Maria Berenice Dias

O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.

Categoria: ARTIGOS, Mulher

A mulher casada e a nova Constituição

Maria Berenice Dias[1]

 

Darás à luz com dor os filhos e estarás sob o

poder do marido, e ele te dominará (Gênesis 3:16).

 

A divergência Jurisprudencial

Longa foi a trajetória da mulher, para chegar ao seu atual estágio de completa igualdade e independência, agora erigida à categoria de preceito constitucional.

Dispunha a mulher casada da condição de relativamente incapaz, situação que persistiu até 1962, quando a Lei nº 4.121, chamada de Estatuto da Mulher Casada, lhe reconheceu a plena capacidade civil. Apesar do largo passo que representou o referido estatuto, ainda restaram algumas restrições à mulher casada, permanecendo em um plano de inferioridade com relação ao cônjuge. Mesmo passando a ser considerada colaboradora e companheira do marido, este era o cabeça-do-casal. Competia-lhe a representação legal da família, a chefia da sociedade conjugal e o direito de fixar o domicílio familiar. Também detinha o poder de administrar os bens comuns do casal, incumbindo-lhe o ônus de prover o sustento do lar.

Em benefício da mulher, foi reconhecida a existência do chamado bem reservado, constituído do patrimônio formado pelos frutos do seu trabalho profissional e pelos bens de qualquer natureza adquiridos com o produto deles. Esse capital assim amealhado, pela regra do parágrafo único do art. 246 do CC, não respondia pelas dívidas do marido, perdendo esse caráter de incomunicabilidade se assumidos os encargos em benefício da família.

Em face dessa regra de caráter excepcional, consolidou-se o entendimento de que o patrimônio comum responde pelas dívidas do marido, em face da presunção de que foram contraídas em favor da família.

A divergência que se estabeleceu na jurisprudência diz tão-só com a identificação do detentor do ônus de provar que houve o favorecimento familiar, para dar ensejo ao comprometimento da meação da mulher. Mais acirrada se mostra a polêmica, quando a obrigação decorre da prestação de aval, chegando-se ao detalhe de diferenciar se a garantia decorreu de mero ato de liberalidade ou foi outorgada a pessoa jurídica da qual participa o avalista.

Consolidou-se a posição ditada pelo Supremo Tribunal Federal entendendo tratar-se de uma presunção juris tantum, por assentar-se em prova prima facie de haver o beneficiamento, imputando à mulher que busca livrar sua meação o ônus de comprovar que a dívida não foi contraída em proveito familiar. Essa postura vem-se mostrando prevalente, de forma não-unânime, nas 2ª, 4ª e 5ª Câmaras Cíveis do Tribunal de Alçada do RS, sendo a posição majoritária do 2º Grupo Cível, em sede de Embargos Infringentes, conforme acórdão publicado na respectiva revista, v. 66, p. 197.

Já o Superior Tribunal de Justiça, bem como as 1ª, 3ª e 6ª Câmaras da mesma Corte Estadual, também sem unanimidade, imputam ao credor o ônus de comprovar que a dívida restou contraída em benefício da família, para que a constrição judicial venha a abranger bens da meação da mulher.

 

A Nova Carta Constitucional

A divergência posicional ainda se encontra viva, mesmo após o advento da Constituição Federal, cujo art. 5º, inciso I, consagra que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição, estabelecendo o parágrafo 5 do art. 226: os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

Com o surgimento do novo ordenamento jurídico, restou derrogada toda a legislação infraconstitucional, só sendo recepcionadas pelo novel sistema as normas que com ele não guardam divergência. Sérgio Gischkow Pereira, na Revista AJURIS, v. 45, p. 135, e v. 51, p. 39, proclama a revogação de todos os dispositivos legais que contemplam normas capazes de colocar a mulher em situação de subordinação e inferioridade.

Pedro Sampaio (Alterações Constitucionais nos Direitos de Família e Sucessões) afirma que a nova disciplina veio a modificar o poder de que estava investido o chefe de família de gerir os bens comuns do casal, sendo que todos os atos concernentes à chefia da sociedade conjugal, elencados nos incs. I, II, III e IV do art. 233 do CC, devem ser praticados conjuntamente pelo marido e pela mulher para estarem juridicamente perfeitos.

A disposição constante do texto constitucional, igualando os direitos dos casados como chefes da sociedade conjugal, leva à clara conclusão de que qualquer ato praticado por um dos cônjuges deve ser efetuado com a  anuência do seu par e vice-versa (p. 21).

O reconhecimento da absoluta paridade jurídica do casal também levou à unânime conclusão de que não mais existem bens reservados.

Ora, desigualdade patrimonial típica está embutida no art. 246 do CC. Permite ele somente à mulher que os bens adquiridos com o produto do seu trabalho sejam de sua exclusiva propriedade, mesmo sendo de comunhão universal o regime de bens. Porque é desigualdade, não deve prevalecer (AJURIS 51, p. 41).

 

Postura dos Tribunais ante a nova Carta

A posição sustentada pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo voto vencedor do Ministro Athos Gusmão Carneiro, atenta no novo disciplinamento, mas resta apenas por atribuir o ônus probatório ao credor, como se vê da decisão de sua 4ª Turma, datada de 20/03/90.

O Segundo Grupo Cível do Tribunal de Alçada do Estado assim se manifestou nos Embargos Infringentes de nº 187053822:

Ao estabelecer a nova Carta Constitucional a paridade de direitos e obrigações entre o homem e a mulher na sociedade conjugal (art. 226, parágrafo 5º), longe de afastar a  presunção supra, só fez crismar a sua permanência, ao neutralizar a superada inspiração protetiva da mulher que impregnava o Código Civil e o Estatuto da Mulher Casada.

No julgamento da Ap. Cível 190111692, o voto vencido da lavra do Eminente Juiz José Maria Rosa Tesheiner merece especial destaque ao afirmar:

Confesso. Não consigo extrair, da sistemática do Código Civil, tal como ora vige, a conclusão de que a mulher deve responder pelas dívidas do marido, por presunção de que foram contraídas a benefício da família.

… A sociedade mudou. Mudou a posição da mulher na família e, portanto, também a do marido. Há uma lei nova, estabelecendo o princípio de que as obrigações assumidas pelo marido não obrigam a meação da mulher. Contudo, julga-se como se não tivesse havido lei alguma. Como se ainda estivéssemos na primeira metade do século, ou no século passado.

… A igualdade entre os cônjuges é um princípio superior ao do domínio/sujeição. A lei nova é melhor do que o velho Código Civil. Por isso é que me insurjo e me revelo contra uma interpretação que teima em manter vivo um passado já morto.

… Por fim, soa-me ridícula a invocação do artigo 226, parágrafo 5º, da Constituição da República, em apoio à tese da maioria. Efetivamente, exatamente em virtude da igualdade dos cônjuges em direitos e obrigações é que a declaração de vontade do marido não responsabiliza a meação da mulher, assim como as obrigações assumidas ou garantidas pela mulher não importam em responsabilidade da meação do marido.

Não fosse sua posição referente à possibilidade de o credor comprovar o benefício em prol da família para ensejar o comprometimento da meação da mulher, não teria o menor pejo em subscrever na íntegra a tão bem dimensionada manifestação.

Coloco-me, porém, em antagonismo tão-só quanto à possibilidade de haver a sujeição dos bens que integram o patrimônio do outro em atendimento de dívida que não assumiu.

 

O âmbito dos Embargos de Terceiro

Segundo afirma Liebman, os embargos de terceiro são uma ação proposta por terceiro em defesa de seus bens contra execuções alheias (Processo de Execução, 1968, p. 96). Em se tratando de demanda possessória, com carga de eficácia preponderantemente mandamental, como afirma Araken de Assis, dispõe de legitimação para a mesma os que tiverem seus bens sujeitos a atos executórios, mas que não estão sujeitos à responsabilidade executiva (Manual do Processo de Execução, v. II, p. 1.046).

Nesses termos, o pressuposto para a ação é a comprovação do domínio ou da posse do bem que restou constrito judicialmente e a não-participação do autor na relação de direito material sob execução, o que lhe atribui a qualidade de terceiro.

O eventual benefício advindo a alguém em face da obrigação cujo adimplemento é perseguido judicialmente não o integra na relação jurídica nem pode atingir seu patrimônio, uma vez que o art. 591 do CPC consagra a responsabilidade patrimonial dos bens do devedor. O inc. IV do referido dispositivo só leva ao comprometimento dos bens do cônjuge quando eles respondem pela dívida.

Não mais vigorando os pressupostos que ditaram a posição jurisprudencial de presunção de que os débitos contraídos pelo marido o são em benefício da família, encontra-se afastada totalmente a possibilidade de comprometimento patrimonial da meação da mulher que não contraiu a obrigação. Não mais cabendo ao cônjuge varão a administração dos bens do casal, a representação legal da família e o ônus pelo seu sustento, não mais se pode presumir que as obrigações assumidas o foram para atender a tal obrigação legal. Gerada pela norma constitucional a responsabilidade igualitária de ambos, não há como se falar em solidariedade presumida por parte de quem não mais é representado por outrem.

Também o pressuposto outro que lastreava as posições judiciais e que decorria da norma do parágrafo único do art. 246 do CC – de que os bens reservados da mulher respondiam pelas dívidas do marido contraídas em benefício da família – não mais vige, em face da ab-rogação do indigitado dispositivo.

Tendo deixado de existir qualquer norma legal a impor a um dos cônjuges obrigação com relação ao outro, ou outorgando deveres díspares de administração, não mais é permitido sequer presumir a possibilidade de assunção de obrigação para atender a esses encargos que, sob tal rótulo, venham a comprometer o patrimônio alheio.

 

Conclusão

Com o advento do novo regramento de ordem constitucional, reviveu o art. 3º da Lei nº 4.121, em toda a sua magnitude, ao estipular: Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmados por um só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares e os comuns até o limite de sua meação.

Essa regra não gera qualquer presunção, pois desserve o fato de ter a dívida beneficiado outrem para o comprometimento de patrimônio alheio. Nem necessita o cônjuge alegar que o débito não foi contraído em benefício da família para legitimar o uso com sucesso dos embargos de terceiro, nem constitui-se em fundamento bastante para excluir a pretensão desconstitutiva o fato de ter ocorrido eventual aproveitamento à sociedade familiar. Basta a comprovação pelo cônjuge de que foi atingida sua meação, por ato judicial decorrente de demanda da qual não é parte, para ocorrer a desoneração patrimonial.

De outro lado, não se apresenta como fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor a alegação de que o débito veio em benefício do embargante ou da família, como forma de persistir a penhora sobre a totalidade do bem. Tal tipo de exceção não serve para o comprometimento de bem de quem não assumiu a obrigação, pois não existe presunção a elidir.

Descabe, a partir do novo ordenamento jurídico, qualquer discussão a respeito de ônus probatório, que tanto vem agitando a jurisprudência, já que tal prova não mais serve para atingir patrimônio de quem não assumiu obrigação, não mais tendo o marido legitimidade para fazê-lo, a qualquer título. Se o desiderato é o beneficiamento de outrem ou da família, mister que a obrigação seja assumida por ambos, co-administradores da entidade familiar, para atingir o patrimônio comum.

Se o chamado Estatuto da Mulher Casada, apesar da clareza de suas disposições, não logrou vencer a conservadora posição dos doutos, ante a norma constitucional descabe a permanência de qualquer resquício que enseje o reconhecimento da superioridade ou supremacia do homem sobre a mulher na  esfera jurídica, quando não mais existente no âmbito social.

 

 

 

Publicado em 14/07/2003.

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

www.mariaberenice.com.br

 

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