Maria Berenice Dias

Advogada

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

 

A recente Lei 14.994, de 9 de outubro de 2024 veio dar efetividade à Convenção de Belém do Pará, de 1994, que conceitua a violência contra a mulher como: qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que lhe cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico.

Ao alterar cinco leis, provocou significativo avanço no que diz com a violência contra a mulher. Alargou a criminalização da misoginia para além do feminicídio. Ou seja, foi além do âmbito de proteção da Lei Maria da Penha que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

A nova normatização não só exacerbou penas. Seu objeto é muito mais amplo.

Trouxe um novo tipo penal, cujo conceito se refletiu em muitos outros delitos. Exacerbou penas e alterou o regime de cumprimento de um punhado de crimes. Do mesmo modo, atingiu os efeitos da condenação e impôs restrições no âmbito da execução penal.

Em 2015 o feminicídio foi inserido no Código Penal como homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º, VI): Matar mulher por razões da condição do sexo feminino. Pena de 12 a 30 anos de reclusão. Com isso, havia margem à busca do reconhecimento de sua forma privilegiada, que autoriza a redução da pena, de um sexto até a metade (CP, art. 121, § 1º). Dita possibilidade, inclusive, acabou levando a justiça a acolher uma tese que não existe. A chamada legítima defesa da honra permitia a absolvição do réu ao ser atribuída à vítima a causa de sua morte. Ainda que afastada esta excrescência pelo Supremo Tribunal Federal, ainda persiste a busca de redução da pena.

Agora, não mais. Como o feminicídio tornou-se um delito autônimo (CP, art. 121-A), com pena de 20 a 40 anos de reclusão, não há margem para a aplicação de reduções. As hipóteses que levam ao reconhecimento do crime como feminicídio continuam as mesmas: violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher (CP, art. 121-A, ª 1º, I e II). Já, as causas que ensejam o aumento da pena de um terço até a metade, foram dilatadas (CP, 121-A, § 2º, I a V): quando a vítima é mãe ou responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade; contra pessoa portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; na presença física ou virtual de descendentes ou ascendentes da vítima, em descumprimento de medida protetiva de urgência.

E ainda, as circunstâncias pessoais elementares comunicam-se ao co-autor e ao partícipe (CP, art. 121-A, § 3º).

lesão corporal contra a mulher se limitava ao âmbito da violência doméstica (CP, art. 129, § 9º). A criação de mais de um tipo penal, alcançou o delito contra a mulher cometido exclusivamente em razão de sua condição de ser mulher (CP, art. 129, § 13). Não cabe questionar se existe algum vínculo de natureza familiar ou afetiva entre agressor e vítima. Basta a comprovação de se tratar de violência contra uma mulher, motivada pelo ódio ou aversão ao gênero feminino. Ambos os delitos tiveram a pena majorada: reclusão de dois a cinco anos.

A proteção à mulher vítima de violência pelo simples fato de ser mulher alcançou delitos outros.

A pena dobrou nos chamados delitos contra a honracalúnia (CP, art. 138), difamação (CP, art. 139) e injúria (CP, art. 140), quando cometidos contra a mulher por razões da condição do sexo feminino (CP, art. 141, § 3º). Se a injúria consistir em violência ou vias de fato, que resulte em lesão corporal e, por sua natureza ou pelo meio empregado forem considerados aviltantes, a ação é pública incondicionada (CP, art. 145).

O crime de ameaça (CP, art. 147) praticado com a mesma motivação, além de a pena ser dobrada (CP, art. 147, § 1º), a ação é pública incondicionada, ou seja, não depende de representação da vítima (CP, art. 147, § 2º).

À contravenção penal de vias de fato, foi determinada a aplicação da pena em triplo (CP, art. 21, § 2º).

Na esfera procedimental, é determinada a tramitação prioritária, em todas as instâncias dos processos que apuram os crimes hediondos e os de violência contra a mulher (CPP, art. 394-A).

A isenção do pagamento de custas, taxas ou despesas processuais (CPP, art. 394-A, § 1º), apesar de ter sido incluída no Código de Processo Penal, se estende a todos os processos que apuram a violência doméstica. Até às demandas cíveis que têm a violência de gênero como causa de pedir.

As sequelas da condenação pela prática de delito contra a mulher alcançam os efeitos da condenação. Quais sejam: a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo (CP, art. 92, I); a incapacidade do condenado para o exercício do poder familiar (CP, art. 92, II); é vedada a nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena (CP, art. 92, § 2º, II). Tais medidas devem ser impostas de forma automática, sem a necessidade de motivação na sentença, e independentemente de pedido expresso da acusação (CP, art. 92, § 2º, III).

Quando se trata de delito de violência doméstica ou contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, as mudanças se estendem à execução da pena.

condenado ou o preso provisório será transferido para estabelecimento penal distante da residência da vítima, na hipótese de ameaçar ou praticar violência contra ela ou seus familiares durante o período da prisão  (CPP, art. 86, § 4º).

Não tem direito à visita íntima ou conjugal (LEP, art. 41, § 2º).

Quando autorizadas saídas temporárias – chamadas de “saidinhas” – será sempre fiscalizado por meio de monitoração eletrônica (LEP, art. 122, § 2º)

Para obter progressão da pena para regime menos gravoso, sendo o réu primário, precisa ter cumprido 55% da pena, não fazendo jus ao livramento condicional (LEP, art. 112, VI-A).

Claro que mudanças legislativas, por si só, não têm o poder mágico, de acabar com crimes. Mas despertam a atenção da sociedade, principalmente dos homens, de que a violência perpetrada contra as mulheres é algo muito sério, que gera consequências severas.

Quem sabe com estes avanços o Brasil abandona a vergonhosa última posição que ocupa em número de violência doméstica do mundo ocidental.

 

publicado em 28/10/2024 em IBDFAM

publicado em 04/11/2024 em JusBrasil

 

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