Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
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Palestra proferida no III Juiz de Fora Rainbow Fest, promovido pelo Movimento Gay de Minas, na data de 18.8.2000, em Juiz de Fora – MG.
Há valores culturais dominantes em cada época, a gerar um sistema de exclusões muitas vezes baseado em preconceitos estigmatizantes. Tudo que se situa fora dos estereótipos acaba por ser rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade, por não se encaixar nos padrões aceitos pela maioria. Trata-se de uma visão polarizada extremamente limitante, pois não visualiza a diversidade que dá colorido à própria vida.
A homossexualidade existe e sempre existiu. Acompanha a história da humanidade e era aceita com naturalidade na antiguidade clássica. O maior preconceito contra a homossexualidade provém das religiões. No entanto, a homossexualidade é uma realidade cada vez mais visível. É um fato que não pode ser negado, estando a merecer a tutela jurídica. No entanto, para que os laços afetivos entre pessoas do mesmo sexo sejam enlaçados como entidade familiar, é necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.
A homossexualidade é apenas mais uma manifestação da sexualidade humana. Não é uma doença, mas fruto de um determinismo psíquico primitivo, não podendo ser taxada como um desvio de conduta ou escolha pessoal. Como não é uma opção livre, nada justifica ser objeto de reprovabilidade nem social nem jurídica.
O núcleo do atual sistema jurídico centra-se na consagração de um estado democrático de direito e no respeito à dignidade humana, segundo os princípios da liberdade e da igualdade. A proibição da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental na Constituição Federal, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois diz com a conduta afetiva e o direito à orientação sexual. A preferência sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida em relação a quem escolhe. Tal escolha não pode ser alvo de tratamento diferenciado. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, a orientação sexual não pode servir de justificativa para infirmar tal princípio.
Ainda que tenha vindo a Lei Maior, com ares de modernidade, outorgar a proteção do Estado à família, independentemente da celebração do casamento, continuou a ignorar a existência de entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Hoje, não mais se diferencia a família pela ocorrência do casamento. Também a existência de prole não é essencial para que a convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja a desconstituição do casamento. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, não se justifica deixar de abrigar, sob o conceito de família, as relações homoafetivas.
O estigma do preconceito não pode permitir que um fato social deixe de se sujeitar a efeitos jurídicos. De todo descabido impor às uniões homossexuais a mesma trilha que a doutrina e a jurisprudência fizeram as uniões extramatrimoniais percorrerem, até o alargamento do conceito de família pela constitucionalização da união estável.
Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei. Não há como deixar de visualizar a possibilidade do reconhecimento de uma união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Não há como afrontar a liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano no que diz com sua condição de vida. A orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições. Presentes os requisitos legais, vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas, mister a concessão dos mesmos direitos deferidos às relações heterossexuais que tenham idênticas características.
Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Em face da lacuna da lei, há que cumprir o juiz a determinação do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e invocar a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito para solver questões não normatizadas. Imperioso estabelecer analogia com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e as uniões estáveis.
O legislador não deve ficar insensível à necessidade de regulamentação dessas relações. Mas, enquanto a lei não acompanha a evolução dos usos e costumes, as mudanças de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os aplicadores do Direito, podem fechar os olhos a essa nova realidade e gerar grandes injustiças. Em nome de uma postura preconceituosa ou discriminatória, descabe confundir questões jurídicas com questões morais e religiosas.
Uma sociedade que se quer aberta, justa, livre, pluralista, solidária, fraterna e democrática não pode conviver com tão cruel discriminação, quando a palavra de ordem é a cidadania e a inclusão dos excluídos.
Publicado em 01/06/2004.