Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Filiação e Parentalidade, Guarda compartilhada, Novo Código Civil

“GUARDA” NO ECA E NO CÓDIGO CIVIL

Maria Berenice Dias

 

Advogada.

Vice-Presidente Nacional do IBDFAM.

Sócia fundadora da As CivilistaS.

 

 

Primeiro, é necessário eliminar, de vez, o uso da expressão “guarda” quando se fala em regime de convivência entre pais e filhos.

Não mais cabe utilizar as expressões guarda unilateral e guarda compartilhada.

Guarda vem do verbo guardar, que significa: acondicionar, acomodar, arrumar, armazenar. Ou seja, diz com objetos que se têm sob sua posse. Coisas que se guardam em algum lugar. Ora, pessoas não são objeto de guarda, muito menos crianças e adolescentes. Assim, melhor usar a expressão custódia: ato ou efeito de proteger.

Desse modo, em vez de guarda unilateral, corresponde mais à essência desta figura utilizar a expressão custódia unilateral.

E, na hipótese de compartilhamento, necessário usar convivência compartilhada. Já que guarda significa guardar, não há como haver guarda compartilhada entre os pais.   A não ser que se utilizasse a espada de Salomão para dividir o filho ao meio.

Como não cansa de repetir Rodrigo da Cunha Pereira, palavras têm força e poder. Destarte, ao se referir a crianças e adolescentes é descabido continuar utilizando expressões que afrontam as garantias constitucionais que lhes são conferidas, com prioridade absoluta, pela Constituição da República.

 

1 Guarda no Estatuto da Criança e do Adolescente

 

O ECA faz, mais de 30 vezes, referência ao instituto da guarda.

Confere aos pais o dever de sustento e guarda dos filhos menores (ECA, art. 22), prevendo a possibilidade de eles perderem a guarda dos filhos (ECA, art. 129, VIII).

No Título II, o Capítulo III traz o “Direito à Convivência Familiar e Comunitária”, a Seção III é dedicada à “Família Substituta”, a Subseção II regula a “Guarda” (ECA, arts. 33 a 35).

Apesar de afirmar que a guarda se destina a regularizar a posse de fato, a ser deferida nos procedimentos de tutela e adoção (ECA, art. 33, § 1º), é feita uma distinção: somente a posse legal (ECA, art. 46, § 1º) autoriza a dispensa do estágio de convivência para fins de adoção. A guarda de fato, não (ECA, art. 46, § 2º). Também a guarda legal por mais de três anos abre exceção à necessidade de obediência ao cadastro à adoção (art. 50, § 13, III).

Sem estabelecer qualquer distinção sobre a natureza da guarda, é assegurado ao “guardado” a condição de dependência, até para fins previdenciários (ECA, art. 33, § 3º), sendo concedido ao guardião direito de representação na falta eventual dos pais (ECA, art. 33, § 2º). A guarda, quando não se destina à adoção, não impede o exercício do direito de visitas pelos pais, assim como não suspende o dever de prestar alimentos (ECA, art. 33, § 4º).

Quando ocorre a entrega voluntária à adoção, é concedida a guarda provisória à família substituta mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança (ECA, arts. 19-A, § 4º e 28).

Na hipótese de os pais terem sido destituídos ou suspensos do poder familiar, forem falecidos, ou terem aderido expressamente ao pedido, é possível a colocação de crianças e adolescentes em família substituta, mediante simples comunicação extrajudicial levada a efeito pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado (ECA, art. 166). Como se trata de procedimento extrajudicial, não há como ser decretada a perda ou a modificação da guarda nos mesmos autos do procedimento (ECA, art. 166, caput). Até porque tal determinação dependeria de decisão judicial.

No programa de acolhimento familiar de crianças e adolescentes, é conferida a guarda aos parentes ou a terceiros interessados (ECA, art. 101, § 3º). O estímulo ao acolhimento acontece por meio de incentivos fiscais e subsídios, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente afastado do convívio familiar (ECA, art. 34).

A guarda pode ser revogada a qualquer tempo (ECA, art. 35).

Contudo, quando da suspensão do poder familiar, o ECA determina que os filhos sejam confiados a pessoa idônea, mediante termo de responsabilidade (ECA, art. 157). Pelo jeito, mediante guarda.

O descumprimento pelos detentores da guarda dos encargos que lhe são conferidos, configura delito:

 

Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento:

Pena – detenção de seis meses a dois anos.

[…]

Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar:

Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. (Grifos nossos).

 

Desse modo, ainda que o ECA atribua a guarda dos filhos a ambos os pais, regula a guarda de crianças e adolescentes quando eles não se encontram sob autoridade parental de nenhum deles.

Distingue-se guarda legal, quando deferida judicialmente da guarda de fato, se crianças vivem com alguém sem a chancela estatal.

Chama-se de guarda provisória a conferida aos candidatos à adoção, os quais recebem a feita expressão “família substituta”. Afinal, serão eles os verdadeiros pais, uma vez que o vínculo biológico não assegurou aos filhos o direito a uma família.

 

2 Guarda no Código Civil

 

Não só o ECA, mas também o Código Civil, de forma equivocada, fala em guarda, ao invés de convivência, que é um direito dos filhos e uma obrigação dos pais.

Ao tratar da filiação a lei civil regula em capítulos distintos e distantes a Proteção da Pessoa dos Filhos (CC, arts. 1.583 a 1.590) e o Poder Familiar (CC, arts. 1.630 a 1.638), o que acaba por gerar vários embaralhamentos conceituais.

Basta atentar que os filhos estão sujeitos ao poder familiar, quer os pais vivam juntos (CC, art. 1.631), quer estejam separados (CC, art. 1.632). Seja qual for a situação conjugal, a ambos compete dirigir a criação e educação dos filhos (CC, art. 1.634, I), bem como o exercício da guarda, unilateral ou compartilhada (CC, art. 1.634, II).

A distinção entre guarda unilateral e guarda compartilhada é assim definida (CC, art. 1.583).

  • Guarda unilateral: a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua;
  • Guarda compartilhada: a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns (CC, 1.583, § 1º).

Depois é explicitado que, na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos (CC, art. 1.583, § 2º).

No entanto – e de forma absolutamente injustificável – é autorizado a qualquer dos pais, por consenso ou por vontade própria, simplesmente abrir mão dos encargos parentais (CC, art. 1.584, I e § 2º). Ora, é a eles que a Constituição da República atribui o dever de assistir, criar e educar os filhos menores (CR, art. 229). Imposição referendada pelo ECA (art. 22) e pelo Código Civil (arts. 1.566, IV e 1.634, I).

Desse modo, não há como qualquer dos genitores simplesmente abrir mão deste dever de cuidado e convivência, até porque tal postura é reconhecida como abandono afetivo, sendo imposta obrigação indenizatória por danos morais ao genitor que, simplesmente, não convive com os filhos.

Todavia, a lei traz outras incongruências.

Mesmo na hipótese de compartilhamento, a lei fala em cidade considerada base de moradia (CC, art. 1.583, § 3º), como se, com a separação dos pais, os filhos não possuíssem duas casas, dois lares, duas residências. Aliás, possibilidade essa assegurada legalmente (CC, art. 71): se a pessoa natural tiver diversas residências, considera-se seu domicílio qualquer uma delas.

Contudo, há uma agravante, quando os pais residem na mesma cidade e ambos pleiteiam que seja fixada a seu favor a base da moradia dos filhos, debate que provoca grandes atritos. E o pior, a justiça insiste em estabelecer a base de moradia com um dos pais, mesmo quando eles se opõem.

Recente alteração legislativa tem provocado acirrados debates. Encontrando-se ambos os pais aptos a exercerem o poder familiar, será estabelecida a guarda compartilhada. E quando o legislador usa o verbo no tempo futuro, significa obrigatoriedade.

Foi inserida, porém, uma exceção: a não ser que haja elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar (CC, art. 1.584, § 2º). A controvérsia gira em torno do significado da expressão “probabilidade de risco”, bem como da identificação de quem seja a provável vítima de “violência doméstica ou familiar”.

Antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação, o juiz indagará as partes e o Ministério Público sobre a probabilidade de risco, concedendo prazo de cinco dias para a apresentação de provas ou indícios de violência doméstica ou familiar (CPC, art. 699-A).  Primeiro, cabe atentar que as audiências de mediação e conciliação não são conduzidas pelo juiz, mas por mediadores e conciliadores. Ou seja, não há interferência judicial. Ao depois, a expressão probabilidade de risco é de conteúdo aberto, de difícil identificação.

Parece que o legislador esqueceu de ler o artigo seguinte que determina que, antes de qualquer medida em que seja necessário fixar liminarmente a guarda dos filhos, mesmo que provisória, é necessária a oitiva dos pais (CC, art. 1.585).

E quanto à identificação de quem é alvo da violência doméstica ou familiar? A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A chamada Lei Henry Borel (Lei 14.344/2022) cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente. Ou seja, é chamada de violência doméstica e familiar tanto a cometida contra mulheres como a perpetrada contra crianças e adolescentes.

Como o indigitado dispositivo foi inserido no Código Civil, no capítulo que trata da proteção dos filhos, às claras está a se referir à probabilidade de violência contra os filhos. Até porque, absurdo suspender a convivência paterno-filial diante da mera alegação de probabilidade de risco de violência contra a mulher.

Mais uma incongruência. O genitor que não detém a guarda do filho é obrigado a a supervisionar os interesses dos filhos, podendo solicitar inclusive prestação de contas em situações que afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos (CC, art. 1.583, § 5º). Será que este dever não existe na hipótese de compartilhamento da convivência?

Na ausência de acordo entre os pais sobre as atribuições e períodos de convivência sob a guarda compartilhada, tais atribuições são delegadas ao juiz, que age de ofício ou a requerimento do Ministério Público, com base em orientação de equipe interdisciplinar (CC, art. 1.584, § 3º). No entanto, esta prerrogativa judicial não pode ser afastada no estabelecimento da custódia unilateral. Até porque a alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de qualquer das modalidades de convívio pode implicar em redução de prerrogativas de quem assim age (CC, art. 1.584, § 4º).

 

3 Compartilhamento dos encargos parentais no projeto do Código Civil

 

O Código Civil, assim como o ECA, embaralha conceitos, o que tem levado a um aumento gigantesco de ações no âmbito do Poder Judiciário que não mantém estrutura organizacional adequada para atender a estas demandas. Certamente, as mais importantes são as que dizem respeito à proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

E este foi o propósito da Comissão de Juristas criada pelo Senado Federal para propor a atualização do Código Civil.

O projeto apresentado pela Subcomissão do Direito das Famílias buscou assegurar o compartilhamento dos encargos parentais de forma igualitária, conceito mais abrangente do que o da guarda. Aliás, expressão banida do projeto, que impõe o compartilhamento da convivência, excluindo a possibilidade de um dos genitores abrir mão do exercício da autoridade parental.

A custódia unilateral somente será atribuída a um dos genitores mediante a comprovação, por laudo psicossocial, que a convivência com um dos genitores pode colocar o filho em situação de perigo. E, durante o período da custódia unilateral, indispensável a avaliação periódica para ver da possibilidade do restabelecimento da convivência compartilhada.

Não há outra forma de se alcançar, também a igualdade de gênero, livrando a mulher da sobrecarga de assumir todas as responsabilidades, restando ao genitor a convivência em finais de semana, sem qualquer comprometimento na divisão das atividades dos filhos, o que prejudica a mãe em sua vida pessoal, profissional e afetiva.

 

 

 

 

 

 

Data do artigo: 14/03/2024

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