Maria Berenice Dias[1]
Ninguém questiona que a família é a base da sociedade e que é fundamental a sua manutenção. Por isso mesmo, o matrimônio é tratado como um sacramento pela Igreja, inclusive para cumprir o cânone bíblico: “crescei-vos e multiplicai-vos”.
O Estado transformou as relações afetivas em uma instituição e solenizou o casamento. Apesar de haver se preocupado muito mais com os aspectos patrimoniais da união, acabou a lei impondo direitos e deveres aos cônjuges, além de buscar restringir por meio de vários mecanismos a sua dissolução.
É forçoso reconhecer como indevida qualquer intromissão, por via legislativa, na intimidade da vida a dois. Mas, ainda que a lei preveja o dever de fidelidade e de mantença de vida em comum, não há como afirmar que tenha o Estado imposto a obrigação de o casal manter relações sexuais. Na expressão “vida em comum”, constante do inciso II do art. 231 do Código Civil,[2] não se pode ver a imposição do debitum conjugale, infeliz locução que não significa o dever de alguém sujeitar-se a contatos sexuais.
A eventual ou contumaz ausência da vida sexual não afeta a higidez do casamento. Não serve de motivo para sua anulação. Sequer pode ser invocada para justificar ação de separação. O simples fato de haver arrefecido a paixão ou o desejo não produz qualquer efeito. Ninguém pode ser condenado pela falta do estímulo indispensável para que os contatos físicos sejam um verdadeiro coroamento das relações afetivas que enlaçam um par.
Não é o exercício da sexualidade que mantém o casamento. A inaceitação do contato corporal não gera a possibilidade de ocorrência de dano moral. Muito menos a abstinência sexual assegura direito indenizatório.
Desarrazoado e desmedido pretender que a “ausência de contato físico de natureza sexual” seja reconhecida como inadimplemento de dever conjugal. A injustificada tentativa de inserir na lei civil obrigação indenizatória por dano moral, se vingar, certamente terá conseqüências funestas. Algumas, inclusive, imprevisíveis. Poderá dar ensejo a um verdadeiro terrorismo sexual e chancelar a violência doméstica para forçar o contato sexual. Ou até mesmo poderá chegar a absurdos como – quem sabe? – desqualificar o estupro nas relações familiares, pelo reconhecimento do direito do estuprador ao exercício da sexualidade.
Realmente, não se pode brincar com as leis.
Publicado em 28/06/2004.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
[2] A referência é ao Código Civil de 1916.