Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Casamento

Idade, casamento e patrimônio não combinam?

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Até o advento do atual Código Civil, ainda permaneciam no texto legal assertivas como essa: o homem é o chefe da sociedade conjugal, o homem é o cabeça-do-casal. Talvez o mais emblemático dispositivo que evidenciava a defasagem do antigo Código Civil em relação à sociedade dos dias atuais é o que considerava o desvirginamento da mulher desconhecido do marido como erro essencial de pessoa a autorizar a anulação do casamento.

Os filhos, de outro lado, sofriam discriminações pelo simples fato de não haver nascido em uma família constituída pelos sagrados laços do matrimônio. Recebiam odiosas adjetivações por não ser fruto de uma família legítima, sendo chamados de naturais, ilegítimos, espúrios e incestuosos.

Essas normas que relegavam tanto a mulher como os filhos a uma condição de inferioridade não se harmonizavam com a igualdade decantada pela Constituição chamada cidadã. Ingente foi a tarefa de garimpar as regras constantes do sistema jurídico infraconstitucional que não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional. A perspicácia dos doutrinadores em muito facilitou a atividade jurisdicional. Verificado o confronto, proclamava-se a primazia da regra maior, tornando letra morta os artigos dos códigos e leis que não se coadunavam com o novo arcabouço jurídico. Assim, a Constituição Federal tornou-se a mais significativa norma de Direito de Família.

Os exercícios hermenêuticos no sentido de amoldar o velho código à realidade social e constitucional nem sempre obtinham unanimidade, o que trazia sérios inconvenientes e gerava inseguranças e injustiças que afrontavam o princípio da igualdade, pois situações iguais recebiam tratamentos díspares. Esses fatores levaram à aceleração das atividades legiferantes, para pôr em vigência uma nova codificação que se adequasse à linguagem constitucional.

 

O Código Civil atual foi gestado mesmo antes da Lei do Divórcio e necessitou sofrer modificações profundas para adequar-se às diretrizes ditadas pela Lei Maior. Inúmeros remendos foram feitos, o que, no entanto, não deixou o texto com a atualidade e a clareza necessárias para reger a sociedade dos dias de hoje.

Talvez o grande ganho com a entrada em vigor do Código Civil tenha sido banir expressões e conceitos que causavam grande mal-estar e não mais podiam conviver com a nova estrutura jurídica e a nova conformação social. Conseguiu sepultar todos aqueles dispositivos que já eram letra morta, pois retratavam alguns ranços preconceituosos e discriminatórios.

Mas esse não foi o único mérito do codificador. Alguns avanços foram significativos. Corrigiu alguns equívocos e incorporou orientações pacificadas pela jurisprudência.

No entanto, perdeu a nova consolidação uma bela oportunidade de promover alguns avanços e infelizmente também cometeu inconstitucionalidades.

A Lei Maior, que se quer cidadã, democrática e igualitária, de modo expresso veda discriminação em razão da idade, bem como assegura especial proteção ao idoso. Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil.

Tais postulados, no entanto, não foram suficientemente enfáticos para excluir da nova codificação civil uma capitis diminutio contra a chamada terceira idade. Quem pretender casar após os 60 anos tem subtraída de forma aleatória e discriminatória a plenitude de sua capacidade para eleger o regime de bens que lhe aprouver. Absurdamente é imposto o regime da separação legal de bens, que gera a total incomunicabilidade patrimonial para o passado e para o futuro. Sequer é tornado obrigatório o regime da comunhão parcial, que é o vigorante quando os nubentes nada manifestam e não convencionam diferentemente por meio de pacto antenupcial.

A limitação, além de odiosa, é inconstitucional, pois, ao se falar no estado da pessoa, toda cautela é pouca. A plena capacidade é adquirida quando do implemento da maioridade e só pode ser afastada em situações extremas e por meio do processo judicial de interdição, que dispõe de rito especial (arts. 1.177 a 1.186 do CPC). É indispensável não só a realização de perícia, mas também é obrigatória audiência de interrogatório pelo magistrado. Raros processos são revestidos de tantos requisitos formais, sendo imperiosa a publicação da sentença na imprensa por três vezes. Tal rigorismo denota o extremo cuidado quando se trata da capacidade da pessoa.

Frente ao casamento, no entanto, tudo isso é olvidado. Quando alguém, após atingir a idade de 60 anos, quiser casar, ainda que não esteja impedido de fazê-lo, não pode dispor sobre as questões patrimoniais e escolher livremente o regime de bens. Não se pode deixar de concordar com João Baptista Villela, ao afirmar que a proibição, na verdade, é bem um reflexo da postura patrimonialista do Código e constitui mais um dos ultrajes gratuitos que a nossa cultura inflige à terceira idade.

Tão draconiana limitação já existia no Código Civil de 1916, só que estabelecia uma distinção de idade a depender do sexo dos nubentes. O inc. II do parágrafo único do art. 258 impunha o regime da separação de bens quando a noiva tinha mais de 50 anos ou o noivo houvesse ultrapassado os 60 anos de idade. Essa diferenciação de tratamento tinha origem na menos-valia emprestada à mulher, que só era valorizada por seus atributos físicos, beleza e sexualidade. Assim, uma mulher com mais de  50 anos não poderia ser alvo de um amor verdadeiro. Como o fator valorativo do homem sempre esteve ligado à virilidade, que perdura mais do que a beleza, somente quando sexagenário é que perdia a capacidade de despertar o interesse de alguém.

 

  1. A reação do STF

A situação de absoluta injustiça que a aplicação desse dispositivo legal ensejava levou o Supremo Tribunal Federal, já no ano de 1964, a editar a Súmula nº 377, que simplesmente alterou o regime de bens imposto pela lei. Ao ser autorizada a comunhão dos bens adquiridos durante o casamento, acabou a jurisprudência por transmudar o regime da separação total dos bens para o regime da comunhão parcial.

A jurisprudência maciçamente adotou essa posição. No julgamento do recurso especial em que a alegação era exatamente a divergência de interpretação desse artigo da lei federal, firmou o Superior Tribunal de Justiça orientação sobre a natureza do estado de comunhão reconhecido pela Súmula. O voto do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, trazendo as divergências existentes nas turmas do STJ, acabou por reconhecer a possibilidade da comunhão de aqüestos, afirmando que a interpretação exata da Súmula n° 377 é no sentido de que, no regime de separação legal, os aqüestos comunicam-se pelo simples fato de terem sido adquiridos na constância do casamento, não importando que hajam resultado ou não do esforço comum.

 

  1. O caminho traçado

Quer pela inconstitucionalidade da diferenciação etária consagrada na lei, quer pelo estágio de desenvolvimento da sociedade, sem deixar de se atentar também no alargamento do conceito de entidade familiar, o fato é que começou a se reconhecer que esse dispositivo não havia sido recepcionado pela ordem jurídica implantada pela Constituição Federal em 1988.

A doutrina e a jurisprudência, de forma majoritária, passaram a considerar encharcada de discriminação e preconceito a diferenciação legal, pois revela o conceito de uma distante época, onde o individualismo e a preocupação em proteger e preservar a família legítima justificavam a ingerência exercida pelo Estado sobre a vontade individual. A restrição à escolha do regime de bens foi reconhecida como clara afronta ao cânone constitucional de respeito à dignidade, além de desrespeitar os princípios da igualdade e da liberdade consagrados como direitos humanos fundamentais.

A decisão do hoje Ministro do STF Cezar Peluso, enquanto Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, transformou-se em um paradigma a merecer especial referência sempre que se enfrenta o tema. Impositivo que se reproduza toda a linha de argumentação sustentada no brilhante voto. Com firmeza, sustenta o Relator que o inc. II do art 258 do CC é de todo em todo incompatível com as representações dominantes da pessoa humana e com as conseqüentes exigências éticas de respeito à sua dignidade. Nomina de autêntica ficção jurídico-normativa, com base em critério arbitrário e indução falsa, considerar homens e mulheres absolutamente incapazes para definir relações patrimoniais do seu estado de família. Prossegue o voto afirmando que a ratio legis vem do receio político de nas relações amorosas já não estarem nem os homens nem as mulheres, em idades diferentes, aptos para discernir seus interesses materiais e resistir à cupidez inevitável do consorte. Traz a lição de Clóvis Bevilaqua, que afirmava que essas pessoas já passaram da idade em que o casamento se realiza por impulso afetivo, e o pensamento de Lafayette, que nominava a limitação legal de invento eficaz para neutralizar a influência desmoralizadora que a cobiça podia exercer no seio do casamento e ao mesmo tempo impedir que, obcecado pela força do amor, um dos cônjuges não se empobrecesse em benefício do outro.

Chama Peluso de anacrônica e caprichosa a regra que decreta como verdade legal perene a incapacidade absoluta de quem se achasse, em certa idade, na condição do cônjuge, por deficiência metal presumida juris et de jure contra a natureza dos fatos sociais e a inviolabilidade da pessoa. Mas o Relator vai além ao afirmar que a consciência jurídica contemporânea não pode tolerar a consagração nomóloga de um preconceito injurioso e rebarbativo, mal dissimulado sob a aparência de presunção legal absoluta, que, não correspondendo à verdade dos fatos originários nem comparando justificação autônoma, assume os contornos de ficção ilegítima, suscetível de invalidação jurídica. Ao afirmar que a evolução das condições materiais e espirituais da sociedade, repercutindo no grau de expectativa e qualidade de vida, garante que a idade madura não tende a corromper, mas a atualizar as virtudes da pessoa, as quais constituem o substrato sociológico na noção da capacidade jurídica, diz que afronta e amesquinha a realidade humana reduzir, com pretensão de valor irrefutável e aplicação geral, homens e mulheres à condição de adolescentes desvairados, ou de neuróticos obsessivos, que não sabem guiar-se senão pelos critérios irracionais das emoções primárias.

O magistrado não poupa adjetivos. Chama de absurda a tese fundada em critérios factuais aleatórios que perpetra discriminação não menos desarrazoada e injusta ao distinguir categorias de cônjuges. Diz ser irracional e injusto o alcance da norma, levando à mutilação da dignidade da pessoa humana por desconsiderar, de modo absoluto e sem apoio na observação da realidade humana, o poder de autodeterminação. Prossegue o acórdão afirmando que a regra vulnera ainda princípios constitucionais, até com gravidade maior. Sob outro ponto de vista o resultado prático é exorbitante, pois se ressente de nexo de proporção entre o objetivo legítimo de tutela dos casos particulares de debilidade senil para gerar a incapacitação de ampla classe das pessoas na mesma faixa etária. Sacrifica, em nome de interesses sociais limitados e subalternos, o direito fundamental do cônjuge de decidir quanto à sorte de seu patrimônio disponível, que, não ofendendo direito subjetivo alheio nem a função social da propriedade, é tema pertinente ao reduto inviolável de sua consciência. Impecável o raciocínio do julgador: não há norma nem princípio jurídico que impeça a alguém, em razão de idade avançada e de envolvimento afetivo, doar bens ao parceiro, antes ou durante o concubinato, e sequer no decurso de relacionamento efêmero que reúna todos os ingredientes de uma aventura amorosa. Tampouco estão os mais jovens imunes aos riscos patrimoniais da ilusão e da farsa. Não dá para deixar de concordar com a afirmativa de que é muito curta a razão normativa para invasão tamanha.

Cabe transcrever trecho que sintetiza as razões que justificam chamar o julgado como um leading case:

Por que é, pois, sob pretexto de vulnerabilidade psíquica, subentendida como doença peculiar da instituição matrimonial haveriam de ser tolhidos na mais nobre das manifestações humanas, que é o exercício da generosidade e da justiça, apenas os cônjuges – os quais não raro têm largas razões para compartilhar e repartir -, por conta de injunção normativa, esta, sim, decrépita, e cuja menor extravagância está em desestimular, por reação legítima em resguardo da autonomia ética e da liberdade jurídica, que relações não matrimoniais se convertam em casamento? E atentado considerável à estabilidade do ordenamento jurídico é já o descrédito notório, que, provocado pela inconveniência dessa conversão, capaz de satisfazer anseios genuínos e evitar incertezas danosas à ordem social levaria, ou vem levando, à ‘desuetudo’ dos casamentos tardios. Nessa moldura, percebe-se, logo, que o comando legal não encerra uma classificação normativa razoável e, como tal, viola a um só tempo as regras constitucionais do justo processo da lei (art. 5º, LIV, da Constituição Federal), tomado na acepção substantiva (substantive due process of law), e da igualdade (art. 5º, I), à medida que convergem ambas para, limitando a discricionariedade da produção normativa, manter o cidadão a salvo de leis arbitrárias e discriminatórias, a que, por definição, falta utilidade social e sobeja invasão das esferas das autonomias individuais.

 

  1. As soluções possíveis

A partir desse julgamento, a doutrina não titubeou em seguir o norte traçado. A Constituição Federal de 1988 não recepcionou o disposto no art. 258, parágrafo único, inc. II, do CC, que se encontra em descompasso com princípios constitucionais que tutelam a isonomia, a garantia do devido processo legal e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.

Afora essa alteração levada a efeito pela via judicial, expedientes outros passaram a ser utilizados para contornar a injustificável limitação à liberdade e o desrespeito à vontade dos nubentes. A partir da vigência da Lei do Divórcio, que, em seu art. 45, abriu exceção à incidência dessa restrição, a alegação de preexistência de um vínculo afetivo passou a ser utilizada como subterfúgio para afastar a imposição legal. A jurisprudência, a seu turno, flexibilizou o conteúdo desse dispositivo legal. Admite a eleição do regime de bens mesmo que não adimplido o prazo de 10 anos de vida em comum e ainda que a união não existisse antes da constitucionalização do divórcio.

Igualmente a Justiça passou a reconhecer a validade das doações feitas por um dos cônjuges ao outro, sob o fundamento de que o art. 312 do Código Civil de 1916 só vedava doações se realizadas por pacto antenupcial.

Luiz Edson Fachin questiona se, com a vinda da Constituição Federal de 1988, a idade seria a mesma para os dois sexos, tendo em vista o princípio da igualdade. A jurisprudência, igualmente invocando o mesmo princípio consagrado constitucionalmente, unificou a idade em sessenta anos.

Mas o que levou a jurisprudência a firmar posição alijando a eficácia da indigitada restrição foi o advento da Lei nº 9.278/96, que, em seu art. 5º, elegeu o regime da comunhão de bens à união estável, sem fazer qualquer ressalva sobre a idade dos companheiros quando do início do relacionamento.

A possibilidade de se conceder tratamento diferenciado ao casamento e à união estável, dando uma condição de maior liberdade a quem optasse pela vida em comum sem a celebração das núpcias, gerou grande desconforto e um amargo sentimento de injustiça. A solução se impôs com clareza solar. Quando um varão com mais de 60 anos ou uma mulher com idade superior a 50 anos resolvesse casar, o melhor era simplesmente viver em união estável. A impositiva incidência da restrição à capacidade do par e a impossibilidade de comunhão do patrimônio não deixavam margem a outra solução. Na união estável, havendo a presunção de mútua colaboração, que leva à formação de um estado condominial, é possível ao menos a partição do patrimônio amealhado.

 

  1. A perpetuação da discriminação

Surpreendentemente, o novo Código Civil esqueceu de afastar essa incongruência de seu bojo. Limitou-se no inc. II do art. 1.641 a repetir a mesma regra, mas equalizando a idade dos noivos. Ganharam as mulheres mais dez anos de capacidade de serem alvo de um afeto sincero, e o limite de idade da plena capacidade, para ambos os sexos, passou a ser de 60 anos. Essa equalização, no entanto, só atendeu à determinação constitucional de tratamento igualitário entre os sexos.

Nem a equiparação etária levada a efeito tem o condão de emprestar vitalidade ao dispositivo legal ou lhe devolver a constitucionalidade. A alteração levada a efeito quanto à idade não é suficiente para manter no panorama jurídico esse dispositivo legal. A regra restritória da liberdade, que, segundo Paulo Lins e Silva, tem origem medieval, trata os maiores de sessenta anos como se fossem verdadeiros moribundos, obrigando-os a uma forma de casamento, para dar proteção à expectativa sucessória dos eventuais descendentes dos nubentes.

Nem sequer o legislador teve o cuidado de incorporar a diretriz sumulada pelo STF, que reconheceu a comunicabilidade dos aqüestos. Persistiu a imposição do regime da separação total de bens, sem atentar em que tal intransigência pode ensejar severo desequilíbrio e dar margem a enriquecimento injustificável. O só fato de determinados bens constarem em nome de um ou de outro cônjuge não significa ausência da participação do outro na sua aquisição. Como por um componente cultural e razões históricas ainda o patrimônio é gerido e está na administração do varão, nitidamente a regra impõe injustificável prejuízo às mulheres, que, na maioria das vezes, são as grandes artífices da consolidação do patrimônio do casal. Não ser permitida a comunhão de aqüestos gera possibilidade de enriquecimento sem causa, com a qual não convive a justiça.

Mantêm-se os mesmos óbices, surpreendendo a mantença da discrepância pela ausência de igual restrição na união estável. Dito tratamento desigualitário deixa as uniões extramatrimoniais com maior liberdade de autodeterminação, até pela possibilidade de ser convencionada contratualmente toda e qualquer avença, sem nenhuma restrição. Assim, não há como contornar a afronta à Lei Maior, que não permite ser violada nem convive com o injustificável. E nada justifica limitar a capacidade de alguém, pois cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda.

 

  1. Outras limitações injustificáveis

Não só o inc. II do art. 1.641 do CC, mas todo o artigo 1.641, ao impor coactamente a incomunicabilidade total de bens, mais do que inconstitucional, consagra desarrazoada restrição à liberdade de amar.

O dispositivo tem clara conotação punitiva, pois atribui apenação a quem desobedece a mero capricho legal. Como não há justificativa para simplesmente impedir o casamento, “recomenda” a lei que o par não se case. A expressão “não devem casar”, constante do art. 1.523 do CC, que encabeça um rol de situações aleatoriamente pinçadas pelo legislador como causas suspensivas do casamento,  não dispõe de qualquer significado. Nada mais é do que mera tentativa de limitar o desejo dos nubentes mediante verdadeira ameaça. A forma encontrada para evidenciar a insatisfação frente à teimosia de quem insiste em realizar o sonho de casar, mesmo contra a vontade da lei, é impor sanções a quem desobedece o “conselho” legal. Como sempre acabam as penas tendo conotação patrimonial, nessa hipótese não poderia sr diferente: impõe a lei, de forma coacta, o regime da separação de bens.

Nitidamente a cautela do legislador visa a evitar a possibilidade de embaralhamento de patrimônios. Das várias previsões que visam a suspender a realização do casamento, cabe tomar como exemplo a  ausência de partilha dos bens de matrimônio anterior (inc. III do art. 1.523 do CC). Despicienda a imposição da incomunicabilidade total de patrimônios no novo casamento. Por construção jurisprudencial, a interrupção da vida em comum implica cessação do que se chama de mancomunhão, isto é, o estado de co-titularidade do patrimônio constituído durante o período de convívio. Os bens amealhados depois do término da convivência passam a ser de propriedade exclusiva de quem os adquire, não se comunicando com o cônjuge, independe do regime de bens que vigore e ou da falta de dissolução judicial do casamento.

A separação de fato passou a ter efeitos jurídicos, pondo fim à comunhão patrimonial. Observa Francisco Cahali que a separação de fato  põe termo ao regime de bens e aos deveres do casamento, dentre eles coabitação e fidelidade. E conclui: Em assim sendo, tornam-se os cônjuges separados de fato desimpedidos para constituírem nova família da união estável.

Em face da codificação da união estável, cabe um questionamento. Essa restrição à liberdade de escolher o regime de bens diz somente quando do fim de anterior casamento? Na hipótese de anterior união estável, em que a partilha de bens também é indispensável, se não foi levada a efeito, gera essa mesma penalidade? A resposta, ainda que paradoxal, é óbvia. Trata-se de norma restritiva de direitos e, como tal, só admite interpretação restritiva.  Como a imposição do regime de separação de bens é norma de exceção, dispõe de aplicação limitada, não havendo como impingir o regime da separação de bens mesmo se ainda que não procedida a divisão do patrimônio de anterior união estável.

De outro lado, o Código Civil dispensou a prévia partilha para a decretação do divórcio direto (art. 1.581 do CC), afastando a exigência constante da Lei do Divórcio (art. 31). Sequer quando da conversão da separação em divórcio é indispensável a partilha dos bens. Ditas posturas liberalizantes vieram a ratificar a posição já consolidada da jurisprudência. A partir da exigência de ordem meramente temporal feita pela Constituição Federal (§ 6º do art. 226) para a concessão do divórcio, passaram a ser dispensadas as exigências de cumprimento das obrigações assumidas na separação e a ultimação da partilha de bens para a conversão da separação em divórcio (art. 36 da Lei nº 6.515/77). Se por questões patrimoniais não há sequer impedimento para o divórcio, não cabe obstaculizar novo matrimônio invocando exatamente a mesma motivação, ou seja, ausência de partição de bens. Assim, como os bens amealhados depois da separação não mais se comunicam, de todo irrelevante a ultimação da partilha para se extremar com precisão a titularidade dos bens em face do novo casamento.

Igualmente é de todo descabido o mesmo apenamento de ordem patrimonial quando o nubente necessitar de suprimento judicial para casar (inc. III do art. 1.641 do CC).  No caso de um dos noivos ter idade inferior a 16 anos, precisa da autorização de ambos os pais (art. 1.517 do CC). Negando qualquer dos genitores o consentimento, possível é o suprimento judicial da ausência de autorização (art. 1.519 do CC). Essa é uma das hipóteses em que o casamento se celebra mediante autorização judicial. No entanto, como o juiz só supre o consentimento quando injustificável foi a negativa dos pais, acaba sendo punido o casal por uma resistência descabida dos genitores em concordar com as núpcias. Assim, injusta a imposição do regime da incomunicabilidade total dos bens, não havendo por que o Estado impor qualquer tipo de punição ao par quando a própria Justiça chancela a realização do casamento. Cabe aqui repristinar toda a linha de argumentação sustentada quanto à vedação que diz com o limite máximo de idade para o casamento.

 

  1. Mais idade e maior pena

O tratamento desigualitário quanto às limitações de livre adoção do regime de bens dispõe de mais uma incongruência perversa. Em todas as hipóteses em que há a obrigatoriedade do regime da separação total, a imposição pode ser contornada. Essa possibilidade, porém, só não existe quando a separação de bens decorre da idade dos nubentes, norma que transmite um sentido de discriminação, como bem assevera Paulo Lins e Silva, ao afirmar que é bastante desigual o tratamento concedido àqueles que, após uma vida de vitórias, gloriosa e exaustivamente conseguindo amealhar valores e patrimônios representativos, tenham de ser obrigados a se casar nesta fase madura da vida, pelo regime imposto pelo Estado.

Ora, se a seqüela legal de impor o regime da separação total de bens pode ser afastada, conforme faculta o parágrafo único do mesmo artigo 1.523 do CC, nada justifica que não se possa contornar a imposição coacta do regime de bens aos noivos sexagenários. Se o juiz pode liberar da penalização os noivos menores de 16 anos, a quem supriu a injustificável resistência dos pais, e também pode autorizar a livre escolha do regime quando ausente a partilha do casamento anterior ou quando não houve prestação de contas nos demais casos, impositiva a possibilidade de haver o mesmo “perdão” em se tratando de noivos com mais de 60 anos.

Mas essa não é a única motivação que põe por terra a sanção legal.

Ainda que aparentemente busque a regra preservar os interesses da família e garantir direitos sucessórios à prole, ela não admite exceções, não condicionando o interdito patrimonial à existência de filhos. Mesmo que essa fosse a intenção da lei, a tentativa de preservar a herança dos descendentes nitidamente esbarra na vedação do art. 426 do CC, que reproduz a mesma restrição do art. 1.916 do Código Civil revogado, o qual inadmite o pacto sucessório. Marcelo Truzzi Otero chama de imoral e, por conseguinte ilegal, o ‘pacta curvina’.

Outro fundamento não deixa margem a qualquer resposta: a escancarada afronta ao princípio da isonomia que a regra legal encerra. É que essas restrições não existem na união estável, como bem refere Euclides de Oliveira: Não cabem como óbices à união estável os impedimentos matrimoniais meramente proibitórios, previstos no atual ordenamento, a que o novo Código Civil chama de causas suspensivas, eis que meramente penalizadoras na esfera patrimonial dos contraentes, sem invalidar o ato matrimonial.

Assim, injustificável, diferenciado e desigualitário o tratamento dispensado ao casamento com relação à união estável. As limitações impostas à vontade dos noivos torna mais vantajosa a união informal. Diante da vedação à livre eleição do regime de bens, a solução mais lógica é simplesmente abandonar a idéia de sacramentar a união pelo casamento. Mas, como persiste o desejo de constituição de família, para afastar as restrições legais, o jeito é viver em união estável, pois não vigoram quaisquer impedimentos. Pelos precisos termos do art. 1.725 do CC, na união estável o regime é o da comunhão parcial, e não há maneira mais fácil de adotar o regime que melhor atende à realidade da vida e à vontade do par, afastando a intervenção estatal, do que escolher essa modalidade de convívio.

Nem cabe argumentar que o reconhecimento dessa espécie de entidade familiar depende da via judicial, até porque é possível produzir provas insofismáveis da relação para o juiz reconhecer sua existência. Basta, por exemplo, a celebração do casamento religioso ou o estabelecimento da vida em comum com as características legais para comprovar a existência da união estável. Igualmente é possível o uso do procedimento voluntário da justificação judicial (art. 861 do CPC), recurso que está sendo cada vez mais utilizado até para o reconhecimento das uniões homoafetivas. Como se trata de ação em que não há lide, provado o fato que se quer reconhecer, nada mais resta ao juiz do que certificar sua existência. Outros subterfúgios são utilizados em larga escala, como a lavratura de escritura publica constitutiva da união estável, em que podem livremente ser feitas estipulações de aspectos patrimoniais sem qualquer afronta à normatização jurídica.

As doações entre os cônjuges também são mecanismo hábil para a livre comunicação de bens. Sob o fundamento de serem vedadas somente doações por meio de pacto antenupcial, tais atos de liberalidade vêm sendo respeitados pela jurisprudência, ainda quando teve vigência o regime da separação legal de bens.

 

  1. Enfim…

Não adianta fazer críticas e não apontar caminhos.

A conclusão que se afigura óbvia não é somente a necessidade de ser revogado o inc. II do art. 1.641 do CC, mas todo o art. 1.641, que se reveste de inconstitucionalidade gritante.

Não se trata somente de injustificável restrição que infringe o princípio constitucional da liberdade. Igualmente há desrespeito ao princípio da igualdade ao se conceder tratamento desigualitário entre o casamento e a união estável. Persistir tal dispositivo no panorama legal codificado atinge direito cravado na porta de entrada da Carta Política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade da pessoa humana.

Mister atentar no aconselhamento de Paulo Lins e Silva, para que num futuro breve e próximo sejam revistos tais critérios legislativos, pois afastam o direito natural de afeto, carinho e elevada sensibilidade que o ser humano contém no seu interior, muitas vezes quando rebrota nessa terceira idade, o amor para ser vivido na fase mais experiente da vida. Tornam-se semi-incapazes, dependentes de normas arcaicas, discriminatórias e protetivas daqueles que nada fizeram para a construção numa vida, de um patrimônio simples ou representativo, cerceando um livre direito de se exercer sem condições a realização formal e completa de um matrimônio digno e volitivo.

Assim, impositivo é que, entre os projetos de reforma que já se avolumam, conste mais um: a revogação do art. 1.641 do CC.

Enquanto a reforma não vem, imperioso que a jurisprudência, como sempre e mais uma vez, desempenhe seu papel de não só fazer cumprir a lei, mas, antes e acima de tudo, velar pela efetividade da Constituição Federal.

A Justiça não é cega nem surda. Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam. Mister que os juízes deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, e não punidos.

Por isso, devem os juízes deixar cair como letra morta dispositivo legal que não tem vida, por não estar ao abrigo do manto da juridicidade.

 

 

Publicado em 08/09/2008.

[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões

Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

www.mariaberenice.com.br

 

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