Maria Berenice Dias[1]
Difícil encontrar uma definição de família de forma a dimensionar o que, no contexto social dos dias de hoje, se insere nesse conceito. É mais ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento, ou seja, um conjunto de pessoas ligadas a um casal, unido pelo vínculo do matrimônio. Também vem à mente a imagem da família patriarcal, sendo o pai a figura central, na companhia da esposa, e rodeados de filhos, genros, noras e netos.
Essa visão hierarquizada da família, no entanto, vem sofrendo com o tempo uma profunda transformação. Além de ter havido uma significativa diminuição do número de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis, e seus novos contornos estão a desafiar a possibilidade de encontrar-se um conceito único para sua identificação. Novos modelos familiares surgiram, muitos formados com pessoas que saíram de outras relações, constituindo novas estruturas de convívio sem que seus componentes tenham lugares definidos ou disponham de terminologia adequada.
A Constituição Federal de 1988 alargou o conceito de família, passando a integrá-lo as relações monoparentais: de um pai com os seus filhos. Esse redimensionamento, calcado na realidade que se impôs, acabou afastando da idéia de família o pressuposto de casamento. Para sua configuração, deixou de ser exigida a necessidade de existência de um par, o que, conseqüentemente, subtrai de sua finalidade a proliferação.
Também a Carta Magna emprestou juridicidade ao relacionamento existente fora do casamento, chamando de entidade familiar a união estável entre um homem e uma mulher. Tal era o conservadorismo dos juízes, que difícil foi fazer sua inserção no âmbito do Direito das Famílias. Somente nos anos de 1994 e 1996, é que surgiram duas leis (8.971 e 9.278) regulando a união estável como uma família. O Código Civil inseriu em seu bojo dita legislação que reconhecia como estável a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Socorreu-se o legislador da idéia de família como elemento configurador de um relacionamento suscetível de gerar efeitos jurídicos. No entanto, de modo absolutamente injustificado houve um retrocesso, deixando de ser assegurados os mesmos direitos concedidos ao casamento. Ainda que conferido os mesmos direitos no âmbito do Direito das Famílias, no direito sucessório ocorreu um tratamento desigualitário de forma escancaradamente inconstitucional. O companheiro não foi incluído na ordem de vocação hereditária, e direito de concorrência foi deferido exclusivamente quanto aos bens adquiridos na constância do relacionamento.
Apesar de a Constituição ter reconhecido a existência de entidades familiares fora do casamento, na busca de exercitar um certo controle social, se restringiu a emprestar juridicidade apenas às relações heterossexuais. Por absoluta discriminação, fruto de um conservadorismo perverso, deixou de regular os relacionamentos que não têm como pressuposto a diversidade de sexos. Mas é necessário encarar essa realidade sem preconceitos, pois a homoafetividade não é uma doença nem uma opção livre. Assim, descabe estigmatizar quem exerce orientação sexual diferente, já que, negar a realidade, não irá solucionar as questões que emergem quando do rompimento de tais relações. Não há como chancelar o enriquecimento injustificado e excluir direitos de a quem dedicou a vida ao companheiro, ajudou a amealhar um patrimônio e se vê sozinho, abandonado e sem nada.
Muito raras têm sido as decisões judiciais que extraem conseqüências jurídicas das uniões homoafetivas, mostrando-se ainda um tema permeado de preconceitos. Mas é preciso que se reconheça que em nada se diferencia a convivência homossexual da união estável. Ainda que haja restrição em nível constitucional, imperioso que, por meio de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionavelmente se trata de relacionamento que constitui uma unidade familiar.
A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana.
Publicado em 19/11/2007.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
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