Maria Berenice Dias[1]
Para que servem as leis? Todo mundo sabe que servem para reger a vida em sociedade. Mas, certamente, sua finalidade mais significativa é assegurar o tão propalado princípio da igualdade. Ou seja, a lei é indispensável para proteger os segmentos mais vulneráveis. Talvez seja este o seu escopo maior.
Todavia, não atentam os legisladores para esta responsabilidade enorme, ao se omitirem de criar regras que, se destinem a inserir no âmbito da tutela jurídica quem é alvo da exclusão social.
O estágio presente da estrutura social se traduz no que se vem chamando de modernidade líquida. Distintas formas de expressar e vivenciar o afeto, diferentes maneiras de compartilhamento de vida emergem e demandam reconhecimento.
Por muito tempo, as relações de pessoas do mesmo sexo foram estigmatizadas, restando homossexuais e transexuais confinados num universo paralelo, marginalizados. Todavia, nos últimos anos a sociedade vem se mostrando um tanto mais tolerante e, paulatinamente, vem modificando a sua forma de encarar as relações entre iguais. Os homossexuais começaram a adquirir visibilidade e foram buscar a Justiça. Infelizmente, a postura omissiva de quem tem o dever de fazer leis é histórica. Basta lembrar o calvário sofrido para o divórcio ser inserido no sistema jurídico. Apesar dos reclamos sociais, passaram-se 27 anos para que o Congresso Nacional acabasse com a indissolubilidade do casamento. Tal fato também se deu com as uniões extramatrimoniais e a filiação chamada de ilegítima. Falsos moralismos e preconceitos infundados impediam o seu reconhecimento.
Ainda bem que o silêncio do legislador não cala a Justiça. De há muito vêm os juízes reconhecendo que a falta de leis não significa ausência de direitos, Assim acaba a jurisprudência tamponando as lacunas da lei e ditando pautas de conduta, que passam a guiar a vida em sociedade.
A atividade legiferante que deveria ser exercida pelo Legislativo, acaba sendo preenchida pela jurisprudência. Não poderia ser diferente! Em face da enorme preocupação de não cometer injustiças, a justiça avança, construindo novos paradigmas. Mas a via judicial é demorada, quer porque a jurisprudência custa a se cristalizar, quer porque as decisões, ainda que reiteradas, não têm efeito vinculante.
Os avanços, no entanto, não suprem o direito à segurança jurídica que só a lei outorga. Daí a urgente necessidade de inserção das uniões que passaram a ser chamadas de homoafetivas no sistema jurídico . O silêncio é a forma mais perversa de exclusão, pois impõe constrangedora invisibilidade que afronta alguns dos mais elementares direitos, como o direito à cidadania e à dignidade, base de qualquer Estado que se diga Democrático de Direito. Para a consolidação das diretrizes ditadas pelo Judiciário há outro obstáculo que se revela quase intransponível: a inacessibilidade dos julgamentos e a falta de prestígio das decisões de primeiro grau. Apesar de todo o avanço tecnológico, a busca pela jurisprudência é uma tarefa praticamente irrealizável. Seja pela falta de um sistema de informação unificado, seja pela má qualidade dos sites dos Tribunais, as pesquisas são inviáveis e, no mais das vezes, mal sucedidas.
Por incrível que possa parecer não há como saber como julgam todos tribunais deste país. As tentativas são frustrantes e exasperantes, e os resultados, na maioria dos sites dos tribunais, são nulos.
Quando se trata de questões referentes ao direito das famílias, então, as dificuldades só aumentam. Sob a equivocada alegação de que as demandas tramitam em segredo de justiça, as decisões simplesmente não são disponibilizadas. Um singelo ato, como a exclusão do nome das partes é suficiente para preservar eficazmente as identidades e privacidade das mesmas.
Todos estes percalços é que motivaram a construção de uma ferramenta poderosa de busca e acesso a material relativo à homoafetividade e transexualidade: www.direitohomoafetivo.com.br. Indispensável saber tudo o que a justiça já assegurou a homossexuais e transexuais. Trata-se de um projeto arrojado, cujo trabalho foi árduo e contou com a colaboração entusiasmada de muita gente. Os resultados foram surpreendentes. Basta atentar que já no ano de 1980 foi deferida a troca de nome de transexuais e desde 1989 a justiça federal concede direito previdenciário a parceiros do mesmo sexo. Mas há mais, muito mais. Data do ano de 1998 a primeira sentença deferindo a adoção homoparental. O surpreendente é que há decisões de todos os Estados, já chegando a quase setecentos o número de sentenças e acórdãos inseridos no banco de dados.
Não foram olvidados os projetos de leis em tramitação, as normatizações existentes, além de exaustivo levantamento bibliográfico tanto nacional como internacional. Igualmente está disponível a legislação e a jurisprudência estrangeiras mais significativas, pois a preocupação com a regulação das uniões homoafetivas integra a agenda do pensamento jurídico mundial. Hoje, muitos países do mundo não mais ignoram os vínculos homoafetivos, que deve servir de exemplo. A razão de ser de todo este trabalho não é só capacitar os profissionais a trabalharem com este novo ramo do direito. É muito mais consolidar as conquistas e mostrar que o Judiciário não é cego e tem coragem de fazer justiça.
Publicado em 07/04/2010.
[1] www.mbdias.com.br
www.mariaberenice.com.br
www.direitohomoafetivo.com.br