Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: Alienação Parental, ARTIGOS

Alienação Parental no Brasil: Criminalizar ou Conscientizar?

Maria Berenice Dias[1]

Patrícia Corrêa Sanches[2]

 

O termo “alienação parental” foi definido no Brasil pela Lei 12.318, de 26 de agosto de 2010, promulgada dez anos depois da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) – ECA, que reconhece a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, assegurando-lhes proteção integral, com absoluta prioridade, frente à sociedade, ao Estado e à própria família.

A doutrina da proteção integral, expressa no artigo 227 da Constituição Federal Brasileira de 1988, tornou-se a sustentação dos principais dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, e preconiza:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Com o ECA, o melhor interesse do incapaz foi elevado a princípio norteador da proteção integral, firmado no propósito de que uma infância saudável, com acesso à educação, saúde, bem-estar, entre outros bens sociais, visando o pleno desenvolvimento de suas potencialidades, é etapa imprescindível para a construção uma sociedade mais justa, com pessoas mais felizes.

Para o saudável desenvolvimento da criança e do adolescente são imprescindíveis, além de outros elementos, o respeito, o afeto, a segurança e à convivência familiar. O conceito atual da família, centrado no afeto como elemento agregador, exige dos pais o dever de criar, educar e conviver com os filhos, de modo a propiciar-lhes a formação plena de sua personalidade. São estes fatores que, conjugados, proporcionam à criança e ao adolescente bem-estar, confiança e equilíbrio psicoemocional.

A necessidade de especial respeito à condição de pessoa em desenvolvimento adquire dimensão maior quando surgem situações conflituosas entre os genitores. É neste momento que ambos devem atentar à necessidade de os filhos serem preservados. Afinal, o fim da conjugalidade não significa – e nem pode significar – o fim do vínculo de parentalidade.

As regras de proteção da criança e do adolescente buscam dissociar seus interesses das mazelas originadas do relacionamento de seus pais.  Ou seja, a relação paterno-filial ganhou autonomia frente ao vínculo emocional existente entre os genitores. Filhos deixaram de ser considerados extensão de seus pais. Têm direitos próprios, oponíveis, inclusive, a eles.

Nada atinge mais o filho do que virar testemunha, presenciar agressões e discussões entre as pessoas que ele mais ama. O ciúme, a raiva, o desejo de vingança, não podem desaguar no relacionamento dos filhos com cada um dos pais. Eles precisam estar protegidos contra a influência desses sentimentos negativos e as atitudes deles consequentes.

Os sofrimentos, frustrações e desgastes conjugais, pela união desfeita e sonhos rompidos, têm grande potencial de alcançar a prole, e geram sentimentos de abandono, tristeza, além de profunda crise de lealdade. A grande frustação dos filhos, o sentimento de impotência e insegurança, e nada poderem fazer para unir novamente seus genitores, fazendo cessar o conflito entre eles. A estes sentimentos dos filhos é que os pais devem atentar. São eles os que mais sofrem com a separação.

O natural em uma família que vivencia momento de desagregação e de transformação, é fazer que esta seja uma oportunidade de crescimento e amadurecimento emocional dos filhos.

A postura de um dos pais em desmerecer o outro, desqualificá-lo, dificultar o relacionamento entre eles, transformar o filho em moeda de troca, em instrumento de vingança são condutas típicas do que passou a chamar de alienação parental, pois são fonte de insegurança e causam um imenso prejuízo moral e psíquico à criança e ao adolescente.

A alienação parental merece ser considerada como abuso da autoridade, pois coloca o filho em posição ainda mais vulnerável frente às decisões e atitudes de seus genitores. Estes, ao invés de utilizarem sua autoridade para proteger seus filhos, os transformam em ferramenta de disputa, movidos por sentimentos de ódio e de vingança, o que os transforma em vítimas psicológicas de seus próprios pais.

A autoridade parental impõe deveres e obrigações. Serve para balizar suas decisões na condução e gerenciamento da vida de seus filhos. Portanto, o não cumprimento dos deveres ou o excesso no exercício do poder familiar acarretam consequências contundentes, desde a vigência do ECA. Mas foi a Lei da Alienação Parental que descortinou e penalizou tais atitudes. Além disso, teve o grande mérito de acabar com a cultura do poder pleno dos pais sobre a vida de seus filhos. Tanto é assim que os pais que alienam parentalmente seus filhos podem perder a guarda e, até mesmo, sofrer suspensão da autoridade parental.

No Brasil, a autoridade parental é exercida em igualdade de condições pelo pai e pela mãe,[3] circunstância que não é alterada com a separação,[4] cuja responsabilidade pelo gerenciamento da vida do filho é compartilhada entre os genitores, com a divisão equilibrada do tempo de convivência, ainda que persistam as desavenças entre os pais.[5]

No entanto, quando o grau de beligerância entre os pais é elevado, quando um deles não consegue superar suas dificuldades sem envolver os filhos, havendo acusações e a tentativa de impedir a convivência entre ambos, se está diante de um quadro de alienação parental. É o agir de alguém em desfavor de outro. No momento em que o filho começa a afastar-se do genitor, manifestar sentimento de indiferença e de rejeição com relação a ele, resta comprometida sua integridade psicológica. Instala-se, assim, o que se chama de Síndrome da Alienação Parental. É o sentimento, o agir imotivado do filho contra um dos genitores.

A Lei nº 12.318/2010, que dispõe sobre a alienação parental no Brasil, tem por objetivo proteger o menor de atitudes abusivas não só dos pais, mas também frente outras pessoas que integram o círculo familiar. A lei define alienação parental como a interferência abusiva na formação psíquica da criança ou adolescente para que repudie seu genitor ou cause prejuízo ao vínculo entre eles.

A legislação não visa afastar ou prejudicar a relação entre pais e filhos, e sim, protegê-la, dissociando-a daquela relação havida entre os genitores. Muitas das vezes, não percebem que suas atitudes estão sendo perniciosas ao filho, pois estão imbuídos de sentimentos que cegam essa percepção, imersos no conturbado processo de dissolução da vida em comum, que gera sentimentos de abandono, de troca, de traição, surgindo uma tendência vingativa muito grande.

Segundo Richard Gardner[6] – que cunhou a expressão SAP – Síndrome da Alienação Parental –, trata-se de verdadeira campanha desmoralizadora do genitor que utiliza a prole como instrumento da agressividade direcionada ao parceiro. Com isso, a criança é levada a rejeitar o genitor que ama e que por ele é amado e protegido, o que gera contradição de sentimentos e a destruição do vínculo entre ambos. A síndrome pode se manifestar de variadas formas, mas sempre possuem em comum avaliações negativas e desqualificadoras em relação ao outro genitor, interferências na relação com os filhos e a criação permanente de obstáculos à convivência com o alienado.

A lei brasileira prevê punições ao genitor-alienador que podem ser aplicadas cumulativamente em processo judicial. Parte da simples advertência até a suspensão da autoridade parental, passando por imposição de multa pecuniária, inversão de guarda e acompanhamento psicológico ao alienador, dentre outras.

Claramente as punições visam prevenir o prejuízo do filho vitimado pelas atitudes desleais de um ou de ambos os pais. A determinação de que o alienador se submeta a acompanhamento psicológico, é das mais salutares, e ensejam um melhor resultado: faz com que recobrem a capacidade do pleno exercício da autoridade parental. Afastar ou reduzir o tempo de convívio dispõe de caráter punitivo-educativo. Evita que a prática alienadora continue, chamando o responsável à consciência de que o filho não pode ser usado para atingir outra pessoa.

No projeto da lei, entre as punições previstas encontrava-se a criminalização dos atos alienadores mais severos.[7] No entanto, tal previsão foi alvo de veto. Mas existe um forte movimento dos pais vítimas da alienação parental, organizados em inúmeros grupos, para que atos de alienação, que configurem crime, sujeitem seus autores à responsabilização penal. O exemplo sempre invocado é a falsa denúncia de abuso sexual. Com certeza, a arma mais letal utilizada para fazer cessar a convivência. Diante da alegação de abuso, subsidiada por um laudo psicológico – muitas vezes firmado sem sequer ouvir o abusador –, o juiz se vê no dever de, imediatamente, suspender a convivência. No máximo autoriza visitas assistidas. Só que o decorrer do tempo faz com que o vínculo de afetividade entre ambos esmaeça.

É este tipo de situação que leva alguns legisladores a defender que a prática da alienação parental seja crime, com pena que varia de três meses a quatro anos de detenção.

No entanto, tornar a alienação parental uma prática criminosa, com punições que vão além da proteção da criança e do adolescente, encarcerando seus genitores, só irá afastar e tornar irreversível a relação filial.

Crianças e adolescentes são o foco principal da legislação que prevê punição à prática de atos de alienação parental, exatamente para assegurar a manutenção da família parental. Tipificar a conduta como crime, faz com que o foco passe a ser o genitor alienador, cujo encarceramento não produz o resultado a que se propõe a lei.

A harmonia entre a Constituição Federal e o ECA, com a Lei da Alienação parental, dá ênfase ao caráter educativo, preventivo à convivência paterno-filial, não permitindo que prevaleça a tese que atribui restrição de natureza penal.

O que a família precisa é de proteção para atender ao propósito constitucional, que assegura a convivência familiar como direito a ser garantido aos filhos, com absoluta prioridade.

 

 

 

Publicado em 31/07/2016.

[1] Maria Berenice Dias, desembargadora aposentada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Brasil, advogada, Vice Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFM.

[2] Patrícia Corrêa Sanches Lamosa, advogada, doutora em Direito pela UMSA-Buenos Aires, professora da EMERJ – Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

[3] Lei 8.069/90 (ECA). Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.

Código Civil (Lei 10.406/2002). Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: […]

[4] Código Civil (Lei 10.406/2002). Art. 1.579. O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos. Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá importar restrições aos direitos e deveres previstos neste artigo.” e “Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.

[5] Código Civil (Lei 10.406/2002). Art. 1.583.  A guarda será unilateral ou compartilhada.

[…]

  • 2oNa guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.

Art. 1.584.

[…]

  • 2oQuando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.”

[6] Richard Gardner, psiquiatra infantil, professor da Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade de Columbia, EUA.

[7] Veto: Art. 10.  O art. 236 da Seção II do Capítulo I do Título VII da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único: ‘Art. 236 […]Pena – detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem apresenta relato falso ao agente indicado no caput ou à autoridade policial cujo teor possa ensejar restrição à convivência de criança ou adolescente com genitor.’

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