Maria Berenice Dias[1]
Se atentarmos ao fato de que a Constituição Federal é enfática, e até repetitiva, ao proclamar a igualdade entre o homem e a mulher, é de questionar o motivo do acanhado desempenho feminino no panorama nacional.
A vida pública das mulheres restringe-se geralmente a participações sociais, como clubes de mães ou movimentos de donas-de-casa.
Hoje, o contingente feminino representa 50,3% do eleitorado. Esse número, no entanto, choca-se com o fato de que somente 4 mulheres foram eleitas em 1996 para o Senado Federal, e a chamada “bancada do batom” corresponde a 7,5% da Câmara Federal e a 7,6% das câmaras municipais. Desse universo, a maioria entrou para a vida política pelas mãos do pai ou do marido. É mínimo o número de candidatas com carreiras políticas desvinculadas de laços familiares, com trajetória autônoma baseada em posturas ideológicas.
Também no Executivo os números não são nada estimulantes: só há uma governadora, no Maranhão, Roseana Sarney, que é filha de um ex-Presidente da República. Nunca houve – e nestas eleições [1] também não há, nenhuma mulher candidata à Presidência da República.
No Poder Judiciário, o fenômeno só aparentemente apresenta outra feição. Como o ingresso na carreira se dá mediante concurso público, as mulheres já estão entrando em um maior número, obtendo, inclusive, as primeiras colocações. Mas, nos tribunais estaduais, cujo acesso depende de promoção, é mais rarefeita a presença feminina, sendo que nenhuma integra o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal.
Essa quase inaptidão da mulher para participar da vida pública decorre, sem sombra de dúvida, tanto do pouco interesse dos homens em dividir o poder, como de componentes culturais em que se precisa atentar.
Os relacionamentos afetivos estão vincados por uma marcante hierarquização, ocupando, homens e mulheres, dois mundos bem polarizados. Enquanto o homem desempenha o papel de provedor, ainda se arvora como chefe de família e se sente descompromissado com as atividades domésticas. À mulher resta a função reprodutora, sendo responsável pela casa, pela criação dos filhos e pelo cuidado com os idosos e doentes. É reservado ao homem o espaço público, ficando a mulher confinada ao recinto do lar.
Esses estereótipos, definidos desde o nascimento, só permitem que os meninos brinquem com carrinhos, aviões e bolas, pois bonecas, casinha e panelinhas são brinquedos proibidos. Qualquer interesse por essas coisas leva ao questionamento de sua masculinidade.
O ingresso da mulher no mercado de trabalho ocorreu com a Revolução Industrial, que buscou na mão-de-obra feminina a forma de baratear custos. Sua baixa auto-estima a fez aceitar remuneração inferior, ainda quando no desempenho da mesma função. Esse fato levou-a para fora do lar, começando a contribuir no sustento da família, mas os encargos domésticos continuaram sob sua exclusiva responsabilidade. Mais: a sacralização da maternidade, a condição de rainha do lar, responsável pela mantença do perfil moral da família, não permite reverter a condição de submissão que lhe foi imposta. Por isso, em nome da família, por amor aos filhos, por medo da rejeição social, mantém-se a mulher em uma posição de inferioridade. Tal gera um sentimento de propriedade, arvorando-se o homem no direito de agredir quem ousa lhe desobedecer. Esses ingredientes levam ao estarrecedor quadro da violência doméstica, delito que faz o maior número de vítimas no mundo.
Diante desse retrato, que ainda espelha a realidade de hoje, não é difícil compreender o motivo por que a mulher não busca um espaço na política. Se nem no recinto de seu lar, onde é a rainha, pode manifestar sua vontade, como encorajá-la a que se conscientize da possibilidade de exercer o poder?
Segundo uma pesquisa realizada pelo Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o maior empecilho ao ingresso das mulheres na política são os próprios maridos ou companheiros, que impedem a candidatura, sob o fundamento de que elas deixariam de atender aos afazeres domésticos e de cumprir com o dever de cuidado dos filhos.
Na tentativa de reverter esse quadro é que desde 1995 vigora a lei que assegura uma cota mínima de participação nas eleições para cada um dos sexos. Dito percentual, que em 1996 foi de 20%, neste ano foi elevado para 25% e para o ano 2000 será de 30%. Mas esses percentuais nunca foram preenchidos.
A lei, nominada como sistema de cotas, busca inserir a participação da mulher na política, não só passivamente, mas como parte ativa, como agente político. Para o fortalecimento do projeto democrático, é necessário que os partidos trabalhem na capacitação política das mulheres, que sempre foram alijadas do espaço público.
Atualmente tramitam no Congresso Nacional 189 projetos de lei [2] que tratam dos direitos da mulher, nada justificando a falta de conscientização política dentro de uma perspectiva de gênero para obterem aprovação.
A maior transformação que ocorreu neste século foi a revolução feminina, segundo o filósofo Norberto Bobbio. A ONU patrocinou a década da mulher e quatro encontros mundiais. No último, que se realizou em Pequim, reuniu 47 mil mulheres de todos os continentes, etnias, culturas e classes. Resultou do evento uma Plataforma de Ações, que foi firmada pelo Brasil e estabelece a necessidade de adoção de políticas públicas para mulheres e sua inserção na vida pública.
Não basta ser mulher para mudar a condição da mulher na política. A candidata precisa ver a política do ponto de vista feminino. Só assim teremos uma inovação, uma renovação, e sua participação será uma conquista, não uma concessão.
No limiar de uma nova era, podemos afirmar, sem falso otimismo, que o século XXI será das mulheres.
Publicado em 10/8/1998.
[1] A referência é às eleições do ano de 1998.
[2] Número no ano de 1998.
[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM