.560/1992, que regula a investigação oficiosa da parentalidade, e que nunca alcançou a efetividade almejada, perdeu totalmente a razão de subsistir.

Pelos dados da ARPEN, entre os anos de 2016 e 2021, 16 milhões de crianças foram registradas somente com o nome da mãe. Cerca de 500 por dia.

Agora, indicando a mãe ao Oficial do Registro Civil, quem é o genitor, o expediente é encaminhado ao juiz, que a ouve novamente para só depois ser intimado o pai para, no prazo de 30 dias, promover o registro.

Mantendo-se ele inerte, cabe ao Ministério Público promover ação de investigação de paternidade, havendo a necessidade de nova citação do réu.  E, enquanto isso, o filho fica sem o direito à identidade paterna e sem alimentos.

Daí a necessidade de desjudicializar este procedimento.

Quando do registro, indicando a mãe quem é o pai, cabe ao oficial promover sua intimação para comparecer ao cartório, em dia e hora determinado, para promover o registro do filho ou para marcar a data do exame do DNA, sendo advertido de que, se não comparecer, o filho será registrado em seu nome.

Diante da omissão do genitor, é promovido o registro, devendo o expediente ser enviado à Defensoria Pública para promover a ação de alimentos e de regulamentação da convivência.

Somente na hipótese de não localização do pai o expediente será enviado ao Ministério Público, para promover a ação de investigação da paternidade, alimentos e convivência.

A qualquer tempo, o pai poderá buscar judicialmente a exclusão do seu nome do registro, mediante a prova da inexistência do vínculo biológico ou socioafetivo.

 

  1. Reprodução assistida

Finalmente, ingressa no âmbito da tutela legal a reprodução humana assistida, tão parcamente prevista no Código Civil, ao tratar da presunção de paternidade.

Todo o resto é regido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que vai além de sua atribuição precípua de regulamentar a atividade profissional dos médicos.

O registro de nascimento da criança nascida por reprodução assistida será feito em nome de quem o Oficial do Registro Civil reconhecer como autores do projeto parental, havendo a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade.

 

  1. Alimentos às pessoas incapazes

No projeto, foi estabelecida a solidariedade da obrigação alimentar nos casos de o alimentando ser incapaz.

Nesta hipótese, comprovado que o réu não dispõe de condições de suportar integralmente o encargo, o credor pode requerer, a qualquer tempo, a inclusão no polo passivo da ação de outros coobrigados.

 

  1. Alimentos e economia do cuidado

Houve toda uma preocupação em atentar às questões de gênero, quando do estabelecimento dos alimentos.

Deste modo, é assegurado a quem se dedicou prioritariamente aos cuidados para com os filhos e o domicílio da família, o direito a obter uma compensação, quando do término da entidade familiar.

 

  1. Alimentos gravídicos

Acabou sendo integrado ao Código Civil os alimentos gravídicos, para explicitar de forma mais clara o termo inicial da obrigação: a data da concepção. Independente de quando a ação for proposta.

De outro lado, foi facultado ao juiz que, ao estabelecer os alimentos gravídicos, que já fixe os alimentos destinados ao filho quando do seu nascimento.

 

  1. Alimentos compensatórios

Houve enorme preocupação em distinguir as modalidades que autorizam a concessão de alimentos compensatórios.

Cabe sua imposição quando a ruptura do relacionamento produz acentuado desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do padrão de vida de um dos cônjuges ou companheiros.

Recebeu o nome de alimentos compensatórios humanitários os concedidos a favor de quem se dedicou à família, colaborou com o trabalho do cônjuge ou companheiro e não percebeu bens cuja renda garanta o seu sustento.

Foram nominados de alimentos compensatórios patrimoniais a imposição de pagamento de parte da renda líquida dos bens comuns que se encontrem na posse exclusiva de um deles, enquanto não ocorrer a partilha.

 

  1. Alimentos transitórios

O dom do exercício da futurologia, que os juízes se ungiram, acabou consagrado no projeto. Têm eles o poder de estabelecer alimentos transitórios, quando preverem que o alimentando reúne aptidão a obter, por seu esforço, renda suficiente para a própria manutenção. Deste modo, aleatoriamente, é fixado um lapso temporal que é considerado como sendo o necessário e razoável para que a pessoa promova sua inserção, recolocação ou progressão no mercado de trabalho.

 

  1. Tutela

Foi admitida a possibilidade de os pais indicarem, ou o juiz nomear, um tutor existencial, alguém com quem o filho mantém vínculo de convivência e afetividade, e outro tutor patrimonial, para a administração de seus bens.

O exercício da tutela deixou de ser obrigatório, e a escusa pode ser imotivada.

 

  1. Tomada de decisão apoiada

A pessoa com deficiência pode escolher mais de uma pessoa para que lhe preste apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil.

O procedimento foi desjudicializado. O pedido deverá ser formulado perante o registro civil, sujeitando-se à apreciação do Ministério Público.

 

  1. Curatela

Preservada a capacidade do curatelado para prática de atos existenciais, é descabido exigir a presença do curador na habilitação para o casamento.

Sua intervenção é necessária tão somente para a escolha de regime de bens diverso do legal.

 

  1. O que mais deveria ter entrado na reforma?

Claro que o conservadorismo, que só cresce, acaba respingando também no legislador e em quem se propõe a legislar.

Assim, situações merecedoras de tutela não foram incorporadas, como foram mantidas previsões absolutamente descontextualizadas da realidade dos dias atuais.

  1. Multiconjugalidades

Está mais do que na hora de acabar com a hipocrisia.

Entidades familiares formadas por mais de duas pessoas, bem como a manutenção de famílias simultâneas, são realidades que existem e sempre existiram.

Como esta é uma façanha exclusivamente masculina, conta com a conivência da sociedade e é incentivada pela justiça, que ainda insiste em afirmar que não existem. Com isso, o homem é privilegiado e as mulheres punidas. Nada lhes é concedido, ainda que o relacionamento atenda a todos os requisitos de uma união estável.

A condenação à invisibilidade subtrai deveres e obrigações dos homens, o que vem em prejuízo não só das mulheres, mas, principalmente, dos filhos deste relacionamento. É que, ao se negar a divisão do patrimônio – ao menos sobre a meação do varão – os filhos não terão direitos sucessórios sobre o patrimônio que a mãe ajudou a amealhar, mas deixou de receber. Todos os bens vão para os irmãos unilaterais do relacionamento “oficial”, o que afronta a proibição constitucional de tratamento discriminatório entre filhos.

  1. Obrigação alimentar entre parentes

São inúmeras as referências legais de que a obrigação alimentar existe entre os parentes, sendo assim reconhecidos os vínculos até o quarto grau, o que inclui tios, sobrinhos, tios-avós, sobrinhos-netos e primos.

No entanto, a leitura equivocada do Código atual, que se limitou a estabelecer a igualdade da obrigação entre irmãos germanos e unilaterais, levou a Justiça a reconhecer que a obrigação alimentar alcança somente os irmãos.

Além de equivocada, a restrição é de toda injusta, uma vez que os direitos sucessórios beneficiam todos os parentes, não só os irmãos. Assim, quem não tem obrigação de prestar alimentos pode ser beneficiado com a herança de quem morreu, quiçá, por inanição.

Ainda assim o projeto sacramentou esta injustiça!

 

  1. E o que deveria ficar fora do projeto de reforma?

Há previsões que remanesceram no Código e lá não mais mereceriam permanecer.

E outras que foram previstas, sem que nada justifique a inclusão.

 

  1. Cláusula de ruptura

Como as relações afetivas ainda são tão assimétricas é de se chamar, no mínimo, de temerosa a possibilidade de estipulação de cláusulas de ruptura. Nada mais do que a renúncia prévia a direitos em pactos conjugais e convivenciais.

Com uma atenuante: quando do fim do relacionamento, a eficácia de tais estipulações ficaria ao livre arbítrio judicial. Até porque, não há nada mais difícil do que a demonstração da ocorrência de grave prejuízo a um dos cônjuges ou companheiros por afronta ao princípio da igualdade, depois de sabe-se lá quantos anos em que foi prevista a cláusula.

 

  1. Usufruto dos bens dos filhos

Indispensável acabar com a condição dos pais de usufrutuários do patrimônio dos filhos. A eles, cabe somente o dever de administrá-lo e não há qualquer motivo para poderem se apropriar dos frutos e rendimentos de bens que não lhe pertencem.

 

  1. Curatela do nascituro

Nada justifica a permanência da esdrúxula figura da curatela do nascituro.

Não há como reconhecer que a gestante não poderá exercer o poder familiar do filho que ainda não nasceu.

Mesmo na hipótese de ela se encontrar sob curatela, é descabido atribuir um curador a quem ainda se encontra no útero materno.

 

  1. Enfim…

A ideia foi amoldar a lei à realidade da vida atual, de modo a impor respeito à responsabilidade ética do afeto. Atribuir obrigações e assegurar direitos, sem descurar do princípio da autonomia da vontade, mas garantindo respeito à igualdade para que todos possam alcançar o tão sonhado direito à felicidade.

Estas foram as alterações possíveis, sem dúvida um avanço significativo, mas, certamente, aquém das expectativas de todos.

 

Data do artigo: 14/03/2024

 

[1] Advogada

Vice-Presidente do IBDFAM

Integrante da Comissão de juristas instituída pelo Senado Federal para elaborar proposta de atualização do Código Civil

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