Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Direito das Famílias

A responsabilidade do afeto

Maria Berenice Dias[1]

 

Quando se fala em afeto, em cuidado, sempre vem à mente a famosa frase de Saint-Exupéry: Você é eternamente responsável por aquele que cativas!

Parece piegas, mas a responsabilidade em proteger tem origem nos vínculos afetivos. Basta atentar ao comando constitucional que atribui primeiro à família a obrigação de cuidado para com  crianças e  idosos. Só após reconhece a responsabilidade da sociedade e do Estado.  Não é por outro motivo que a família é reconhecida como a base da sociedade, sendo-lhe assegurada especial proteção. Claro que assim o Estado não precisa assumir responsabilidades sobre os mais vulneráveis.

Por isso ocorreu o alargamento do conceito de família, deslocado do tripé casamento-sexo-procriação. Com o reconhecimento da união estável reconheceu-se o vínculo extramatrimonial. Também aconteceu a dessexualização do seu conceito, ao ser assim considerada a comunidade formada entre um dos pais e seus filhos, e que se passou a chamar de família monoparental.

Tanto é assim que o Código Civil gera a responsabilidade parental, o poder familiar, a obrigação alimentar e até  o direito sucessório, que nada mais é do que o cuidado depois da morte.

Esta nova feição do Direito das Famílias se afasta do normativismo legal que busca a preservação da família dentro do conceito imposto pelas religiões. Uma união eterna, na pobreza, na tristeza e na doença. Até é possível  pensar se não foi por este motivo que se inventou vida após a morte, como única forma de as pessoas libertarem- se do casamento.

O fato é que, em nome da sacralização desse conceito retrógado, muitas injustiças já foram feitas, como o não reconhecimento de filhos de relações extramatrimoniais, que persistiu por décadas. Mas injustiças ainda se fazem, como no caso de uniões paralelas que não são reconhecidas como união estável, ainda que apresentem todas as características legais. Mas há mais. Absurdamente são subtraídos efeitos patrimoniais ao casamento, quando um dos noivos tem mais de 70 anos.

Todas estas situações chancelam a irresponsabilidade dos homens. Afinal, estes são comportamentos prioritariamente masculinos. Eles é que tinham filhos ilegítimos, isto é, filhos  fora do casamento. Os filhos fruto da infidelidade feminina são inseridos na família, em face da  presunção de paternidade: o pai é sempre o marido da mãe. Os homens sempre puderam ter novos vínculos afetivos ao se separarem. As mulheres não. Eram difamadas por serem desquitadas, por não mais terem o “atributo” da virgindade, que sempre foi reconhecido como um valor agregado, símbolo de pureza e castidade. Além disso, elas ficavam com os filhos e era difícil achar um novo par.

Ainda hoje a cultura é machista e sexista, e isso se derrama no âmbito do Direito das Famílias. Relacionamentos afetivos geram direitos e deveres de parte a parte. É só existir um comprometimento mútuo para se estar frente a um vínculo familiar. Assim, quem ama – seja quem for – assume encargos. Como o afeto gera ônus e bônus, as obrigações são recíprocas. Este é o componente ético que precisa ser legitimado e preservado.

O ser humano busca a felicidade perpassando pelo estabelecimento de elos de afetividade. Há até uma música que diz: é improvável, é quase impossível, ver alguém feliz de fato sem alguém para amar.  Se as relações se estabelecem da forma não legal ou não convencional, cabe à justiça identificar a existência de um vínculo familiar para abrigá-las sob o manto da juridicidade. Essa é a única forma de se evitar injustiças: enxergar a realidade e flagrar as situações merecedoras de tutela.

Como a Constituição Federal consagra como princípio maior o respeito à dignidade do ser humano, é indispensável reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade e do direito social de escolha, que nada mais são do que o direito à felicidade.

 

Publicado em 09/11/2014.

 

[1] Advogada

Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB

Vice-Presidenta do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito das Famílias.

 

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