Maria Berenice Dias[1]
A família sempre foi vista como nos comerciais de margarina: o modelo de família feliz, que deve ser preservada a qualquer preço.
Por isso o incesto é um crime que todos insistem em não ver. É algo sobre o qual não se pode falar. Apesar de ser uma prática das mais democráticas, pois atinge a família de todas as classes sociais e níveis culturais, ninguém acredita que ele existe.
Esta dificuldade se reflete na própria Justiça, que acaba sendo conivente com o infrator. Há uma enorme dificuldade de emprestar credibilidade à palavra da vítima. Quando são crianças, costuma-se pensar que elas usam da imaginação ou que foram induzidas a mentir. Quando são adolescentes, acredita-se que elas provocaram o abusador, seduziram-no, insinuaram-se a ele, justificando, assim, o abuso. Assim, a responsabilidade pelo crime é atribuída à vítima, e não ao réu.
O juiz busca provas quando não há vestígios materiais, quer testemunhas para ter certeza da existência de um delito que acontece entre quatro paredes. Não dá valor aos laudos sociais e psicológicos que, de forma eloquente, mostram que os danos psíquicos são a mais evidente prova da prática de abuso sexual. De uma maneira surpreendente, a absolvição por falta de provas é o resultado na imensa maioria dos processos, o que gera a consciência da impunidade.
Nas práticas sexuais intrafamiliares, de um modo geral, não há violência física. São delitos marcados por uma relação de afeto e confiança. Começa com carinhos, toques e carícias que a vítima recebe de uma pessoa que ela ama, respeita e à qual deve obediência.
Além de a condenação ser muito difícil, o encarceramento dos autores de crimes sexuais praticados contra menores não recuperar o réu. Indispensável é que não só o abusador, mas também a vítima e todos os componentes da família sejam submetidos a acompanhamento psico-social. Só que esta solução não é fácil. Além de haver a necessidade de ser alterada a lei, é preciso qualificar profissionais para estes serviços que necessitam de instalações próprias.
Mas é chegada a hora de acabar com o pacto de silêncio imposto pela sociedade em nome da preservação da família margarina.
Publicado em 13/06/2010.
[1] Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões
Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS
Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM
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