Maria Berenice Dias
Advogada
Vice-Presidente Nacional do IBDFDAM
A legislação costuma fazer prevalecer o direito social sobre o pessoal.
Um exemplo é o direito real de habitação (CC, art. 1.831). Instituto do direito sucessório que concede ao cônjuge e ao companheiro sobrevivente direito de moradia, a título gratuito, sobre imóvel alheio.
Esqueceu o legislador de reproduzir o dispositivo do Código Civil anterior que previa expressamente este direito ao filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho (art. 1.611, § 3º). Ainda bem que, em casos excepcionais – mas raros – a jurisprudência vem assegurando esse direito a herdeiro incapaz, invocando o direito constitucional à moradia (CR, art. 6ª) e o direito real de uso (CC, art. 1.412).
E nada, absolutamente nada, justifica não conceder igual direito não só em caso de morte, mas quando do término do relacionamento em razão do divórcio ou dissolução da união estável.
Ora, se o fundamento da concessão do direito real de habitação é garantir a permanência do sobrevivente no imóvel que servia à residência da família, igual direito deve ser assegurado a quem, como fim do vínculo de conjugalidade, resta em situação de vulnerabilidade ou quando no imóvel permanecem filhos menores ou incapazes. Conceder hospedagem é modalidade de concessão de alimentos in natura (CC, art. 1.701). Assim já decidiu a justiça paulista e gaúcha. Sendo a habitação um dos itens que integra o conceito de alimentos, correta a decisão que instituiu o direito de habitação, para assegurar a filhos menores de idade o direito à moradia.[1]
Embora não haja previsão legal, a jurisprudência vem assegurando o direito real de habitação, nas hipóteses de violência doméstica.[2] Constituiu motivo legítimo limitar o domínio do agressor, sem o arbitramento de aluguel como forma de indenização pela privação do seu direito de propriedade.[3]
Claro que o direito de permanecer no imóvel não deve ser concedido de forma indiscriminada como acontece no âmbito sucessório. Mas não deve se restringir às hipóteses de violência doméstica. Basta que o lar de residência seja o único imóvel, cuja venda e divisão do valor não permitiria a aquisição de outro. Também impositiva sua concessão quando no imóvel residirem crianças, adolescentes ou pessoas incapazes.
No conflito entre os princípios do melhor interesse da família, e o da legalidade, indispensável fazer uma ponderação com o princípio da proporcionalidade. De um lado existe o direito de propriedade e de outro o direito constitucional de moradia. Como na aplicação da lei, o juiz deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (LINDB, art. 5º e CPC, art. 8º), imperioso manter na residência quem não tem meios de buscar outro lugar para morar.
Ainda que sejam escassas as decisões judiciais indispensável respeitar o mais elementar direito de preservação da dignidade humana: o direito a ter um lar.
[1] TJRS – AC 70036451995, 7ª C. Cív., Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 27/06/2011.
[2] TJSP – Proc. 1000780-42.2022.8.26.0004, Juíza de Direito, Alexandra Milhose Felix Santos, j. 05.06.2024.
[3] TJJSP – Proc. 1005098-47.2022.8.26.0011, Juiz de Direito Cassio Pereira Brisola, j. 03/05/2023.
Data do artigo: 22/03/2025.