Maria Berenice Dias[1]
Sumário: 1. No casamento; 2. Na união estável; 3. Na relação homossexual.
- No casamento
A partir do cristianismo, as únicas relações afetivas aceitáveis eram as decorrentes do matrimônio entre um homem e uma mulher, postura que revela nítido interesse na possibilidade de procriação. Essa conservadora cultura acabou levando o legislador pátrio – e isso nos idos de 1916 – a reconhecer juridicidade apenas ao casamento, como uma verdadeira instituição, um vínculo indissolúvel.
A previsão de regimes de bens serve para regrar a segmentação patrimonial quando do rompimento do vínculo. Apesar de exauriente a normatização legal, quando da partição do patrimônio as dificuldades que surgem dizem exclusivamente com o sentimento de quem, por se sentir preterido, humilhado e prejudicado na relação amorosa, busca compensar perdas. Tenta levar consigo a maior parte do acervo patrimonial, excluindo os bens de quem considera o culpado pela separação.
No regime da comunhão universal de bens, surge um estado condominial de todo o patrimônio, a ser dividido de forma igualitária, desimportando a origem e a época de sua aquisição. Com o regime legal da comunhão parcial, imposto a partir da Lei do Divórcio, restou afastado o condomínio nas heranças, legados e doações.
Por criação pretoriana, o estado de comunhão perdura enquanto persiste a convivência more uxorio. A separação de fato, ainda que não oficializada a separação ou o divórcio, enseja o fim da sociedade conjugal e, por isso, marca o término do estado condominial. Os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges só a ele passa a pertencer, ainda que permaneçam legalmente na condição de casados.
- Na união estável
Os novos modelos familiares, muitos formados com pessoas que saíram de outras relações, levaram ao surgimento novas estruturas de convívio, sem que seus componentes tenham lugares definidos ou disponham de terminologia adequada.
O estatuto civil anterior, além de se omitir em regular relações extramatrimoniais, expungiu com veemência a possibilidade de se extraírem conseqüências jurídicas de outros vínculos afetivos. Proibiu doações, seguros, bem como a possibilidade de herdar, usando expressões como concubina e cônjuge adúltero para se referir a uniões tidas por espúrias. Tal ojeriza, no entanto, não coibiu o surgimento de relações sem respaldo legal, começando seus partícipes, quando do rompimento do vínculo afetivo, a bater às portas do Judiciário em busca de soluções para suas desavenças.
Viram-se os juízes forçados a criar alternativas para evitar flagrantes injustiças. Em um primeiro momento, aplicou-se por analogia o Direito Comercial, pela aparência de existir uma sociedade de fato entre os convivas. Quando ausente patrimônio a ser partilhado, passou-se a ver verdadeira relação laboral, dando ensejo ao pagamento de indenização por serviços prestados, solução de todo aviltante a quem deu amor e só teve reconhecido labor. Foi criada, em sede jurisprudencial, a expressão companheira, como forma de contornar as proibições legais para o reconhecimento de alguns direitos, ainda que banidos pela lei. Essas concessões, no entanto, jamais levaram ao reconhecimento do direito a alimentos ou do direito de habitação na residência comum.
Foi a Constituição Federal de 1988 que, alargando o conceito de família, deu juridicidade ao relacionamento entre um homem e uma mulher, nominando-o de união estável. Ainda assim, difícil foi ampliar os direitos que já vinham sendo reconhecidos na Justiça. Somente nos anos de 1994 e 1996 surgiram duas leis (8.971 e 9.278) regulando a previsão constitucional.
O Código Civil, que entrou em vigor em 2003, inseriu em seu bojo a legislação que existente reconhecendo como estável a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Socorre-se o legislador da idéia de família como elemento configurador de um relacionamento suscetível de gerar efeitos jurídicos. O tratamento, no entanto, não e igual ao casamento. Ainda que conferido direito a alimentos, não está incluído o companheiro na ordem de vocação hereditária. É deferido direito de concorrência exclusivamente quanto aos bens adquiridos na constância do relacionamento.
- Na relação homossexual
A Lei Maior, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de relações afetivas fora do casamento, mas se restringiu a emprestar juridicidade à relação entre um homem e uma mulher. Melhor que não houvesse previsto essa limitação, pois o afeto, por mais que não se queira ver, não tem como pressuposto a diversidade de sexos.
Necessário é encarar essa realidade sem preconceitos, pois a homoafetividade não é uma doença nem uma opção livre. Assim, descabe estigmatizar quem exerce orientação sexual diferente, já que, negar a realidade, não irá solucionar as questões que emergem quando do rompimento de tais relações. Não se como chancelar a ocorrência de enriquecimento injustificado e deferir patrimônio a familiares – que normalmente hostilizam a orientação sexual do de cujus – em detrimento de quem dedicou a vida ao companheiro, ajudou a amealhar um patrimônio e se vê sozinho, abandonado e sem nada.
Muito raras têm sido as decisões judiciais que acabam por extrair consequências jurídicas dessas relações, mostrando-se ainda um tema permeado de preconceitos. Mas é preciso que se reconheça que em nada se diferencia a convivência homossexual da união estável. Ainda que haja restrição em nível constitucional, imperioso que, por meio de uma interpretação analógica, se passe a aplicar o mesmo regramento legal, pois inquestionavelmente se trata de relacionamento que constitui uma unidade familiar.
A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir o status de família, merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal, no inc. III do art. 1º, consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, nada impede que as demandas sejam resolvidas nas Varas de Família e se possa reconhecer tanto direito a alimentos, como a meação e a usufruto. Esses direitos decorrem exclusivamente do vínculo afetivo, descabendo buscar figuras em outros ramos do Direito – tal como aconteceu com a relação concubinária – para que se veja uma sociedade de fato ou um vínculo empregatício de prestação de serviços.
Tramita um substitutivo ao Projeto de Lei nº 1.151/95, de autoria da Deputada Marta Suplicy, que regula, sob a denominação de união civil, as relações entre pessoas do mesmo sexo. Prevê a possibilidade de um contrato de parceria por instrumento público em que livremente se pactuem disposições patrimoniais, deveres, impedimentos e obrigações mútuas. O registro do contrato no Ofício de Notas, no Registro Civil e no Registro de Imóveis formaliza a união, cuja dissolução poderá ser homologada consensualmente em juízo ou decretada por sentença, sob a alegação de infração contratual ou simples desinteresse na sua continuidade.
Esse Projeto, mesmo que venha a se transformar em Lei, não pode ser identificado como regulamentador da união homoafetiva, pois deixa à margem de direitos as relações que se romperem sem referendo contratual, que permanecem carentes de previsão legislativa.
Como cabe ao Direito regular a vida, e sendo ela uma eterna busca da felicidade, impossível não reconhecer que o afeto é um valor jurídico merecedor de tutela.
Publicado em 26/08/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
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