Maria Berenice Dias[1]
Sumário: 1. Novidades; 2. Perplexidades; 3. Regime de bens e meação; 4. Regime de bens e sucessão; 5. Direito de concorrência; 6. Concorrência e regime de bens; 7. Possibilidades interpretativas; 8. Outros questionamentos; 9. A única saída.
O novo Código Civil, como tudo o que é novo, gerou resistências e despertou desconfianças. Também como toda a novidade, não correspondeu à expectativa geral e ensejou muitos desapontamentos, sendo lido com precipitação por alguns que pretenderam ser os pioneiros em interpretá-lo.
Mas não se pode tirar alguns méritos da nova codificação civil, e os exemplos são vários. Conseguiu sepultar todos aqueles dispositivos que eram letra morta no velho Código, como as referências desigualitárias entre o homem e a mulher, as adjetivações da filiação, o regime dotal.
Alguns avanços foram significativos. Corrigiu equívocos e incorporou orientações pacificadas pela jurisprudência, ao, por exemplo, afastar o desvirginamento da mulher como causa para a anulação do casamento. Assegurou o direito de alimentos mesmo ao cônjuge culpado pela separação, banindo, em boa hora, a única hipótese de pena de morte fora das exceções constitucionais. Como o responsável pelo fim do casamento não fazia jus a alimentos, se não tivesse condições de prover a própria subsistência, era condenado, quiçá, a morrer de fome.
No entanto, perdeu-se uma bela oportunidade de obter alguns ganhos. Era a vez e a hora de serem incorporados institutos já reconhecidos pelos tribunais. Não trouxe o Código Civil a guarda compartilhada, não consagrou a posse de estado de filho ou a filiação socioafetiva. Nem mesmo previu as relações de pessoas do mesmo sexo, agora nominadas como uniões homoafetivas. A mantença da culpa na separação também é um dos grandes exemplos da falta de sensibilidade do legislador.
O mais grave é que desgraçadamente o legislador cometeu inconstitucionalidades. Tratou desigualmente as entidades familiares decorrentes do casamento e da união estável, gerando diferenciações que não se coadunam com o princípio da isonomia. Manteve uma capitis diminutio contra o idoso, subtraindo-lhe a capacidade para, após os 60 anos, escolher o regime de bens. Essa previsão existente na lei anterior já era reconhecida pela jurisprudência como não recepcionada pelo sistema jurídico instituído em 1988.
Talvez as mais significativas alterações tenham ocorrido no âmbito do Direito Sucessório, sede em que estão sendo travadas as mais acirradas discussões. A inclusão do cônjuge, mas não do companheiro, como herdeiro necessário tem levado ao questionamento sobre a constitucionalidade da diferenciação, que não constava da legislação pretérita nem é desejada por ninguém. Trata-se de odioso retrocesso. Mas a novidade maior é a introdução de um novo instituto: o direito do cônjuge e do companheiro, ainda que em situações díspares, de concorrerem com os herdeiros descendentes ou ascendentes. Exsurge um estado condominial do cônjuge e do companheiro sobreviventes com os herdeiros de graus anteriores, figura até então inexistente e que tem gerado dúvidas e inseguranças.
Em um primeiro momento, o que vem causando perplexidade maior é o fato de o direito de concorrência, assegurado ao cônjuge sobrevivente no âmbito do Direito Sucessório, estar condicionado ao regime de bens do casamento. Igualmente não se encontra justificativa para o tratamento diferenciado dispensado ao cônjuge sobrevivente quando o regime de bens é o da comunhão parcial, a depender do fato de o de cujus ter ou não bens particulares.
Mas os motivos de inquietações não terminam aí. Causa surpresa a circunstância de o direito de concorrer ser deferido também na união estável, cujo regime de bens, por força do art. 1.725 do Código Civil, é o da comunhão parcial de bens. No entanto, não é feita qualquer diferenciação quanto à existência ou não de bens pretéritos, a condicionar o direito do parceiro de dividir o patrimônio com os herdeiros, como ocorre quando o de cujus era casado.
Afora tudo isso, a difícil redação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil, que, além da falta de clareza, traz uma aparente duplicidade de negações, gera enormes dificuldades para a exata compreensão de seu conteúdo.
Surgiram opiniões absolutamente díspares apontando para soluções diametralmente opostas e até contraditórias. Afloraram tantas dúvidas, que a perplexidade tomou conta de todos, não só dos lidadores do Direito[2]. Disseminou-se no seio da própria sociedade tal sentimento de insegurança, que o tema vem sendo trazido a debate até nos meios de comunicação.
O instituto do regime de bens pertence ao âmbito do Direito de Família e serve para aclarar a origem, a titularidade e o destino dos bens conjugais. [3]
A diferença é bem posta por Zeno Veloso:
Não se deve confundir meação com direito hereditário. A meação decorre de uma relação patrimonial – condomínio, comunhão – existente em vida dos interessados, e é estabelecida por lei ou pela vontade das partes. A sucessão hereditária tem origem na morte, e a herança é transmitida aos sucessores conforme as previsões legais (sucessão legítima) ou a vontade do hereditando (sucessão testamentária). [4]
A escolha do regime de bens feita por ocasião do casamento rege a situação patrimonial do casal durante a vigência do matrimônio e quando de sua dissolução, pela separação, divórcio ou falecimento de um dos consortes. Ocorrendo a morte de um, a identificação do regime de bens serve para sinalar se o cônjuge sobrevivente tem ou não direito à meação. A depender do regime eleito, o viúvo faz ou não jus à meação; é considerado condômino de todo o patrimônio ou dos bens que foram adquiridos durante o casamento. Assim, não se pode falar em herança sem antes apartar a meação do sobrevivo, o que não se confunde com direito hereditário.
Silentes os noivos, ou seja, não havendo eles firmado pacto antenupcial por ocasião do casamento, vigora, por determinação legal, o regime da comunhão parcial. Quando do falecimento de um dos cônjuges, o sobrevivente tem direito à meação, que se compõe da metade dos bens adquiridos durante o período da vida em comum. Portanto, primeiro há que se apartar os bens que pertencem ao cônjuge, isto é, a metade do que foi adquirido onerosamente durante a vigência da união, independente de quem o tenha adquirido. Desimporta a parcela individual de contribuição na formação do acervo patrimonial para estremar as meações. A divisão igualitária dos aqüestos é levada a efeito sem questionar-se a efetiva participação de cada um dos cônjuges na constituição do patrimônio comum. O chamado estado de mancomunhão gera o reconhecimento da co-propriedade em regime condominial dos bens amealhados a partir da celebração do casamento.
Hipóteses há em que é irrelevante a vontade dos nubentes. Impõe a lei o regime da separação obrigatória (art. 1.641 do CC), quando o casamento se realiza contra a recomendação do legislador de que “não devem casar”. Tais interditos estão elencados no art. 1.523 do Código Civil. São limitações injustificáveis e inconstitucionais. Mas certamente a mais cruel das sanções de incomunicabilidade de patrimônio é quando um dos nubentes é maior de 60 anos (inciso II do art. 1.641 do CC). Além de flagrante afronta à Lei nº 10.741/03, conhecida como Estatuto do Idoso, inexiste a possibilidade de afastar a imposição legal por se tratar de hipótese não excepcionada no parágrafo único do art. 1.523 do Código Civil. Nesses casos, pode ser afastada a incomunicabilidade por decisão judicial, possibilidade que inexiste quando um dos noivos for um idoso. Sequer é admitida a comunhão de aqüestos. Porém, ainda que o legislador vede a comunicabilidade dos bens adquiridos durante o casamento, é imperioso que se reconheça que permaneçe em vigor a Súmula nº 377 do STF,[5] que presume o estado condominial dos bens amealhados na vigência da união. Assim, mesmo diante da imposição legal, para impedir o locupletamento injustificado de um dos cônjuges em detrimento do outro, mister afirmar a existência do direito à meação sobre o patrimônio amealhado durante o casamento, a ser atribuído ao cônjuge sobrevivente.
Quando o regime de bens é eleito pelos nubentes, por pacto antenupcial, a identificação da existência e da extensão da meação estará condicionada ao regime escolhido.
Em se tratando do regime de comunhão universal, todo o patrimônio se comunica e a meação é garantida sobre a integralidade do patrimônio, independente de haver sido adquirido antes ou na constância do casamento. Não há bens particulares ou patrimônio próprio na hora de definir a meação.
Em situação oposta, quando o pacto é pela separação total de bens, não há comunicação de patrimônio, única hipótese em que não há direito à meação.
No recém introduzido regime da participação final de aqüestos, a divisão patrimonial, quanto aos bens existentes antes do casamento, não difere do regime da comunhão parcial, ou seja, não se comunicam e constituem o patrimônio próprio de cada um. Os bens adquiridos em comum e durante a vida em comum pertencem ao casal e são repartidos por metade no fim do casamento. Até aí, não há divergência entre os dois regimes. A diferença diz tão-só com a identificação do que é patrimônio próprio e o que deve ser considerado como aqüesto para fins de divisão. Integram o conceito de patrimônio próprio, não sendo alvo da partição, os bens que cada cônjuge adquire, em seu nome e a qualquer título, na constância do casamento. Tais bens particulares não se dividem quando do fim do casamento, quer pela separação, quer pela morte.
Diante de tal panorama, imperioso concluir que somente no regime convencional de separação de bens é que não cabe falar em meação. Eleito o regime da comunhão universal, a meação incide sobre a integralidade do acervo patrimonial. No regime da comunhão parcial, bem como no regime de separação legal (por força da Súmula nº 377) a meação corresponde à metade dos bens adquiridos durante a vigência do casamento. Já no regime da participação final dos aqüestos, são excluídos da meação não só os bens existentes antes das núpcias, mas também os bens próprios de cada cônjuge adquiridos enquanto casados.
Falecido um dos cônjuges, a primeira providência é separar a meação do sobrevivente, a depender do respectivo regime de bens. A herança que se transmite aos herdeiros se constitui da meação do de cujus, seus bens próprios e os bens excluídos da comunhão (arts. 1.659 e 1.668 do CC).
Até o advento do atual Código Civil, quando da abertura da sucessão, o regime de bens servia somente para a identificação da existência e extensão do direito à meação.
A correlação entre regime de bens e direito de meação não sofreu qualquer alteração no novo Código Civil. O que aflorou foi um direito novo, no âmbito do direito sucessório: o direito de concorrência. Sua existência e extensão estão condicionadas ao regime de bens que rege o casamento.
Na sucessão de pessoa casada, a inovação não foi só essa. O legislador promoveu o cônjuge à condição de herdeiro necessário, inserindo-o em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, depois dos descendentes e ascendentes. Assegurou-lhe direito a parte da herança, ainda que existam herdeiros de grau anterior. Mesmo havendo filhos, mesmo remanescendo ascendentes, o cônjuge, em algumas hipóteses, também herda, concorrendo com os demais herdeiros. Surge um estado condominial dos bens integrantes da herança entre o cônjuge e os herdeiros, em proporções diferenciadas, a depender da origem da filiação e do grau de parentalidade dos ascendentes.
No entanto, em sede de união estável, houve um significativo, perverso e inconstitucional retrocesso. Zeno Veloso é contundente quando afirma ter havido um recuo notável. O panorama foi alterado, radicalmente. Deu-se um grande salto para trás. Colocou-se o companheiro em posição infinitamente inferior com relação à que ostenta o cônjuge.[6] O Código Civil, contrariando o comando constitucional e as leis que regulamentavam o instituto, não assegurou direito sucessório ao convivente nem o inseriu na ordem de vocação hereditária. O direito de concorrência concedido ao parceiro apresenta limite bem mais acanhado se comparado ao mesmo direito deferido ao cônjuge. Excluída a meação do sobrevivente, tão-só sobre a meação do companheiro falecido, ou seja, sobre a metade dos bens comuns é que ele concorre com os herdeiros. Os demais bens que compõem o acervo hereditário, que são os bens particulares existentes antes da união, se destinam exclusivamente aos herdeiros, sem qualquer participação do convivente. Como ele não integra a ordem de vocação hereditária, somente se pode falar em direito sucessório quando inexistirem herdeiros sucessíveis, isto é, parentes até o quarto grau. Portanto, na união estável, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança somente na ausência de filhos, pais, primos, sobrinhos-netos ou tios-avôs.
Mais uma vez é de se fazer eco a Zeno Veloso:
Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?[7]
Quando se está frente a um texto legal novo, em havendo significativas mudanças, procurar identificar a intenção do codificador é o primeiro recurso hermenêutico que se deve utilizar.
Inquestionavelmente é de reconhecer que o legislador quis privilegiar o casamento. Além de elevar o cônjuge à condição de herdeiro necessário, assegurando-lhe direito à herança, concorre ele com os herdeiros que lhe antecedem na ordem de vocação hereditária. Concorre com filhos, comuns ou não, e concorre com os ascendentes. Com relação à união estável, faltou generosidade ao legislador, pois nem de direito de concorrência se pode chamar o que lhe deferiu o texto legal, uma vez que lhe é destinado somente singelo percentual dos bens comuns.
Também nítido o tratamento privilegiado deferido ao cônjuge ao ser brindado com uma quota mínima, em fração não inferior a um quarto do acervo hereditário, se todos os herdeiros forem filhos seus. Não perceberá menos de uma terça parte se os herdeiros forem os ascendentes do de cujus. Tal beneficiamento do cônjuge frente aos herdeiros que o antecedem parece provar que a intenção da lei foi favorecer quem compartilhou vidas, assumiu o dever de mútua assistência e participou na formação do patrimônio.
O direito de concorrência nada tem a ver com o direito à meação. Aqui se está na seara do direito sucessório, fora da órbita do Direito de Família, em que se situa o direito à meação, a depender do regime de bens do casamento. No entanto, as limitações impostas ao direito de concorrência estão condicionadas exclusivamente ao regime de bens do casamento, vinculação cuja razão de ser não se consegue atinar. Essa, aliás, é a primeira fonte geradora de perplexidades frente à redação do inciso I do art. 1.829 do Código Civil que reconhece o direito de o cônjuge concorrer com os descendentes.
Estabelece o art. 1.845 do Código Civil a ordem de sucessão legítima, reconhecendo como herdeiros os descendentes, os ascendentes, o cônjuge e os colaterais. A relação é excludente, pois a existência de um herdeiro antecedente afasta os demais da herança. O art. 1.829 repete o mesmo rol, mas defere ao cônjuge supérstite um direito a mais. Deixa ele de ser herdeiro eventual, condicionado à inexistência de herdeiros das categorias anteriores, para se transformar em co-herdeiro juntamente com os demais beneficiários. A depender do regime de bens do casamento, assegura a lei ao cônjuge supérstite parte dos bens da herança, fazendo surgir um estado condominial com os descendentes ou, na falta deles, com os ascendentes.
O inciso I do artigo 1.829 do Código Civil consagra o direito de concorrência que, no entanto, está sujeito a algumas exceções. Como as exceções são restritivas e excludentes do direito, merecem interpretação limitativa. Portanto, afora as hipóteses elencadas pelo legislador, prevalece o direito do cônjuge.[8] O critério escolhido para afastar a benesse é o regime de bens escolhido pelos noivos antes do casamento. Aponta a lei determinados regimes de bens frente aos quais é subtraído o direito de concorrer. Não há como deixar de reconhecer que, em todas as hipóteses não expressamente declinadas, prevalece a regra da concorrência. Assim, se a lei só exclui o direito nos regimes de comunhão universal, separação legal de bens e em uma modalidade da comunhão parcial – a depender da existência ou não de bens particulares do de cujus – , outra não pode ser a conclusão: nos demais regimes, quais sejam o da separação convencional de bens, o da participação final de aqüestos e em uma modalidade do regime da comunhão parcial, o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros na herança do falecido.
Sem qualquer dúvida, o direito de concorrência no regime da comunhão parcial de bens é o ponto mais debatido do novo Código Civil, podendo-se afirmar, sem medo de errar, que esse é o tema que tem gerado as maiores divergências na doutrina.
A primeira dúvida que suscita o indigitado dispositivo legal diz com sua intrincada construção gramatical. Primeiro traz, em uma mesma sentença, uma hipótese e três exceções, sendo que, com relação a uma delas, há um desdobramento. Se tudo isso não bastasse, usou o legislador uma dupla negação. As duas primeiras hipóteses excludentes são introduzidas pela locução conjuntiva “salvo se” e a última previsão vem depois de um ponto e vírgula e inicia com a expressão “ou se”. Indiscutivelmente essa espécie de construção só poderia gerar controvérsias e interpretações dissonantes.
A leitura que a doutrina tem feito de forma mais reiterada do inciso I do art. 1.829 do Código Civil – e justificativas gramáticas, sintáticas e filológicas não faltam – é considerar que a lei exclui o direito de concorrência não só nos regimes da comunhão universal de bens e da separação obrigatória, mas também no regime da comunhão parcial de bens, contanto que o autor da herança não tenha deixado bens particulares. Por conseqüência, a preexistência de qualquer bem ao casamento garante ao cônjuge o direito a concorrer com os herdeiros sobre os bens da herança. Os exemplos que surgiram foram muitos, havendo-se tornado conhecido o da bicicleta.[9] Se, ao casar, o noivo não tivesse nenhum bem, o cônjuge, quando de sua morte, perceberia a sua meação, correspondente à metade dos bens amealhados durante a vida em comum, isto é, a metade de todo o a patrimônio existente. O restante, os bens integrantes da meação do falecido, comporia o acervo hereditário a ser dividido exclusivamente entre os seus herdeiros descendentes ou ascendentes. No entanto, se, ao casar, fosse o noivo proprietário de uma bicicleta, o consorte sobrevivente, além da sua meação sobre os bens adquiridos depois do casamento, concorreria com os herdeiros sobre a totalidade da herança, constituída não só da bicicleta, mas também da meação do finado. A identificação do percentual a ser transmitido ao sobrevivente dependeria do fato de concorrer com os filhos que teve com o de cujus ou somente com os filhos dele, havidos antes ou fora do casamento. Assim, segundo esse pensamento, que se tornou majoritário em sede doutrinária, o fato de o de cujus possuir bens particulares – ainda que seja somente uma bicicleta – garante ao cônjuge sobrevivente uma parcela do patrimônio individual. A resistência em aceitar esse raciocínio é por que a herança percebida pelo cônjuge sobrevivente, constituída por bens individuais do consorte falecido (normalmente havidos por esforço pessoal ou com a colaboração dos filhos de leito anterior), não mais retorna aos sucessores de quem era o seu titular. Quando da morte do cônjuge sobrevivente, tais bens seriam outorgados aos herdeiros seus: novo cônjuge, novos filhos ou ainda seus parentes colaterais. Eles perceberiam acervo patrimonial que sequer era de propriedade do parente morto, pois o titular era o cônjuge pré-morto. Não há como deixar de visualizar injustificável quebra do próprio princípio norteador do direito sucessório que orienta a transmissão patrimonial seguindo os vínculos de consangüinidade.
Mas surgiram interpretações outras ao indigitado dispositivo legal. Zeno Veloso[10] foi o primeiro a sustentar que, nessa hipótese, o direito de concorrência do cônjuge incide exclusivamente sobre os bens particulares do finado. Quanto ao patrimônio adquirido durante a vida em comum, como o cônjuge tem direito à meação, não concorreria com os herdeiros. Porém, essa construção, que busca contornar, ao menos em parte, a incongruência da norma legal, não pode subsistir. É ressalva que não está na lei. Seria estabelecer limitação ao direito de cônjuge sobrevivente sem que haja expressa previsão do legislador. Certamente a tentativa de excluir direitos sem permissão legal não resistiria ao ser questionada perante o Poder Judiciário.
Para os adeptos de qualquer dessas correntes interpretativas, pretendendo os nubentes simplesmente preservar seus patrimônios particulares, não há regime de bens que possam adotar. Quem tiver filhos e bens e pretender que o cônjuge não participe desse acervo, recebendo somente a meação do que venha a ser adquirido depois das núpcias, não tem saída. Simplesmente não pode casar! Pelo fato de existirem bens individuais, necessariamente – ao menos para quem assim lê o inciso I do art. 1.829 do CC – o cônjuge concorrerá com a prole preexistente sobre todo o acervo hereditário. Não dá para deixar de concluir que esse absoluto cerceamento à possibilidade de escolha sobre a forma de disposição do patrimônio configura limitação que afronta o direito à liberdade, princípio que goza de assento constitucional. A solução que se afigura a essa restrição é reconhecer a inconstitucionalidade de tal injustificável limitação.
Escasso o número de quem extrai dessa regra solução diametralmente oposta. Ao se atribuir ao ponto-e-vírgula que separa as duas exceções a função própria desse sinal gráfico, a forma de interpretar o dispositivo legal é bem diversa. Admite o afastamento do direito de concorrência se o de cujus possuía patrimônio particular. Assim, aquele que casa com quem possui bens particulares, quando da sua morte, perceberá somente a sua meação. Os herdeiros ficam com a titularidade exclusiva do acervo hereditário, composto pela meação do morto e pelo patrimônio preexistente ao casamento.[11] Apesar de todas as críticas a esse raciocínio, que, como dizem, afronta a letra da lei, ele certamente está em consonância com a lógica da vida, pois se harmoniza com a lógica da cadeia sucessória. O sistema legal sempre priorizou os vínculos de parentesco em sede de direito sucessório.
Mas há outros pontos que geram questionamentos. Tanto no regime da comunhão parcial como no da participação final dos aqüestos, inexistem diferenças sobre o destino dos bens adquiridos antes do casamento: não integram a meação do consorte. Em ambas as hipóteses, o acervo partilhável é constituído pelos bens comuns adquiridos durante o casamento. Como o regime da participação final de aqüestos não está referido entre as exceções que afastam o direito de concorrência, mister reconhecer que ao cônjuge sobrevivente é sempre assegurada parcela da herança. Havendo ou não bens particulares, concorre com os herdeiros.
Cabe buscar uma justificativa para o tratamento diferenciado entre esses regimes de bens. Por que, entre dois regimes que tratam igualmente os bens particulares, é feita distinção quanto à concorrência? Por que, em se tratando do regime de participação final nos aqüestos, independente da preexistência de patrimônio, é sempre assegurado ao cônjuge o direito de concorrer? Por que, no regime da comunhão parcial, o fato de o autor da herança possuir ou não bens particulares gera tratamento diferenciado quanto à concorrência do cônjuge?
Também não se atina por que, no regime legal da separação de bens (art. 1.641 do CC), não há direito à concorrência, limitação que inexiste em havendo a opção pela separação de bens por pacto antenupcial, uma vez que tal regime não foi inserido entre as exceções legais. Em ambas as hipóteses, não há falar em direito sucessório do cônjuge sobrevivente. Se a incomunicabilidade decorre da manifestação de vontade dos cônjuges, é assegurado ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrer com os herdeiros sobre todo o acervo hereditário. No entanto, se o mesmo regime de separação de bens decorre de imposição legal, ainda que injustificável a postura do legislador, não existe direito de concorrência. A menos que se vislumbre uma tentativa de punir quem casa com mais de 60 anos, nada autoriza tratamento desigualitário ante situações absolutamente idênticas. Aqui se avizinha também afronta ao princípio da igualdade, que dispõe de proteção constitucional.
Afora a incontornável ausência de respostas a essas interrogações, talvez mais desafiador seja identificar os critérios utilizados pelo legislador para excluir o direito à concorrência em algumas hipóteses, introduzindo limitações ao direito do cônjuge.
Subtrair o direito de concorrência no regime da comunhão universal de bens parece ser uma tentativa de impedir o excessivo beneficiamento do cônjuge sobrevivente. Como a totalidade do patrimônio do autor da herança pertence ao casal, receberá o cônjuge supérstite, a título de meação, a metade de todo o acervo hereditário. Tanto os bens particulares como os adquiridos durante a vida em comum serão partilhados por metade. Logo, no regime de comunhão universal de bens, o cônjuge sobrevivente fica com cinqüenta por cento de tudo. O restante, a meação do de cujus, é dividido entre os filhos do autor da herança, nada recebendo o sobrevivente sobre essa parcela.
Parece, pelo que diz a maioria, não ser outra a justificativa quanto ao regime da comunhão parcial, em que todo o patrimônio existente foi adquirido na constância do casamento. Como, ao casar, não possuía o de cujus patrimônio particular, o acervo hereditário é composto exclusivamente dos bens comuns amealhados durante a vigência do casamento. Nessa hipótese, igualmente, se divide a totalidade do patrimônio. O sobrevivente fica com a sua metade e não concorre com os descendentes quanto à outra metade dos bens. Mas talvez se deva fazer questionamento de outra ordem: se a intenção do legislador foi beneficiar o cônjuge, por que lhe deferir exclusivamente a meação, nada lhe dando de herança, ainda que todo o patrimônio tenha sido adquirido presumivelmente pelo esforço comum?
Sem perder de vista que a finalidade da instituição do direito de concorrência foi melhor aquinhoar o cônjuge, perplexidade maior advém ao se visualizar hipótese outra. Tudo indica que a intenção do legislador, ao introduzir as exceções excludentes do direito de concorrer, foi afastar a benesse quando o sobrevivente recebe a metade de todo o acervo patrimonial do de cujus. No regime da comunhão universal, a meação se constitui sobre os bens pretéritos de cada um dos consortes e sobre os adquiridos durante a vida em comum. No regime da comunhão parcial, segundo a doutrina majoritária, inexistindo bens anteriores ao casamento, igualmente haverá a partição igualitária do patrimônio. Ora, se o desejo foi só excluir a concorrência quando o cônjuge sobrevivo ficar com a metade da totalidade do patrimônio, cabe perguntar: por que excluir esse benefício de quem casou pelo regime da separação obrigatória de bens? Na dicção fria da lei, o consorte sobrevivente nada recebe, sequer a meação dos bens adquiridos durante a vida em comum. O viúvo, simplesmente por ser ou haver se casado com um sexagenário, fica sem nada, independentemente de existir bens particulares ou de haver contribuído na aquisição de patrimônio durante a constância do casamento.
A falta de congruência da lei torna-se mais evidente ao se atentar que, no regime convencional da separação, em que um cônjuge não é herdeiro do outro, o sobrevivente é brindado com o direito de concorrer com os sucessores.
Tratamentos tão antagônicos e paradoxais não permitem identificar a lógica que norteou a casuística limitação levada a efeito pelo legislador. Quando se depara com situações que refogem à razão, não se conseguindo chegar a uma interpretação que se conforme com a justiça, há que reconhecer que deixou o codificador de atender ao princípio da razoabilidade, diretriz constitucional que cada vez mais vem sendo invocada para subtrair eficácia a leis que afrontam os princípios prevalentes do sistema jurídico. São a igualdade e a liberdade, que sustentam o dogma maior de respeito à dignidade humana. E nada, absolutamente nada autoriza infringência ao princípio da igualdade, ao se darem soluções díspares a hipóteses idênticas e tratamento idêntico a situações diametralmente distintas. Também nítida é a afronta ao princípio da liberdade ao se facultar a escolha do regime de bens e introduzir modificações que desconfiguram a natureza do instituto e alteram a vontade dos cônjuges. Desarrazoado não disponibilizar a alguém qualquer possibilidade de definir o destino que quer dar a seus bens.
Imperioso concluir que são insustentáveis as distorções levadas a efeito pela lei, estabelecendo distinções ante situações rigorosamente iguais. É o que ocorre com o tratamento diferenciado entre o regime da comunhão parcial e o de participação final nos aqüestos, bem como entre o regime legal e o convencional de separação de bens. Além disso, é incongruente excluir o benefício frente a circunstâncias diametralmente opostas, como no regime da comunhão universal e no da separação obrigatória de bens. Em um se extirpa a concorrência pelo fato de o sobrevivente receber a metade de todo o acervo patrimonial. Já na outra hipótese é excluído o benefício de quem nada irá receber sequer a título de meação. Aqui também se vê ferido o princípio da razoabilidade. Cabe repetir: situações idênticas não podem receber tratamento diferenciado, assim como situações diversas não devem ser tratadas de forma igual. A única solução que se avizinha é simplesmente reconhecer a inconstitucionalidade das exceções estabelecidas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil e estender o direito de concorrência ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens.
Frente ao que até aqui foi posto, e diante da diversidade de interpretações que o mesmo texto legal tem ensejado, cabe fazer uma pergunta: qual o regime de bens que deve adotar quem quer casar e, tendo filhos e bens, não pretende que, no caso de seu falecimento, o cônjuge receba parte do patrimônio amealhado antes do casamento?
Impositivo raciocinar por exclusão.
Às claras, não deve eleger o regime da comunhão universal, pois nessa hipótese o cônjuge receberia a metade do seu patrimônio particular a título de meação. Igualmente descabe optar pelo regime da separação de bens, já que, por não incluído esse regime nas exceções do inciso I do art. 1.829, o cônjuge sobrevivente teria direito à concorrência sobre todos os bens, inclusive os particulares. O mesmo se diga com referência ao regime da participação final de aqüestos, pois igualmente não foi excepcionado pela lei, persistindo o direito do sobrevivente de concorrer também sobre os bens individuais.
Não havendo regime de bens a eleger por pacto antenupcial, igualmente não pode o casal silenciar para que se instale o regime da comunhão parcial. Nessa hipótese, em face da existência de bens particulares (para quem assim lê a lei), o viúvo concorrerá com os descendentes.
Qual a solução? O jeito é não casar? É viver em união estável? É esperar que um dos cônjuges complete 60 anos para casar pelo regime da separação legal? Como deixar os bens particulares só para os filhos?
A única conclusão a que se pode chegar é que está cerceada a vontade de quem quer casar, mas quer preservar seu patrimônio pessoal em favor de seus filhos. Pelo jeito, quem possui filhos e bens não pode casar! Conclusão: o novo Código Civil, que se dedicou com tanto empenho a regular o casamento (dedicou-lhe 202 artigos), impõe o celibato a quem possui filhos e patrimônio, ainda que seja somente uma bicicleta. Cabe lembrar que a própria Constituição Federal parece preferir o casamento ao impor empenho em casar os conviventes, mas a lei não está atentando a essa recomendação.
Como emprestou o legislador constituinte especial relevo ao direito à liberdade, além de assegurar irrestrita proteção à família, não dá para aceitar que alguém não tenha o direito de casar e dispor da forma que lhe aprouver sobre o destino de seu patrimônio após o seu falecimento.
A saída é uma só: reconhecer a inconstitucionalidade das exceções postas no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, quiçá de todo o artigo 1.829.
Falando em inconstitucionalidade, era bom inserir no rol o tratamento discriminatório concedido à união estável não só no âmbito sucessório, mas em incontáveis dispositivos espraiados na lei. Desrespeitam a diretriz traçada pela Constituição Federal, que não estabeleceu qualquer hierarquização entre as entidades familiares e as elencou de forma exemplificativa.
Ao sugerir-se a eliminação de dispositivos legais, era de se aproveitar e revogar também a parte final do art. 1.845 do Código Civil, afastando o cônjuge da condição de herdeiro necessário.
Não se visualizando a necessidade social de modificar a lei, as mudanças introduzidas se revelam despiciendas, não se justificando as alterações levadas a efeito. Geram tantas e tão absurdas conseqüências, que a única solução que se avizinha é abstrair as novidades do contexto normatizado.
Enquanto o legislador se queda silente, mister que o Poder Judiciário assuma essa tarefa. De todo descabido que se curvem os juízes às aberrações legais e se esqueçam de que lhes incumbe a missão de fazer justiça. O novo Código Civil não foi feliz. A lei não está imitando a vida.[12] E, quando ocorre esse desrespeito, é necessário olvidar o que a lei diz, pois, quando o direito ignora a realidade, a realidade se volta contra o direito, ignorando o direito, conforme sempre vaticinou Ripert.
Publicado em 11/11/2007.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
www.mariaberenice.com.br
[2] Cabe referir o sem-número de manifestações, sugestões e opiniões que recebi de atentos estudiosos, quando da publicação dos artigos anteriores sobre o tema intitulados: “Ponto e Vírgula” e “Ponto Final”. Merecem ser citadas as ponderações manifestadas por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Jamil Bannura, Mario Delgado, Enéas Castilho Chiarini Júnior, Eduardo Franceschetto Junqueira, Fernando Nogueira, André Sarda, Antônio Sérgio Dias Leal e Sidney Martins.
[3] MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 193.
[4] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.
[5] Súmula nº 377 do STF: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.
[6] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 286.
[7] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 293.
[8] Não é possível concordar com Miguel Reale em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 12 de abril de 2003, quando afirma a possibilidade de excluir o direito de concorrência por analogia.
[9] O exemplo é trazido pelo Des. Luiz Felipe Brasil Santos, em artigo disponibilizado no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (www.ibdfam.com.br) intitulado “A sucessão dos cônjuges no novo Código Civil”.
[10] Esta é a posição de Zeno Veloso. (VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 281).
[11] Esta forma de interpretação é a que sustento em dois artigos em que abordo o tema intitulados “Ponto e vírgula” e “Ponto final”, disponíveis em meu site www.mariaberenice.com.br .
[12] VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de Família e o Novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 294.