Maria Berenice Dias[1]
Às vezes é necessário mensurar o tempo para visualizar mudanças. Um exemplo é o Projeto de Lei 1.151/95, que regula a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Para a época, foi considerado arrojado. Mesmo com as modificações que levaram à alteração do nome para parceria civil registrada, continuou sendo de vanguarda. No entanto, passados mais de 13 anos, os avanços sociais e as conquistas no âmbito do Judiciário foram de tal ordem que não mais se justifica sua aprovação.
Quer fazendo analogia com a união estável, quer invocando os princípios constitucionais que asseguram o direito à igualdade e o respeito à dignidade, o fato é que avanços vêm se consolidando. A Justiça, ainda que vagarosamente, vem deferindo direitos no âmbito do Direito das Famílias e do Direito Sucessório. Direitos previdenciários bem como visto de permanência ao parceiro estrangeiro já são concedidos administrativamente. Fora isso, a Lei 11.340/06 – a chamada Lei Maria da Penha – ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica, trouxe moderno conceito de família: uma relação íntima de afeto, independente da orientação sexual.
Ao depois, o Superior Tribunal de Justiça, ao afastar a extinção do processo sob o fundamento da impossibilidade jurídica do pedido, garantiu às uniões de pessoas do mesmo sexo acesso à justiça. Porém, tudo isso, não supre o direito à segurança jurídica que só a norma legal confere. O silêncio é a forma mais perversa de exclusão, pois impõe constrangedora invisibilidade que afronta um dos mais elementares direitos, que é o direito à cidadania, base de um Estado que se quer democrático de direito.
A aprovação da Lei da Parceria Civil Registrada, nesta altura dos acontecimentos, seria um retrocesso. Deste modo, lúcida a sugestão levada a efeito pelas mais representativas entidades do movimento LBGTT, que se transformou no Projeto de Lei 4.914/2009, apresentado à Câmara Federal, no dia 23 de março. A proposta é incluir um artigo ao Código Civil (1.727-A), permitindo aplicar às uniões de pessoas do mesmo sexo os dispositivos referentes à união estável, exceto a regra que admite sua conversão em casamento.
O projeto tem o mérito de contornar o aparente óbice constitucional que limita o reconhecimento da união estável aos heterossexuais. De outro lado, para evitar que se diga tratar-se do temido “casamento gay”, de modo expresso é afastada a incidência do dispositivo que autoriza a transformação da união estável em casamento.
A proposta busca somente consagrar em lei o que de há muito vem sendo assegurado pela jurisprudência. Claro que esta não é a solução que melhor atende ao princípio da igualdade, mas, ao menos, acaba com histórica omissão que gera enorme insegurança e impõe o calvário da via judicial para o reconhecimento de direitos.
Sequer os segmentos mais conservadores podem negar que é chegada a hora de resgatar o débito que a sociedade tem para com significativa parcela da população que não mais pode ficar à margem do sistema jurídico. Insistir no silêncio afronta o direito fundamental à felicidade – o mais importante compromisso do Estado para com todos os cidadãos.
Publicado em 02/03/2010.
[1] Advogada especializada em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo
Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS
Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM
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