Ainda que o direito à herança seja assegurado constitucionalmente (CR, art. 5º, XXX), não se trata de um direito absoluto. Há restrições ao seu recebimento tanto pelos herdeiros necessários quanto os legatários.
A necessidade de preservar a dignidade humana impõe deveres de lealdade e respeito entre os integrantes das relações familiares e afetivas. As punições não se cingem à esfera penal, tendo reflexos de ordem patrimonial. Ou seja, sucessores não podem ser beneficiados com bens de quem foi alvo de posturas ilícitas e injuriosas.
Ditas atitudes podem levar à exclusão do direito sucessório, quer via deserdação, quer declaração de indignidade.
As motivações para a declaração da indignidade são:
Código Civil, art. 1.814: São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
O rol que admite a deserdação é mais extenso:
Código Ciivl, art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:
I – ofensa física;
II – injúria grave;
III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;
IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
CC, art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes:
I – ofensa física;
II – injúria grave;
III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta;
IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.
Muito se discute em sede doutrinária se estes elencos são taxativos ou meramente exemplificativos. A jurisprudência vem flexibilizando as hipóteses legais, de modo a reconhecer que posturas outras, igualmente nefastas, podem, sim, autorizar a exclusão do herdeiro. Afinal, a maldade humana não tem limite que possa ser alvo de previsão.
Das causas comuns às duas modalidades de alijamento do direito hereditário, incorrer em crime contra a honra do titular da herança, de seu cônjuge ou companheiro (CC, arts. 1.418, II e 1.962), foi alvo de recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.
O dispositivo legal não pode ser mais claro. Basta que o beneficiário da herança tenha agido de modo a configurar crime contra a honra. “Incorrer” significa: ficar sujeito a, incidir, cair, cometer, causar. Ou seja, não é exigida a condenação pela prática dos crimes de calúnia (CP, art. 138), difamação (CP, art. 139) ou injúria (CP, art. 140), para ser afastado do direito hereditário.
No entanto, ao fazer uma interpretação finalística ou teleológica deste dispositivo legal, o STJ condicionou a declaração de indignidade, e consequente exclusão da sucessão, à prévia condenação do herdeiro no juízo criminal. Sob a justificativa de que, se o ofendido não pretendeu buscar a sanção penal em vida (ou, se pretendeu, não a obteve), não faz sentido que se apure o eventual ilícito, após a sua morte e apenas incidentalmente no juízo cível, com o propósito de excluir o suposto ofensor da sucessão.[1]
Ora, ainda que a justiça tenha legitimidade para promover a interpretação finalística e teleológica da lei, tal não autoriza afirmar que o legislador diz o que não está dito.
Não há qualquer exigência da prévia condenação do herdeiro ou do legatário para que a meeira, os demais herdeiros ou até terceiros interessados possam buscar a declaração da indignidade. Basta provar de que houve a prática de tais atos ofensivos.
Cabe figurar a hipótese de a ofensa ter sido dirigida contra o titular do patrimônio, quando ele já se encontrava descapacitado. Teria o curador legitimidade para representá-lo no desencadeamento da ação penal? E se as ofensas ocorreram no leito de morte do de cujus? Nessas circunstâncias nada que o herdeiro ou o legatário venha a fazer poderá ser punido com a perda da herança ou legado?
Talvez estes singelos exemplos sirvam para evidenciar que não é este o propósito da lei, que deve ser interpretada de modo a preservar a dignidade das pessoas e punir posturas que afrontem o compromisso ético de todos. Este imperativo se impõe, principalmente, com relação a quem têm estreitos laços familiares, a ponto de serem beneficiários de bens. E a quem goza da confiança e da amizade de alguém, a ponto de ter sido beneficiado por testamento.
Não há outra interpretação que se possa extrair do indigitado dispositivo legal.
[1] CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE INDIGNIDADE. QUESTÕES AUTÔNOMAS DECIDIDAS NO ACÓRDÃO. IMPUGNAÇÃO PARCIAL. POSSIBILIDADE. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 283/STF. INDIGNIDADE POR OFENSA À HONRA DO AUTOR DA HERANÇA. PRÉVIA CONDENAÇÃO NO JUÍZO CRIMINAL. IMPRESCINDIBILIDADE. EXPRESSA DISPOSIÇÃO LEGAL (ART. 1.814, II, 2ª FIGURA, DO CC/2002). CONTEXTO FAMILIAR EM QUE DESAVENÇAS E EVENTUAIS OFENSAS PODEM SER PROFERIDAS. NECESSIDADE, CONTUDO, DE QUE A OFENSA SEJA GRAVE A PONTO DE ESTIMULAR AÇÃO PENAL PRIVADA DO OFENDIDO E CONDENAÇÃO E DECISÃO CONDENATÓRIA PELO JUÍZO CRIMINAL. INTERPRETAÇÃO FINALÍSTICA OU TELEOLÓGICA INAPLICÁVEL NA HIPÓTESE. […] 2- O propósito recursal consiste em definir se, na ação de indignidade, a configuração de ofensa à honra do autor da herança (art. 1.814, II, 2ª figura, do CC/2002) necessariamente depende de prévia condenação no juízo criminal. […] 4- Para que seja declarada a indignidade com base no art. 1.814, II, 2ª figura, do CC/2002, é imprescindível, por expressa disposição legal, que o herdeiro ou legatário tenha sido condenado pela prática de crime contra a honra do autor da herança. 5- A imprescindibilidade da prévia condenação criminal também decorre do fato de que, nas relações familiares, é razoavelmente comum a existência de desavenças e de desentendimentos que, por vezes, infelizmente desbordam para palavras mais ríspidas, inadequadas e até mesmo ofensivas. 6- Em razão disso, para que haja a declaração de indignidade e consequente exclusão da sucessão, a ofensa à honra desferida pelo herdeiro deve ser tão grave a ponto de estimular o autor da herança a propor uma ação penal privada em face dele e gerar a prolação de decisão condenatória pelo juízo criminal reconhecendo que a presença de todos os elementos configuradores da infração penal. 7- A interpretação finalística ou teleológica das hipóteses de exclusão da sucessão listadas no art. 1.814 do CC/2002 é admissível, mas não obrigatória, razão pela qual, se o ofendido não pretendeu buscar a sanção penal em vida (ou, se pretendeu, não a obteve), não faz sentido que se apure o eventual ilícito, após a sua morte e apenas incidentalmente no juízo cível, com o propósito de excluir o suposto ofensor da sucessão. 8- Recurso especial conhecido e não-provido, com majoração de honorários. (STJ – REsp 2023098 DF 2022/0270996-3, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07/03/2023).
Publicado em 17/07/2023.