Maria Berenice Dias[1]
As questões que dizem com relações familiares e comportamentais situam-se mais na esfera privada do que na pública, cabendo, no entanto, à sociedade sua normatização. Há valores culturais dominantes em cada época e um sistema de exclusões muitas vezes baseado em preconceitos estigmatizantes. Tudo o que se situa fora dos estereótipos resta por ser rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, que não se encaixa nos padrões. São, em regra, questões de lenta maturação, alvo de uma visão polarizada extremamente limitante.
Com a evolução dos costumes e a mudança dos valores e dos conceitos de moral e de pudor, os temas referentes à sexualidade deixaram de ser “assunto proibido” e hoje são enfrentados abertamente, sendo retratados no cinema, nas novelas, na mídia em geral.
Se coincidência ou oportunismo, o fato é que a AIDS restou identificada como um mal que atinge homossexuais, o que ensejou que fosse visualizada como, enfim, o castigo dos céus contra a sodomia, vista como uma aberração da natureza, uma transgressão à ordem natural, uma verdadeira perversão. O grande preconceito contra a liberdade sexual provém das religiões. Na busca de preservação do grupo étnico, toda relação sexual deveria dirigir-se à procriação, ensejando o surgimento da homofobia, a considerar a sodomia uma perversão, verdadeira aberração da natureza.
Somente quando se começou a identificar outras formas de transmissão do vírus, detectando-se sua presença também em hemofílicos e em pacientes de transfusão de sangue, começou o tema a despertar o interesse da sociedade. E quando os heterossexuais e as mulheres começaram a se infectar, o chamado grupo de risco se generalizou e ninguém mais continuou a se sentir imune ao contágio. Instalou-se o medo do contágio além do medo do estigma, por seu portador ser sempre identificado como homossexual.
Depois de 20 anos da história dessa doença, em que ainda não se alcançou a cura, mas se identificou o vírus, muitos progressos foram feitos na área da farmacologia e verdadeiro coquetel de drogas permite uma qualidade de vida sem sintomas, era de se esperar que a sociedade, ou ao menos as pessoas mais esclarecidas, se mostrassem menos preconceituosas.
Porém, esse delicado tema ainda está cercado de mitos e tabus, o que impede, inclusive, que o Estado adote políticas públicas para conter sua disseminação. Sendo uma doença preconceituosamente ligada à homossexualidade, é considerada ainda por muitos como sendo um pecado, vício ou crime, sempre ligada à promiscuidade.
Suas vítimas não sofrem somente do silêncio, que gera a omissão, a impedir que não se empreste visibilidade ao problema. Pior, sofrem verdadeiro rechaço, pois se nega a sociedade a ver que não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto.
Não é o exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a identidade sexual que distinguem os vínculos afetivos, que são o gênero, sendo que a identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamentos. Assim, melhor é falar-se em relações homoafetivas ou heteroafetivas.
Deixou primeiro a jurisprudência e depois a própria Constituição Federal de enlaçar no âmbito do Direito exclusivamente os relacionamentos sacralizados pelo casamento. No momento em que a existência de relação amorosa permitiu que se lhe emprestasse juridicidade, o vínculo afetivo ingressou no mundo do Direito. Quando nasceu a possibilidade de um relacionamento ensejar a extração de efeitos jurídicos, nesse momento ingressaram no sistema jurídico os sentimentos.
O primeiro olhar, o primeiro beijo, são fatos que ficam à margem do Direito, mas o estreitamento da relação, o envolvimento emocional, o comprometimento afetivo, o surgimento de um vínculo reveste-se de um tal significado, que altera e modifica a própria vida do par. Dito evoluir da relação afetiva, além de emprestar colorido ao vínculo amoroso, passa a merecer a proteção do Estado.
Houve uma profunda transformação dos paradigmas da família, que não mais serve apenas para legitimar a prática sexual e gerar filhos. A aceitação do sexo fora o casamento, com a queda do tabu da virgindade, e o surgimento dos métodos contraceptivos tornaram possível o sexo sem procriação. De outro lado, a evolução da engenharia genética deu ensejo à procriação sem sexo. Assim, não mais se pode identificar a família pela potencialidade reprodutiva.
As sociedades contemporâneas são marcadas por verdadeira aversão aos vínculos homoafetivos, renegando à marginalidade aqueles que não têm preferências sexuais dentro de determinados padrões de estrita moralidade.
Mas não é ignorando-os, não é deixando-os à margem da sociedade e fora do Direito que os faremos desaparecer. Isso só gera injustiças, fomenta a discriminação e afasta o Estado de cumprir com sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.
Não se pode deixar de visualizar o afeto e a ele emprestar efeitos jurídicos, inserindo-o no campo do Direito de Família, independente da identificação do sexo do par, se igual ou diferente.
Imperioso emprestar idêntico tratamento à convivência duradoura, pública e contínua, estabelecida com a finalidade de constituição de uma família.
O tratamento diferenciado a situações análogas só acaba por permitir a prática de profundas injustiças.
Talvez a forma de se deixar de estigmatizar os portadores do vírus seja deixar de se estigmatizar a liberdade sexual, as opções de vida dentro de sua diversidade, para que a trajetória dos vínculos homoafetivos não seja tão árdua.
A rejeição revela o medo da sociedade.
Necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.
Necessário é ter liberdade para abordar de forma aberta e séria essa questão, a fim de que se popularize a necessidade do uso dos meios preventivos, única forma de chegarmos à tão esperada cura dessa epidemia que vem assolando o mundo.
Publicado em 24/06/2009.
[1] Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões
Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente Nacional do IBDFAM